O negro:

enclausurado por sua condição, mas em busca da cidadania

Maria do Rosário Alves Pereira*

A obra de Ramatis Jacino é composta em grande parte por contos. A linguagem em seus textos é objetiva, mas por vezes o escritor utiliza a ironia como recurso para dizer aquilo a que se propõe. A literatura, para ele, nunca está desvinculada da política, pois não acredita que possa haver uma escrita descompromissada. Para Jacino, o papel do escritor na sociedade é veicular idéias identificadas com o seu povo, isso significa que o mais importante é apropriar-se do que foi vivenciado até então e, através da escrita, começar a construir os rumos de, quem sabe, um futuro diferenciado:

acho que cabe a nós reinventarmos a literatura; utilizarmos a contribuição que nos deixaram os antigos, burilarmos a nossa experiência de negros proletários e procurarmos rumos para um futuro mais bonito. (JACINO, 1987, p. 57)

A condição do negro é problematizada de modo explícito em alguns textos do livro As pulgas e outros contos de horror, mas em outros a questão aparece de um modo mais implícito, subjacente à escritura. É o caso do conto “Os espiões”, no qual o narrador personagem é espiado por todos os lados e tenta usar artifícios de violência para defender-se, como comprar uma faca, por exemplo, mas a vigilância só aumenta. Tenta arrumar a mala para fugir, mas não consegue (sabe que vão matá-lo): “o que pretendia mesmo era sair daqui ou ter a coragem de abrir a porta para eles (...)” (Cadernos Negros 18, p. 63). Por fim, atira em um olho que espia pela fechadura e depois em si mesmo. Então, não mais o vigiam.

Por trás dessa cena brutal, porém banalizada no cotidiano da violência contemporânea, esconde-se algo mais profundo e amplo: as motivações da personagem assemelham-se à condição de enclausuramento já abordada por Cruz e Souza em O emparedado, o que mostra a articulação existente entre as obras produzidas pelos autores afrodescendentes ao longo dos tempos. É o sujeito sem saída que, não tendo mais nenhuma opção diante de uma sociedade que o censura, acaba por encarcerar-se e perder a própria vida. A maior ousadia da personagem, nesse conto, é quando resolve escrever: essa é uma reação contra o sistema vigente mais forte do que a violência. Assim como a personagem, o intelectual negro utiliza as armas que lhe são próprias: as palavras.

A situação daquele que é enclausurado por um sistema que o oprime reaparece em outros contos, como em “O cercado”: um grupo de pessoas maltrapilhas tenta pular um cercado aparentemente fácil de ser superado, mas descobrem que ele é imenso e, após conseguir ultrapassá-lo com muito custo, veem que há um outro... Ou seja, a situação de cerceamento da liberdade persiste.

Em outros contos, como Fazendo a cabeça e A perda da cor, é discutida a questão do branqueamento e do assumir-se e valorizar-se negro. No primeiro, a personagem central, uma mulher negra que tem vergonha de sua etnia, toma consciência de que não apenas os valores estéticos vigentes são belos, e passa a assumir sua identidade negra quando, em um salão de beleza, começa a se achar bonita ao ver outros irmãos de cor fazendo penteados afro-descendentes. Já no segundo, há literalmente a perda da cor negra da pele no momento em que o personagem age e pensa como “branco”. Tuin, um “preto de alma branca”, acostumado a seduzir as negras de sua comunidade, um dia acorda sem sua cor natural: Celinha, uma das mulheres que havia sido enganada por ele, tinha-lhe feito um “trabalho”, e a partir de então Tuin seria branco para sempre, despertando os olhares curiosos de seus companheiros.

Conforme o que foi exposto, nota-se que a literatura feita por Ramatis Jacino preocupa-se com a questão da identidade do negro, denunciando sua subalternidade e, ao mesmo tempo, apontando um possível caminho para transformar essa situação na própria escrita. O autor propõe um questionamento dos valores vigentes e também que o negro assuma sua condição, valorizando sua raça e a cultura por ela produzida.

Referências

Cadernos Negros 18. São Paulo: Quilombhoje; Editora Anita, 1995.

JACINO, Ramatis. O escritor enquanto trabalhador intelectual. In: ALVES, Mirian; CUTI; XAVIER, Arnaldo (Org.). Criação crioula, nu elefante branco. São Paulo: Secretaria de Estado e Cultura, 1987.

________________

* Maria do Rosário Alves Pereira é Doutora em Letras pela UFMG, professora do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, CEFET-MG, coautora de Linhas cruzadas: literatura, arte, gênero e etnicidade (2011) e co-organizadora de A escritura no feminino (2011) e Escrevivências: identidade, gênero e violência na obra de Conceição Evaristo (2016).

Texto para download