A criação literária de Marcos Dias e a reflexão histórico-social

 

Luiz Henrique S. Oliveira*

 

Aqui

finco raízes

 

Mesmo desterrado

de seus espaços

mais nobres

 

Meus passos ainda

caminhares de fogo

pelos contornos

de seu corpo

 

(Encruzilhada)

 

(poema Pátria, de Marcos Dias)

 

 

 

De Rebelamentos (1990), passando por País indig(o blue)nação (1995), chegando a Estudos sobre a c/idade (& exercícios de sobrevivência) (1997), o processo de criação de Marcos Dias evoluiu da ampla exploração da catarse para o rigor poético. Percebe-se, primeiramente, uma exaustiva pesquisa dos recursos empregados pelo autor quando da elaboração textual; depois, a experimentação das possibilidades das diversas “sintaxes textuais”. A temática do autor permanece centrada no campo histórico-social, ora de modo direto, ora de maneira mais sutil. É justamente esse grau de maior sutileza que permite o emergir de uma reflexão sobre o ser individual em meio à questão étnica.

Percebem-se influências composicionais notadamente dos principais modernistas de 22, de 30, de Ferreira Gullar, da poesia dita marginal dos anos 70, do surrealismo e da neo-vanguarda anos-60. Entre os escritores afro-brasileiros, notam-se reverências a Adão Ventura, Paulo Colina e Luís Gama, o que pode ser comprovado pelas inúmeras referências feitas ao longo de toda a obra poética.

Do ponto de vista da linguagem, merece destaque a incessante busca pelas possibilidades semânticas dos signos. O valor semiótico inerente ao signo (seu significado) remete o leitor a uma rede composta por outros signos. Estes (novos) signos derivados de um outro anterior, com todos os seus efeitos, ações e reações aparecem circulantes, embora visíveis ou invisíveis no meio social (Bakhtin, 1999, p. 32).

Para captar as ressonâncias de uma determinada rede semântica é preciso aproximar o signo em evidência de outros signos já conhecidos ou em processo de conhecimento. A compreensão é um deslocamento de signo em signo continuamente. O sentido, desta maneira, passa ininterruptamente de um elo semiótico a outro elo semiótico de natureza semelhante. Em nenhum ponto a rede se desfaz; em nenhum ponto a rede deixa de ter uma configuração material, ou seja, verbal ou não verbal.

Cada domínio cultural possui seu material ideológico específico e “formula” cadeias de signos que lhe são peculiares e que não se aplicam a outros domínios. Assim, as cadeias são criadas por funções ideológicas precisas, às quais permanecem inseparáveis.

Polissemias, paralelismos semânticos, movimentos lúdicos com os signos em geral marcam estilisticamente toda a expressividade de Marcos Dias. É o que ocorre, por exemplo, na abertura de Rebelamentos:

Estes rebe/lamentos

são de

Ormezinda, meu início

e

de

Natally, minha continuação? (p.7)

 

Sejam os “rebelamentos”, os “lamentos” ou os “rebeldes lamentos” apontam para uma necessidade de expressão, especulo, tanto do poeta quanto de seu coletivo. Vejamos outro exemplo:

A dor (da dor) é mínima

Que re/par/ti/da

Em mil ped

aços

(...)

Mas nos Quilombos que, rei, inVENTO

A justiça é tocha e reLUZ ( “DOS QUILOMBOS”, In Rebelamentos, p. 22.)

 

Neste texto, a disposição formal dos signos corroboram os potenciais conteúdos, o que, por sua vez, ativa a rede contínua de significados proposta por Bakthin. Este mecanismo oferece ao leitor ampla subjetividade no trato poético. Entretanto, o gradiente semântico circula entre os limites da trajetória diaspórica africana. A África do poeta está situada “no próprio lugar da cabeça”, como apontou Ricardo Aleixo (In Estudos sobre a c/idade (&exercícios de sobrevivência), p. 63). É também “na cabeça” que a África de Dias traz consigo as preocupações diárias pela sobrevivência, pela solidariedade entre o coletivo afro, os amores e desamores da existência negra, a crítica à democracia racial e ao autoritarismo.

Problemas inscritos na pele do negro contemporâneo permeiam a obra de Marcos Dias. É o caso de “Interiores”, poema presente em Rebelamentos. Os “rebelamentos” se dão numa instância de revolta do “eu” poético contra as formas várias de opressão, ou seja, espécie de procura ininterrupta por encontrar-se no mundo e renunciar de uma vez por todas aos lugares-comuns outorgados às alteridades; em questão o interior do sujeito enunciador, “estentóreo guardião/ das emoções mais ínvias” (op. cit, p. 9).

Em busca de sua identidade multifacetada e dilacerada, cujo esboço se faz presente já no subtítulo de sua primeira obra (“das absconsas Áfricas da minha diáspora”), o poeta luta por sua afirmação enquanto sujeito, embora a batalha seja árdua porque contra “turbilhões de vozes/ecos/” (p. 9), que pretendem dizer quem/como se deve ser; vozes brancas que oferecem “tantos os rumos” (p. 9 ). Na busca pela referida afirmação, resta a escrita, já que esta liberta e mantém a chama da vida acesa. Nas palavras do autor mineiro, “resta-me o ato/quilombola desse meu/ escreviver em fogo/ Resta-me: a negravelu/dada noite/ do corpo de minha ialê” (p.9). O “ato quilombola” escreve para além da biografia do poeta, uma vez que a literatura simboliza também uma técnica de combate contra as inumeráveis formas de opressão.

Desistir da luta ou cansar-se dela: jamais! A escrita, para o poeta, é a trincheira maior da batalha pela sobrevivência, haja visto que os pedaços do dilacerado eu-poético não se rendem ao banzo: “banzo é quando olho/ para dentro de mim, e percebo/ que boa parte do meu ser/ ficou do outro lado do mar” (p. 9). O banzo não deve ser entendido no texto como mazela física e sim fragmentação do interior do sujeito enunciador; a compreensão do termo passa, pois, por um processo de auto-reflexão e também da admissão da condição perecível (e frágil) enquanto ser humano.

O Brasil é tema em “Caderno da sociedade brasileira”; em xeque, a história do país. Não raro, esta é opaca, pois, “f/atos” de bravura de antepassados foram apagados em nome de uma “História Oficial”; parafraseando Paul Ricoeur (La memoria, la historia, el olvido) “História é antes de tudo (des)memória”. Segundo Marcos Dias, “o emaranhado da desmemória/ tece uma cora de f/atos/ capciosamente esquecidos” (País Indig(o Blue)Nação, p. 11). O esquecimento de “f/atos” históricos é uma forma de calar o oprimido e construir uma “narrativa sobre a nação” notadamente elitizada, branca, falocêntrica e eurocêntrica. Os personagens históricos que se rebelaram contra a ordem estabelecida, não raro, viram seus anseios despedaçados: “na contracorrente/ Gangas/Zumbis soçobram/ sem quase nunca chegar” (p.11). Seja “de cima para baixo ou de baixo para cima” na pirâmide social, as estruturas do poder pouco foram alteradas ao longo da História. Um exemplo: os nossos ancestrais, segundo o autor, carregam, em seu leito de morte, o legado do esquecimento e não monumentos que atestem a memória de seus feitos: “nossos ancestrais esplendem/ todo o palor/ de sua i n v i s i b i l i d a d e” (p. 11). Ao fim do poema, constatam-se versões questionáveis da “História Oficial”: “o crivo de minhas releituras atesta/ que a história oficial mente/ até nas e n t r e l i n h a s” (p. 11).

O poeta mineiro ainda destaca os “exercícios de sobrevivência” enquanto práxis afro-brasileira. Em paráfrase a Simone de Beauvior (O segundo sexo), “o ser humano se coloca quando se opõe”. Nesta linha de raciocínio, encontra-se a obra Estudos sobre a c/idade (& exercícios de sobrevivência). O desafio de entender o ser humano enquanto metonímia do espaço em que vive é colocado ao leitor:

Uma cidade habita um homem

como a/s alegria/s e todas

as interrogações de um corpo

vivido e nele se perpetua”(p. 13)

 

“Uma cidade habita um homem” ou “um homem habita uma cidade”? Homem e cidade estão em consonância ou em oposição? Eis os primeiros jogos de sentido, já que o trecho demonstra a inquietação existencial do eu-poético, “poço e trans/ bordamento de inquietações [em] dias/ da infância casos de amor/ êxitos e fracassos pessoais” (p.13). É de se levantar o caráter autobiográfico do poema pois “dias/ da infância” pode simbolizar a infância do sujeito empírico Marcos Dias. Dessa forma, há então, uma fusão entre o corpo que se inscreve e o sujeito empírico. Não obstante, o lúdico uso do vocábulo “alegria/s” também demonstra que esta pode ser singular, única ou contínua no ser humano – dependendo das condições em que se exercita para (sobre)viver. Estar no mundo é, antes de tudo, ter contato com o outro, é construir uma identidade e compartilhar temas para a construção do saber:

 

“(:Leitura do outro Geo

grafia de corpos em ato

de exploração mútua ciência

toques e dedilhações)

Habita uma cidade um homem

Como memória de pele, canção” (p. 15)

 

O texto aponta para a leitura tanto do relevo da cidade quanto para a compreensão do “relevo corporal” dos habitantes desta cidade, uma vez que o habitante está contido na cidade, mas a cidade também está contida na figura do habitante. Em outras palavras, um é processo-produto do outro.

Encontramos ainda um diálogo crítico (panfletário na expressão de alguns) com o passado. Refiro-me a “2022 – NARRANDAÇÕES”1, poema dividido em seis partes (1900, 900-10, 20-30, 40-50, 60-70 e 80-90), cada qual iniciada por uma “glosa poética”. O texto sustenta-se em temas históricos e sociais, “narrando ações” do povo brasileiro no contínuo do século XX. Cada secção rememora sucintamente parte do conteúdo do período que demarca e os versos finais intertextualizam-se com vozes da Tradição.

A primeira parte do poema, 1900, por exemplo, traz ao leitor o contexto de transição da Monarquia para a República. Embora o sistema político brasileiro tivera sido modificado - com o fim do Império de D. Pedro II, a lógica do antigo regime ainda assombrava a ordem recém instaurada. Surgia nesse momento um questionável conceito de cidadania, amparado pela obtenção de direitos e deveres. No entanto, a população afro-descendente não se viu como sujeito de seu tempo. Enquanto isso, o “progresso” vagarosamente chegava ao Brasil e, com ele, os imigrantes europeus:“ república é nova/ & a velha escravidão”.

Por fim, em linhas gerais, o conjunto dos textos de Marcos Dias, como afirma Maria de Lourdes Reis, no comentário contido em Estudos sobre a cidade (& exercícios de sobrevivência) representa um “grito de revolta denunciando seu inconformismo diante da nação injusta. Trabalha as palavras como que brincando e busca encontrar o referencial do negro no cenário atual”. Tratamos, indubitavelmente, de um poeta que trilha não só os caminhos da afro-descendência, pois em seus escritos cabem outras alteridades, na medida em que aborda questões sócio-histórico-culturais de grande parte do Ocidente.

 

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Notas 1 Ressalva seja feita, a versão de “Narrandações” utilizada neste texto foi enviada por Marcos Dias, pois, segundo o próprio autor, em versão definitiva. Originalmente, o poema foi publicado nos Cadernos Negros, nº 21, pelo Quilombhoje (SP).

 

*Mestre em Teoria da Literatura pela UFMG.

 

Referências bibliográficas

BAKTHIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1999.

DIAS, Marcos. Rebelamentos (Das Absconsas Áfricas da Minha Diáspora). (poemas).Belo Horizonte: Mazza Edições, 1990.

____________. País Indig(o Blue)Nação (Poemas no Tricentenário da Morte de Zumbi dos Palmares). Belo Horizonte: Mazza Edições, 1995.

____________. Estudos sobre a cidade (& exercícios de sobrevivência). Belo Horizonte: Mazza Edições, 1997 (poemas).

RICOEUR, Paul. La memória, la historia, el olvido. Barcelona: Trotta, 2003.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. 4.ed. Rio de Janeiro: 1980.

 

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