Sertão, subúrbio: Guimarães Rosa e Paulo Lins1

 

Eduardo de Assis Duarte*

 

Confesso que copiei, copiei às vezes textualmente.
Quer saber mesmo?
Não só copiei os etnógrafos e os textos ameríndios,
mas ainda, na Carta Pras Icamiabas,
pus frases inteiras de Rui Barbosa, de Mário Barreto,
dos cronistas portugueses coloniais,
devastei a tão preciosa quão solene língua
dos colaboradores da Revista de Língua Portuguesa.
Enfim, sou obrigado a confessar duma vez por todas:
eu copiei o Brasil.
Mário de Andrade

Chutou a cara do cara caído
traiu o melhor amigo.
Bernardo Vilhena

O aparecimento, em 1997, do romance Cidade de Deus trouxe para a literatura brasileira do fim de século um fato tão novo quanto desconcertante. Sem chegar a provocar polêmica, o livro de Paulo Lins vem dividindo opiniões, na universidade e na imprensa. Esta última deu destaque ao fato de o autor ser negro e ex-favelado; reclamou, por outro lado, do acúmulo de momentos brutais e da passagem pouco sutil entre o lirismo presente nas recordações de infância dos bandidos que povoam o livro e as cenas de violência e grotesco que muitas vezes protagonizam. Apontou-se ainda a pouca densidade psicológica dos personagens ou mesmo certa semelhança com esquemas oriundos da narrativa trivial consagrada na mídia. A crer na pertinência dessas interpretações, nada mais estapafúrdio do que propor a leitura de Cidade de Deus procurando relacioná-lo a Grande sertão: veredas, texto que se destaca como obra-prima no cânone do moderno romance brasileiro. Os paralelos que aqui iremos esboçar não visam à equalização dos dois textos em termos de valor estético. Mas, guardadas as devidas proporções, acreditamos haver pontos de contato que nos permitem as reflexões que se seguem.

Discordamos das leituras redutoras que veem em Paulo Lins um mero produto de mídia ou uma espécie de Mário Puzzo 2. Cidade de Deus não busca reescrever O poderoso chefão, apesar do sangue que jorra em muitas de suas páginas. A disputa entre bandos armados pelo domínio do tráfico de drogas na favela compõe a matéria central do livro. Mas isso não é tudo, este não se limita ao rosário de crimes, nem tem na vendetta o móvel único (ou central) das ações. Mais que interseções à maneira de enxertos, os movimentos da guerra de quadrilhas vão sendo em verdade pautados pelos dramas individuais, expostos desde a origem e narrados numa "perspectiva interna e de classe", como bem ressaltou Roberto Schwarz (1997, p. 12-13). Esse outro olhar faz com que o crime surja não como apanágio dos pobres, mas como inerente a um sistema violento em sua própria constituição. O grande número de personagens e destinos que se cruzam no decorrer da ação reforça o sentido dessa violência sistêmica disseminada e atualizada nas trajetórias individuais.

Nas três partes em que se divide ­– “A história de Cabeleira”, “A história de Bené”, “A história de Zé Pequeno” –, Cidade de Deus traça o painel de três décadas em que o espaço antes pacato daquele trecho do subúrbio carioca é ocupado por levas seguidas de desabrigados, favelados, marginais e lúmpens, componentes, enfim, daquele excedente populacional que a Cidade Maravilhosa foi ocultando do olhar dos turistas. Para além do que há de documental a respeito da situação-limite a que foi chegando a metrópole, é preciso destacar o processo de composição do livro, cujo centro é a grande malha textual em que se cruzam ficção e lembrança, História e histórias.

Cidade de Deus mostra-se, antes de tudo, como texto. Texto individual e coletivo, que exercita uma apropriação da tradição do romance etnográfico brasileiro. Cruzamento dialógico de experiência, ficção e memória comunitária, a narrativa retoma procedimentos rapsódicos consagrados em Macunaíma, Maíra e Grande sertão: veredas, para se constituir numa espécie de anti-epopeia do lumpesinato e de demais segmentos populares mergulhados na exclusão social. Para Vilma Arêas, Cidade de Deus

se organiza à primeira vista em feição de épica. Épica-bandida, misturada, vazada, cheia de buracos, baleada, perfeitamente de acordo com os seres que a povoam e com a assertiva que ficou famosa, “falha a fala, fala a bala”; além disso, convive e é invadida por outras formas, do relatório científico às fichinhas, passando pelas produções da mídia; [...]. Trata-se também de uma épica-negra ou afro, com Exus e Pombagiras, oráculos e sacrifícios. (ARÊAS, 1998, p. 45).

Bakhtin (1988) nos fala do romance como gênero acima de tudo paródico, que se alimenta das ruínas dos demais gêneros, promovendo a abertura para a dialogia e a heterodiscursividade; gênero em construção, inacabado e aberto à experiência. Assim, ao mesclar trinta anos de saga marginal com enxertos e reflexões de toda ordem, Cidade de Deus perverte a pureza monológica e grandiloquente da epopeia para se fazer romance no qual soam bem alto as falas da periferia.

A apropriação de casos e histórias múltiplas é praticada com maestria por Guimarães Rosa em toda a sua obra e em particular no Grande sertão: veredas. Jagunço aposentado no seu “range rede”, Riobaldo volta-se tanto para o passado propriamente “biográfico”, presente em suas lembranças, quanto para o grande tempo da memória coletiva de um sertão de muitas figuras e lugares, extraídos todos de um imaginário multicultural que sobrevive na oralidade. Vêm daí a excentricidade dos casos, como o de Aleixo das Traíras, o de Pedro Pindó e seu filho Valtei ou o da perversa Maria Mutema. A própria constituição do narrador rosiano, assim postado na escuta das vozes do passado, propicia o emaranhado de racontos que se entrelaçam ao veio principal de suas recordações. É sabido o quanto existe aí de “pesquisa de campo”, documentada nos famosos cadernos de anotações do escritor. Davi Arrigucci (1994, p. 19) chega a colocar Guimarães Rosa como “etnólogo improvisado” que funda uma “antropologia poética”, na qual “a penetração da alma do rústico se encena, ao mesmo tempo, enquanto processo dialógico de esclarecimento”.

Esse mar de histórias também se faz presente em Cidade de Deus, mas numa dimensão mais ampla. Ao imaginário popular e às histórias dos bandidos famosos se junta a investigação científica. Paulo Lins vale-se de amplo material coletado em pesquisa etnográfica, coordenada por Alba Zaluar. E, no caso, adiciona-se ao caderno de anotações o gravador, o vídeo, o jornal. Em seu texto, abala-se a figura imperiosa e imperial do Autor, com sua aura demiúrgica. O romance se ancora num trabalho de equipe, com direito a agradecimentos consignados à margem do texto.

A perda dessa aura corresponde, no plano do narrado, à fragmentação dos dramas e à ausência de um protagonista que norteie a intriga como Riobaldo. Assim, o próprio processo de produção do texto parodia o mito do autor como gênio criador isolado em seu refúgio. Paulo Lins incorpora fatos da “vida bandida” e banha sua ficção nas águas avermelhadas das páginas policiais. Articula diversas instâncias de memória, apresentando uma escrita fundada tanto na rememoração pessoal quanto no depoimento. O autor aqui surge como sujeito de inscrição, mas também de transcrição. Com isso, recupera não apenas modos de falar – e de ser – do Brasil pobre, negro e suburbano, como vai enovelando narrativas eletrizadas pela brutalidade, ainda que marcadas, vez que outra, por certa dicção poética.

Além da construção em estuário – receptáculo de histórias e da pesquisa de linguagem –, a própria matéria narrada relaciona os dois livros. Da jagunçagem à bandidagem, do sertão quase mítico à favela amedrontadora, um feixe de semelhanças e diferenças aproxima e distancia as duas narrativas. No primeiro caso, emerge o tema da vingança, que é nuclear em Grande sertão: veredas. Associada à paixão que impele Riobaldo rumo a Diadorim, a vingança se eleva, representa a punição do mal encarnado em Hermógenes e a consecução da justiça para todo o sertão. Já em Cidade de Deus, a vingança codifica uma justiça brutal e primitiva, que pune primeiramente o alcaguete. O delator é assassinado sob o silêncio cúmplice dos moradores, e seu corpo resta abandonado sem que nem uma vela seja acesa. Seu crime: ter “entregue” ao detetive o endereço de Cabeleira.

Analisando a questão da jagunçagem, Antonio Candido (1977, p. 135) assevera que o fenômeno é típico daquelas áreas onde “a pressão da lei não se faz sentir, e onde a ordem privada desempenha funções que em princípio caberiam ao poder público”. No caso de Rosa, o papel do homem de armas como agente justiceiro faz-se visível já em Augusto Matraga. No Grande sertão, os chefes jagunços alçam-se à altura de paladinos: Medeiro Vaz, Joca Ramiro, Zé-Bebelo, Sô Calendário e Titão Passos, cada um a seu modo, guerreiam em nome de algo elevado, acima deles e de seus soldados. Medeiro Vaz desfaz-se de seus bens, incendeia a propriedade num ritual purificador que inclui o espargimento das cinzas para, “relimpo de tudo, escorrido dono de si” montar o “ginete, com cachos d’armas”, reunir “gente corajada, rapaziagem dos campos”, para sair em busca da justiça. Ao que complementa o narrador: “esses homens! Todos puxavam o mundo para si, para o consertar consertado”. Exceção feita a Hermógenes, eles pelejam, muitas vezes até à morte, vendo na luta um trajeto de ascensão que, no caso de Riobaldo, toma a forma do conhecimento de si mesmo e de busca do sentido da vida.

No romance de Paulo Lins, ao contrário, a violência decorre da pobreza e da exploração e se dirige, o mais das vezes, contra os próprios moradores do subúrbio. Entre a Cidade de Deus e a "Cidade Maravilhosa" ergue-se o abismo que separa os que têm, daqueles que só terão algo se conseguirem “sabargar” muitos “otários” ou “rebentar a boa”. Os “bichos-soltos” assaltam para garantir nada mais que a vida sem trabalho ou, quando muito, para conseguir bens de parco valor, que às vezes têm que deixar com a polícia para não ir presos. Ao longo das três narrativas, a bandidagem da neo-favela vai se tornando cada vez mais autofágica, apesar dos apelos de Salgueirinho logo no início: “um tem que respeitar o outro. Cada um tem que sentir que o inimigo é a polícia” (LINS, p. 27-28). Apesar do “respeito”, Cabeleira, por um fio, não ataca a “esposa” de seu comparsa. Movidos pela droga e pela ânsia de se arranjar na vida, os jovens bandidos – cada vez mais jovens à medida que passam os anos – vão esquecendo o sentido de amizade, lealdade e solidariedade que vigora, também, entre os idealizados Capitães da Areia de Jorge Amado. O exemplo maior é Manoel Galinha, que entra na guerra por motivos aparentemente nobres para descobrir-se ao final tão bandido quanto os que jurou combater.

Do sertão ao subúrbio, das veredas às vielas, degrada-se cada vez mais a figura épica e romanesca do herói. No Brasil do narcotráfico como quarto poder, não há lugar para os valores da jagunçagem consagrados no Grande sertão. Se abriga ainda a vingança como forma primitiva de justiça, Cidade de Deus, por outro lado, denuncia a anomia de um tempo de individualismo e consumismo exacerbados. No salve-se quem puder generalizado, todos fracassam e nenhum dos jovens bandidos chega à velhice para contar suas memórias. No entanto, elas surgem no memorialismo precoce dos jovens, como no exemplo abaixo:

Recordou os ensaios do orfeão Santa Cecília de seus tempos de escola com alegria, subitamente desfeita, porém, no momento em que as águas do rio revelaram-lhe imagens do tempo em que vendia pão, picolé, fazia carreto na feira, no Mercado Leão e nos Três Poderes; catava garrafas, descascava fios de cobre para vender no ferro-velho e dar um dinheirinho a sua mãe. Doeu pensar na mosquitada que sugava seu sangue deixando os caroços para despelarem-se em unhas, e no chão de valas abertas onde arrastara a bunda durante a primeira e a segunda infância. Era infeliz e não sabia. Resignava-se em seu silêncio com o fato do rico ir para Miami tirar onda, enquanto o pobre vai pra vala, pra cadeia, pra puta que o pariu. (LINS, 1997, p. 12)

Neste fragmento, temos o tom que prepondera em todo o romance. A representação do pequeno delinquente surge despida daquele edulcoramento com que muitas vezes se constrói a figura do oprimido na literatura brasileira. A crueza dessa fala está em homologia com a das situações representadas que, ao fim e ao cabo, remetem o leitor para as agruras da condição subalterna. Não há meias palavras, assim como não há desvios românticos e outros na dramatização do suburbano habitante da “neo-favela”. O passado que surge dessa rememoração juvenil nada tem de candura ou idealização. Ao contrário, apresenta-se como tempo marcado pelo trabalho precoce e pelas duras condições de existência da infância desprotegida. Por sua vez, o uso do palavrão traz para o discurso do romance não só o que há de resíduo linguístico inerente ao baixo calão. Traz igualmente a violência da condição marginal traduzida em linguagem.

A leitura de Cidade de Deus remete de imediato ao contexto de exclusão da escrita dos pobres e dos afrodescendentes no cânone da literatura brasileira. A fala dos segmentos subalternizados no processo econômico vem sendo, via de regra, recalcada em nossas letras. Com isso, nossa história literária expõe com nitidez a hegemonia social dos segmentos economicamente bem localizados, via de regra brancos e masculinos. Em Cidade de Deus, Paulo Lins dramatiza de dentro esse cotidiano. O rarefeito lugar dessa enunciação aponta, por si só, para a secular tradição que relegou os dramas dos excluídos a matéria para o trabalho do escritor-observador proveniente de outro estrato social. Dessa forma, a perspectiva interna continua soando para muitos como novidade, pois raros são os momentos em que os segmentos subalternizados alçam-se da situação, muitas vezes folclórica, de objeto da fala alheia para a de sujeitos da própria fala.

Nota

1. Artigo publicado em DUARTE, E. A., Literatura, política, identidades. Belo Horizonte: FALE-UFMG, 2005, p. 162-9; e, também, em LINS, Paulo, Cidade de Deus. 2. ed., Edição comemorativa 10 anos (1997-2007). São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 590-7.

Referências

ARÊAS, Vilma. Errando nas quinas da Cidade de Deus. In: Praga - Revista de Estudos Marxistas, São Paulo, n. 5, p. 43-53, julho de 1998. Republicado em LINS, Paulo. Cidade de Deus, 2.ed., Edição comemorativa 10 anos (1997-2007). São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 573-589.

ARRIGUCCI, Davi. O mundo misturado: romance e experiência em Guimarães Rosa. In: Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 40, p. 7-29, novembro de 1994.

BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética. São Paulo: Hucitec/UNESP, 1988.

DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura, política, identidades. Belo Horizonte: FALE-UFMG, 2005.

CANDIDO, Antonio. Vários escritos. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1977.

LINS, Paulo. Cidade de Deus. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 9. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974.

SCHWARZ, Roberto. Uma aventura artística incomum. In: Folha de São Paulo, Caderno Mais, p. 12-13, 7 setembro 1997.

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* Eduardo de Assis Duarte integra do Programa de Pós-graduação em Letras – Estudos Literários, da FALE-UFMG e o Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade – NEIA, desta Instituição. Autor de Literatura, política, identidades (UFMG, 2005) e de Jorge Amado: romance em tempo de utopia, (2. ed., Record, 1996). Organizou, entre outros, o volume Machado de Assis afrodescendente: escritos de caramujo. (3. ed., 2020), a coleção Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica (2. ed., 2014, 4 vol.) e os volumes didáticos Literatura afro-brasileira, 100 autores do século XVIII ao XXI (2. ed., 2019) e Literatura afro-brasileira, abordagens na sala de aula (2. ed., 2019). Coordena o Grupo Interinstitucional de Pesquisa “Afrodescendências na Literatura Brasileira” e o Portal literafro, disponível no endereço www.letras.ufmg.br/literafro.

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