Como Zumbi se apresenta diluído no rio literário de Oubi Inaê Kibuko

 

Rodrigo Pires Paula*

 

Em seus textos publicados nos Cadernos Negros, não abandonando de forma alguma a estética do bem-escrever literário e a narrativa bem articulada, Kibuko trata de temas cotidianos como a vida de um morador de favela, um mero passante da rua, um amigo que envia uma carta a outro. Em seus ensaios críticos utiliza-se de argumentos plausíveis e bem articulados para defender a causa negra e o lugar da literatura afro-descendente no cânone literário nacional.

O texto crítico de Kibuko “Cadernos Negros: um reduto de escritores quilombolas desafiando um país, também literariamente racista”, sobre o espaço do negro na ficção, expõe as causas defendidas pela literatura negra. Disserta sobre o privilégio da escrita da elite branca dominante em detrimento da literatura dos dominados, que é relegada ao descaso dos porões, principalmente quando questiona o sistema vigente de dominação ideológica e racista.

Num país historicamente racista como é o Brasil, a sua produção literária é dominada quase que totalmente por escritores brancos ou totalmente pelos mesmos. (...)

Tudo que fazemos de forma contrária às regras ditadas pelas classes dominantes termina ficando escondido no porão da ignorância. Daí a crença que a produção literária brasileira é totalmente dominada por escritores brancos. (Criação Crioula, nu elefante branco, p. 135.)

 

Aponta, além de tudo, para a existência do negro que se afasta dos propósitos da causa da negritude e que assume em sua literatura um posicionamento preso a estereótipos, como João Felício dos Santos em seu romance Ganga-Zumba, que é mostrado, como o exemplo do quanto o contexto de dominação está introjetado em alguns escritores.

 

(...) cito na íntegra, (sic) o depoimento de Marcio Barbosa, também presente nos Cadernos Negros 8 – contos: “Sobre a questão da abordagem de personagens negras na literatura feita por brancos, analiso uma questão específica: João Felício dos Santos, no seu romance Ganga-Zumba, propõe-se a contar a história de Zumbi dos Palmares. O Zumbi que o autor nos mostra é, porém, um Zumbi desprovido de qualquer interioridade; um Zumbi desprovido e construído por vários estereótipos psicológicos comumente atribuídos aos negros: a falta de raciocínio, a sensualidade exagerada, etc. (...) (Criação crioula, nu elefante branco, p. 136)”.

 

No ensaio “1955-1978 - 23 anos de consciência”, nota-se uma profunda inquietação do autor diante das mazelas raciais que acometem o povo negro. Kibuko se revela um perfeito crítico da sociedade. Mesmo porque foi vítima de inúmeras interpelações relativas a sua condição social e racial. Como por exemplo, Kibuko narra os momentos, quando estudava, em que sofreu coações, agressões físicas e morais, por causa da sua cor de pele.

 

Recordo que certa vez na escola em que eu estudava, havia um aluno branco metido a valente e que sentava na minha frente, ele tinha o costume de bater em todos os meninos da escola e quando ele cismava (...)

Certo dia, eu estava com cãimbra nas pernas de tanto ficar sentado, e ao esticá-las para que aquele incomodo passasse, os meus pés bateram sem a mínima intenção nos calcanhares do fulano. Foi a conta certa. Ele virou, me xingou de “negro filho-da-puta”, mirou bem no meu rosto e antes que eu pudesse me desviar, soltou uma cusparada que acertou meu rosto em cheio, bem na altura da testa. Depois, avisou que me pegaria na saída e se acomodou na sua carteira rindo tranqüilamente.

Feito em bambu verde, eu fiquei tremendo de medo e vendo aquela coisa pegajosa e fedorenta escorrer pelo meu rosto. Apesar do medo que sentia, um sentimento de ódio, de vingaça... instintivamente brotou em mim (...) (Reflexões, p. 73-74)

 

Este texto é uma procura do autor pela justificação de seu envolvimento como escritor que se assume como negro.

No conto “Presença”, a personagem Olufêmi que vivia com a mãe, pois, já tinha perdido seu pai fazia algum tempo, num dia corriqueiro, despertou-se com o canto do galo, engoliu seu café modesto, fez uma oração, e saiu em busca de emprego. Quando retornou cansado da luta para conseguir trabalho, teve que enfrentar a mãe, como de costume. Ela, que ignorava suas explicações, continuou enchendo-lhe os ouvidos de “impropérios e acusações roxas, proibindo-lhe inclusive almoço e janta”. No âmbito da discussão, foi ameaçado de despejo pela velha, que, ainda, ameaçava cozinhar o galo de estimação que ganhara, Olufêmi, de seu pai. Sai de casa louco e desorientado, “sem rumo definido” e senta-se num banco de praça, pensativo, absorto nas recordações do pai. Depois de perambular pelas ruas, é abordado pela polícia, sem motivo aparente, sofre uma revista vexatória e agressiva moral e fisicamente. Depois de tudo, continuou sem destino, ignorando a possibilidade de voltar para casa, pelas represálias que podia sofrer. A fome, que fatalmente o envolvia, o obrigou a pedir comida num restaurante, no que ouviu: “- aqui não é albergue de vagabundo. Vá procurar sua turma, negrão!”. Porém: “num beco sem saída, Olufêmi se viu!”. Então, surgiu o motivo-razão para o roubo que fizera a um supermercado, quando levou algumas frutas, burlou a segurança, a princípio, mas na saída foi interpelado. Mesmo conseguindo ludibriar, partiu em desesperada carreira pela rua: “em diversas bocas soaram gritos, pegas, injúrias, palavrões”. Apavorado, gritava que não era ladrão e que estava com fome. Quando entrou em uma rua estreita e sem saída, envolvido pelo tumulto, pela gritaria e pelas agressões que ali o envolviam, recebeu um tiro em cheio na nuca. Gritavam sugestões de esquartejamento. O corpo sumiu e no lugar da justiça, “um belo e enorme galo preto, de olhar profundo e perturbador” bicava uma suculenta maçã. Ruflando asas, o galo entoou um longo e ecoante canto gargalhante, desaparecendo no infinito. (Cadernos Negros 12, p.75-80)

O autor traduz uma moral trágica, expressando um contraste entre a maldade alheia e a inocência desesperada de quem busca um emprego ou rouba para comer. Um conflito que mostra a tensão entre o mundo externo e o seio familiar tão agressivo quanto. A personagem Olufêmi é mergulhada num beco sem saída, como um emparedado em meio a um festival de escârnio do observador passivo. A moral do conto perpassa as vísceras do desprezo e da crueldade, encadeando o gozo de um, por meio da desgraça do outro.

No conto “Antes que me espremam”, o narrador conta uma história que fala de uma outra, numa espécie de palimpsesto, ou seja, constrói uma narrativa por encaixes, em que a trama se realiza pela relação entre as duas. A personagem Kandengue, por meio de uma carta que envia para seu amigo Muxima, relata sua fuga, usando justificativas pronunciadas por meio de metáforas: “bati em retirada. Antes que me espremam. Com munição pouca é bobeira desafiar fortíssimos fronts. Pra kamikaze não levo jeito”. Assim, vai morar com a solidão que “sem lugar para ficar” lhe “suplicou pousada” e foi recebida de braços abertos, por necessidade do fugitivo. A personagem Muxima, ao terminar a leitura da carta, abre a mente para uma outra mensagem: “com reflexões cutucando o cocoruto, a partir de si mesmo (...) Lembrou e prendeu-se à mensagem dum pôster visto na casa de um amigo, onde se lê: “MEANS WANNA BE IS NECESSARY”. (Cadernos Negros 12, p. 82) Esta última abre caminho para a reflexão em torno da vida das personagens.

No texto “Como uma mulher de verdade”, o narrador demonstra a busca de um homem pela felicidade. A personagem encontra seu grande amor numa boneca preta, passando a dedicar seus cuidados a ela, depois de uma longa procura pela realização sentimental, causando inveja aos casais convencionais, que não a encontram. É importante ressaltar a duplicidade de sentido do título do conto, que tanto remete ao objeto boneca, efetivamente, geralmente de plástico ou porcelana, como a desumanização do ser humano, da mulher negra vista como objeto sexual, que no contexto ficcional realiza o papel da companheira como se fosse uma mulher de verdade.

No referido conto, numa mordaz ironia, o narrador desnuda a frieza do mundo atual nas relações humanas. O texto ressalta a artificialidade do sentimento amoroso, na qual o ser humano é substituído pelo objeto. Este, uma boneca preta, que representa metaforicamente uma prostituta, surge numa sutil, mas não menos mordaz, crítica ao posicionamento social da sociedade frente à mulher negra, vista como fonte de prazer sexual, objeto de pura sensualidade e gozo, deprovida de sentimento, caráter e inteligência.

É interessante destacar, também, que essa boneca preta não foi encontrada aleatoriamente, mas apresentou-se como o fruto de uma busca incansável. Além disso, possuía “tudo que era necessário para satisfazer seus gostos e vaidades”.

Numa primeira e mais ingênua leitura, indaga-se: como uma boneca pode satisfazer o gosto ou a vaidade de algum homem? Isto evidencia a tentativa de afastamento deste em relação à sua realidade social. Ou de outra forma, fazendo da ironia do narrador a minha pergunto: como uma mulher negra e prostituta pode satisfazer as aspirações de um homem que busca uma companheira para fazê-lo feliz, formando um casal bem-sucedido? Porém, por outra parte, revela-se uma aproximação: “(...) tal era a afinidade que os unia, causando inveja aos casais menos afortunados” (Cadernos Negros 12, p. 82) Mas, qual era a afinidade que os unia? A indiferença que a sociedade os delegava, ou seja, tanto ao homem quanto à boneca preta, que é uma metáfora da mulher negra, vista como objeto sexual, em nossa sociedade, e que legitimiza a relação, que causa inveja aos casais convencionais menos afortunados, pertencentes à sociedade branca, racista e estamental. Heloísa Toller Gomes, no seu texto “O Discurso Literário”, relatando sobre o tratamento permissivamente erótico do discurso literário brasileiro como uma tentativa de ocultamento da verdade nas relações inter-raciais, afirma:

O contato erótico-amoroso entre branco e não-branco jamais se mostra configurado através de uma perspectiva positiva. Na verdade, ele é tematizado apenas sob a ótica da violência e da perversão, ou seja, na dramatização de situações moralmente condenáveis, como o assédio da escrava pelo senhor, freqüente na literatura de tese abolicionista. Isto sucede porque, no conceito de nacionalidade patente nessa literatura, não se concebeu nem como mito um país em que as “raças” se mesclassem.

 

A produção ficcional de Kibuko, assim como toda literatura afro-brasileira, surge como suplemento da produção literária nacional, questionando os artifícios literários desta última, desconstruindo as antigas relações de poder no discurso tradicional e reterritorializando o negro neste contexto.

Analisando os microcontos de Kibuko (Maria das Dores; Pedro e Josefina ‘começo, meio e fim’; Contraste; A Girar! Que maravilha! A Girar!), publicados nos Cadernos negros nº 4, percebe-se que expressam uma linguagem acessível, ao mesmo tempo em que são construídos por um jogo de significados que toma o leitor de assalto, deixando-o surpreso e o levando a questionamentos existenciais. Estes últimos promovem o descortinar da moral da história, que se realiza com flagrantes no final dos contos. Este tipo de narrativa encontra-se desvinculada da técnica do gancho que proporcionaria o fio da meada, como nos enredos tradicionais. Por se tratarem de narrativas curtas, que se apresentam em flashes instantâneos e pelas descrições de fatos cotidianos que se realizam no nível primeiro de tais textos, pode-se perceber que esses micro-contos assumem a forma e o aspecto de matéria jornalística, porém, a similaridade com tal gênero fica restrita a esta característica.

O poeta, contista e crítico Oubi Inaê Kibuko expressa em sua obra o cerne da literatura afro-brasileira, na medida em que se assume como sujeito da enunciação. E, além disso, elabora uma linguagem condizente com sua literatura. Ou seja, elabora uma linguagem de fácil entendimento, porém, que se sustenta por uma “solidez ficcional” característica dos grandes escritores que fazem parte do cânone tradicional.

 

Referências Bibliográficas

Cadernos negros 4. Quilombhoje (Org.). São Paulo: Ed. dos Autores, 1981.

Cadernos negros 12: contos afro-brasileiros. Quilombhoje (Org.). São Paulo: Ed. dos Autores, 1989.

 

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