Tia Honorata: de tanta lenda e tanto mito vive

Rafael Gomide*

Nitidamente uma ficção de fundo histórico, o romance Mandingas da mulata velha na cidade nova (2009), de Nei Lopes, traz à tona, a vida de Hilária Batista de Almeida, mais conhecida como Tia Ciata1. Entretanto, por se tratar de uma narrativa ficcional, Nei Lopes entroniza uma persona para Hilária, que é o de Honorata Sabina da Cruz.

A história começa em sete de janeiro de 2004, exatamente 80 anos após a morte de Tia Hilária e também, claro, de Honorata, que no livro é conhecida como Tia Amina. Nesse dia, dois operários estão demolindo um sobrado na rua da Alfândega, onde parece ser consenso que Tia Ciata tenha morado quando mudou-se para o Rio de Janeiro, já que nasceu na Bahia. Os dois operários quebram com cuidado as paredes para não danificarem o imóvel vizinho e é quando um deles encontra um fio longo, de linha escura saindo da parede. Os dois param o serviço para conferir o que era. Encoberto por essa linha havia um saquinho de tecido que guardava “dois pedaços quase quadrados de alguma coisa como pele de animal. E em cada um, riscados com uma tinta vermelha, escura, parecendo sangue, muitos rabiscos, grafismos, desenhos, feito uma escrita.” (LOPES, 2009 p. 18) E o leitor percebe o fio se afastar “como uma cobrinha”, percorrer ruas e avenidas do centro da capital, até mergulhar no tempo da narrativa, “oitenta anos antes”...

Após essa cena inusitada, que lembra famosa passagem de Gabriel Garcia Marquez, o texto assinala o ano de 1924, como momento em que se localiza a ação. A partir de então é que começa propriamente o enredo do livro. Nesse novo universo, surge o jornal Tribuna do Rio, popular na época por tratar de casos banais ou sensacionalistas, ou simplesmente mitos. Conhece-se também o protagonista do livro, Henrique da Costa, conhecido como Costinha ou Diga-mais, por ser o seu jargão nas entrevistas.

De plantão no jornal, Costinha recebe um telefonema informando sobre a morte de Dona Honorata Sabina da Cruz, a Tia Amina. Interessante o fato de que o narrador compara a “Tia Amina” a figuras conhecidas de nossa história: “A cidade ainda não se tinha refeito da irreparável perda (...) [de] Rui Barbosa de Oliveira (...). E seis meses depois (...) do marechal Hermes da Fonseca”. Assim é possível perceber um ponto de vista “democrático” do narrador, na medida em que considera essas três mortes como capazes de “sacudir” a capital federal. Fazendo um paralelo com a realidade, Tia Ciata realmente morreu no ano de 1924 aos 69 anos, tal qual Tia Amina.

Ávido pela informação que recebe, Costinha vai para a rua tentar saber mais sobre Tia Amina, no que não obtém sucesso, uma vez que todos aqueles que teriam algo a dizer, então abalados e sem condições de fornecer alguma informação sobre ela. Porém, para não deixar passar em branco a morte de Honorata, o Diga-mais recorre ao arquivo do próprio do jornal para escrever a matéria.

No capitulo seguinte, tem-se então o artigo de Costinha sobre a vida e morte de Tia Amina. Nele, o jornalista informa resumidamente a trajetória da personagem, porém começa o texto com uma exaltação da raça negra, ao escrever, por exemplo, que:

quando se escrever, com honestidade e sem subterfúgios ou fantasias, a História do nosso amado país, aí sim, é que poderemos dar o merecido valor a uma raça cujo trabalho incansável, com sangue, suor e lágrimas, contribuiu decididamente para forjar a têmpera e o caráter do nosso povo. (LOPES, p.25-26)

Assim, mais uma vez o narrador parece querer explicitar a sua ideologia de que os negros devem ser vistos como um fator importante na História do Brasil, além de que os brancos, nesse romance não são heróis, são pessoas comuns, inseridas nas comunidades afrodescendentes, protagonistas de fato do romance, no sentido de que tudo ocorre dentro de seus “domínios”.

Entretanto, toda essa curta pesquisa de Henrique mostra-se vã, pois no dia seguinte à publicação da matéria, o jornal recebe a carta de um leitor “espírito de porco”, encoberto por pseudônimo, que recrimina praticamente todas as informações que Costinha deu a respeito de Tia Amina. A mais marcante, sem dúvida, é a passagem na qual o jornalista diz que Tia Amina foi tão importante que chegou a ser pintada por Debret. Como o próprio autor da carta censura, Debret morreu em 1848, em Paris, e Tia Amina (Tia Ciata) nasceu em 1854, na Bahia, ocorrendo assim um grosseiro anacronismo.

A carta revoltou o diretor-presidente do jornal, que deu o prazo de até “segunda-feira” para que o Diga-mais desfizesse esses equívocos. O que ocorre então no romance é que Costinha, necessitando pesquisar sobre a vida de Tia Amina, vai em busca de pessoas que possam dar alguma informação relevante a respeito dela. Então, o que se tem dos capítulos 4 a 25, é essa investigação do jornalista.

Nessas passagens, ele entrevista várias pessoas, das mais variadas idades e posições sociais. Entretanto, como é comum nas entrevistas, muito do que ele obtém, não será utilizado, pois as pessoas não falam diretamente da vida de Tia Amina. Isso pode ser exemplificado na visita que ele faz ao Tenente Honorato. Este diz que não conhecia a Tia Amina profundamente e não pode dar um parecer sobre ela, menos ainda sobre os rituais religiosos que ela praticava; toda a informação que ele dá é sobre os carnavais, dizendo que quando ia festejá-los, sempre passava em frente à casa dela, pois ela era uma referência nessa festa. A propósito, além do carnaval, Tia Ciata foi também uma importante liderança da “Pequena África” 2.

Embora sejam minoria no romance, há também personagens que não gostavam de Tia Amina, bem como dão pouca importância à morte dela; isso talvez como uma forma de mostrar os lados negativos de uma figura histórica, que, assim como todo ser humano, também tinha os seus desafetos. Exemplo disso é o antigo vizinho de Honorata, o médico Lavenère. Esse diz que “aquilo lá (casa de Honorata) é um antro de marginais da pior espécie (...). Pode escrever. E Eu assino o que estou dizendo”.

Após umas três vãs entrevistas, e antes de muitas que virão, Costinha chega à casa de Oiá Lona, a primeira pessoa a fornecer informações úteis sobre Norata (como era conhecida antes do apelido “Amina”). Relata que Tia Amina encontrou uma pedra amarela no rio, que segundo os entendidos, era pedra de Oxum. Então foi aconselhada a “fazer o santo” e breve, antes que algo de ruim acontecesse com ela. Foi assim, então, que Tia Amina foi iniciada no culto afro-brasileiro.

Um ponto que merece destaque nessas entrevistas é a maestria com que o autor constrói seus personagens, atribuindo-lhes características únicas dentro do romance. Notório também é o conhecimento do mesmo autor acerca de religiões e costumes africanos, explicitando isso em vários personagens, como por exemplo, o velho Abedé, “lúcido e muito bem disposto apesar de quase centenário” (o qual, na segunda parte do livro, será mostrado como uma pessoa importante na vida de Tia Amina). Abedé é conhecido por suas plantas milagrosas, que são capazes de tudo, até mesmo de causar a morte. E escrevendo do jeito que se fala, o autor personaliza ainda mais os personagens, ressaltando a oralidade que marca seu registro linguístico: “Lívuro num insina sabiduria...”.

Corroborando uma visão que privilegia a minoria e de certa forma enaltece a cultura negra, aparece o doutor Herculano Moreira, “mulato escuro e forte”, um negro que teve acesso aos estudos, pois era filho bastardo de um senhor de engenho e por isso, este, “talvez por culpa, fez questão de assumir” os seus estudos. Demonstrando profundo conhecimento sobre a cultura afro, como o próprio Henrique se surpreende, Herculano diz:

No carnaval, todo ano, a praça é um exemplo disso que estou falando. O que acontece lá é uma catarse coletiva. É um mundo de sentimentos, de crenças e desejos, inaceitáveis para a sociedade branca, que explode ali. É a ebulição de todo um inconsciente ancestral. Ali vão se encontrar tanto os feiticeiros das selvas equatoriais quanto os marabus das aldeias que o islamismo arabizou; tanto os santos sábios de Tombuctu quanto os da Etiópia(...) (LOPES, 2009, p. 93)

Como foi dito, essa investigação irá até o capítulo 25, o último da primeira parte do romance. Na segunda parte, chega à casa do jornalista um rapaz mulato, bacharel em Direito e Ciências Sociais que quer ajudá-lo na pesquisa sobre Honorata Sabina. O rapaz, João Flávio, é fascinado pela obra de Nina Rodrigues e, assim como este, quer também ser antropólogo. Então, entrega 22 rolos para Costinha que continham as informações obtidas sobre Tia Amina.

Nesse segundo segmento do livro, muita coisa lida na primeira, será vista sob outra perspectiva, além de ser mais produtivo para o que o Diga-mais deseja. Num mise en abyme, a vida de Tia Amina é contada desde antes de nascer, pois os rolos começam com a história de seu pai, a quem ela reencontra depois de muitos anos, sob uma forma mística.

Reafirmando o caráter ficcional e dúbio de sua obra, o autor parece querer confundir o leitor. Tal afirmação se baseia comparando a passagem da primeira parte do livro, quando o neto de Tia Amina, o Bubu, conta o que sabe ao repórter e o que se conclui da leitura dos rolos do bacharel. Segundo Bubu, na página 110, Honorata engravidou ainda na adolescência de Normando e foi prontamente expulsa de casa pelo seu pai, embora defendida pela mãe. Entretanto, o que se lê nos rolos de João Flávio é que a mãe de Honorata, de nome Sofia, morreu no pelourinho a chibatadas pouco tempo depois de Honorata ter nascido.

Misturando ficção e realidade na sua obra, o autor também inclui passagens verídicas, como a que ocorreu com o então presidente do Brasil, Venceslau Brás Pereira Gomes, ao que o autor ainda parece fazer uma referência ao próprio nome completo, porque “cujo nome, nas enciclopédias, muitas vezes escapa ao leitor que vai procurá-lo pelo nome Brás” (LOPES, 2009, p.136, grifo meu). O presidente, depois de muito sofrer com uma ferida na perna, a qual nenhum médico curava, aceita o atendimento de Tia Amina e por ela é curado. O que também parece ser real é que como forma de pagamento, Honorata pediu apenas um emprego para seu marido que, a partir de então, se tornou funcionário público.

Após a leitura do material, Costinha se anima com a possibilidade de escrever um livro sobre a baiana Norata, e arma uma esparrela para João Flávio. Porém, não é possível precisar quanto tempo passou desde a primeira entrevista até o dia que Costinha leu o último rolo de João Flávio. E, logo, Roberto, dono d’A Tribuna já está “mais preocupado com a morte de Lênin” e não noticia a pesquisa. Seguindo na ideia de publicar em livro, Diga-mais vai até Francisco Guimarães, o qual fica profundamente irritado com o que leu, pois novamente se tratava de ficção e mito, e é quando Costinha se arrepende quando lembra o que pagou pelos rolos a João Flávio.

Importante também é ressalvar a cultura negra e seus representantes no Brasil. No enredo, várias figuras históricas afro-brasileiras vão aparecendo, às vezes de uma forma que pode passar despercebida pelo leitor, como é o caso de Pixinguinha, citado apenas de passagem: “e o samba agora já tem até flauta. O moleque Pixinguinha chegou com disposição.” Outros aparecem sendo criticados, como é o caso de Nabuco, pois, para João Pereira, “o que ‘ele’ faz é modismo, reflexo de coisas que viu na Europa (...). E, por isso, o vê apenas como mais um racista travestido de amigo dos negros.” Mas o que se tem em maior número são referências a célebres figuras negras no Brasil, como Antenor Nascentes, André Rebouças, Juliano Moreira, José do Patrocínio, José Ferreira de Menezes, dentre outros.

Diante do exposto, destaca-se a intenção nítida de dedicar o romance a uma figura histórica, importante no Brasil, “do mesmo patamar de Rui Barbosa e Hermes da Fonseca”. Um autor que é negro e se identifica com o seu povo. Assim, Nei Lopes vale-se de elementos históricos e lendários para construir sua narrativa, já que é possível que, mesmo se fizer uma pesquisa a fundo sobre Tia Ciata, não se obterá muito sucesso, uma vez que as práticas africanas no Brasil eram proibidas, logo, quanto menos informações a polícia tivesse sobre os líderes dessas práticas, mais protegidos estes estariam. Dessa forma, o leitor é atraído por essa incerteza e será impelido pela curiosidade a chegar ao fim do romance.

 

Referências Bibliográficas

LOPES, Nei. Mandingas da mulata velha na cidade nova. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2009.

_____. Enciclopédia brasileira da diáspora africana. São Paulo: Selo Negro, 2004.

 

* Rafael Gomide Martins é graduando em Letras pela UFMG.

1 “Tia Ciata (1854-1929): Nome pelo qual foi conhecida Hilária Batista de Almeida, personagem do samba carioca, nascida em Santo Amaro da Purificação - BA, e falecida no Rio de Janeiro. Radicada na antiga capital do Império e, mais tarde, da República, desde cerca de 1876 atuou como uma das lideranças da “Pequena África” carioca. Mãe-pequena do terreiro de João Alabá e sambista pioneira, sua casa na rua Visconde de Itaúna, na Cidade Nova, é tradicionalmente considerada o local onde teria sido composto o samba Pelo telefone, tido como o primeiro gravado em disco (...)” (LOPES: 2004, p. 648)

2Pequena África: expressão usada (...) para designar a base territorial da comunidade baiana no Rio de Janeiro, estabelecida, a partir dos anos de 1870, naregião que se estendia dos arredores da Praça Onze até as proximidades da atual Praça Mauá. Compreendendo as antigas localidades e freguesias da Cidade Nova, Santana, Santo Cristo, Saúde e Gamboa e constituindo-se em importante pólo concentrador de múltiplas expressões da cultura afro-brasileira, da música à religião, a Pequena África foi o berço onde nasceu o samba em sua forma urbana. Na mesma região se estabeleceram os primeiros candomblés cariocas. (...) O estabelecimento dessa comunidade no Rio expressa, também na divulgação, fora de seu âmbito, de produtos como a culinária de origem africana, a qual, em 1881, já era oferecida em restaurantes como o Bahiano, que servia vatapá de garoupa, moqueca de peixe, angu de mocotó e cuzcuz de tapioca.” (LOPES, 2004, p. 524)

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