A figura do herói Zumbi: de objeto da história a sujeito da literatura

 

Rodrigo Pires Paula1

 

Nasce a pátria

na senzala

e a história

discreta

como o antigo almirante

escreve palavras tortas

só descobre a casa-grande.

 

Domício Proença Filho (Dionísio Esfacelado)

 

A literatura afro-brasileira representa a desconstrução do clássico e do cânone estabelecido a partir da estética européia, na medida em que vem suplementar a literatura nacional, assim como o quilombo dos Palmares representou a busca pela construção do ideal libertário do negro. No âmbito deste contexto, apresentamos o historiador e literato Joel Rufino dos Santos.

Rufino tem se destacado na literatura nacional por tratar de relevantes fatos históricos a partir de sua imaginação criadora. Um bom exemplo é o livro O dia em que o povo ganhou (1983), que narra a história da corte portuguesa no Brasil. No prefácio, intitulado “Explicação necessária”, o autor faz um alerta ao leitor quanto ao aspecto híbrido da narrativa:

Não sei a que gênero pertence este livro. É história, porque suas conclusões e análises repousam em documentos da época. É ficção, porque ninguém, ou nenhum documento, me pode garantir que o passado foi exatamente assim – e tenho, portanto, o direito de imaginá-lo como queira. [...] Na verdade, não me importa o que seja. Quero que muitas pessoas o leiam, uns porque gostam de história, outros porque necessitam de fantasia.

As obras literárias de Rufino se constroem sob uma base histórica, ou seja, seus romances são, de certa forma, representação da experiência da realidade humana cotidiana, e se perfazem, igualmente várias produções históricas de nosso sistema literário2, como romances históricos. Nosso objeto de estudo, nesse momento, como corpus da literatura afro-brasileira a ser explorado, é a obra desse autor.

O seu romance “Zumbi”, da coleção biografias, aborda a vida do maior personagem negro da historiografia brasileira e sua luta pela libertação dos seus irmãos de cor, subjugados pelas amarras da escravidão. Na obra de Rufino, ficcionalizado e engrandecido por suas lutas, Zumbi passa de vilão da história, aos olhos da sociedade escravocrata3, a herói da literatura. Como bem se observa, foi essencial a astúcia de um literato para a inserção dessas escondidas passagens da história brasileira, num livro de caráter biográfico, quase histórico, para que pudéssemos obter alguma informação sobre o líder palmarino.

Ao ler Zumbi, encontrei um comentário do narrador que realça as questões relativas à escravidão: “era certo que o europeu, ao colonizar a América, precisava de braços fortes e aptos para o trabalho braçal no cultivo do açúcar, porém, por que o trabalho escravo?” Rufino destaca que o sistema capitalista mundial precisava progredir, e que a escravidão afro-americana surgiu como fonte rentável para que fosse logrado êxito ao empreendimento europeu. O escravo servia como moeda de troca, assim como produzia, no mundo do açúcar, “a fabulosa massa de artigos tropicais que se pôs à venda na Europa durante três séculos, enriquecendo as classes dominantes de lá e de cá”. A importância deste comentário no texto de Rufino está atrelada à ratificação de uma verdade, legitimada pelos livros de História, agora inserida no âmbito da ficção, como a construção de um imaginário literário que envolve a obra.

No romance de Rufino, assim como aconteceu na História do Brasil, os escravos fugidos começaram a aglomerar-se em bandos que, quando caçados pelos capitães do mato, escapavam como ariscas aves por entre as matas. É narrado, de forma irônica, que, em uma destas investidas contra os “fujões”, foi capturado um recém-nascido que mais tarde seria o grande líder dos quilombolas:

Tudo começou quando um Brás Rocha, que atacou Palmares em 1655, carregou um recém-nascido entre as presas adultas. Brás o entregou, honestamente, como era do contrato, ao chefe de uma coluna, e este decidiu fazer um presente ao cura de Porto Calvo, Padre Melo, que o chamou de Francisco.

Sempre que se capturava um negro, a primeira iniciativa era dar-lhe um nome cristão, no sentido de despojá-lo de qualquer traço que o identificasse com sua origem. Ou seja, o nome cristão servia para esvaziar o africano de sua identidade4. Ouçamos algumas considerações de Muniz Sodré, em Claros e Escuros:

Identidade é de fato algo implícito em qualquer representação que fazemos de nós mesmos. Na prática, é aquilo de que nos lembramos. A representação determina a definição que nos damos e o lugar que ocupamos dentro de um certo sistema de relações. [...] A consciência, enquanto forma simbolicamente determinada, é lugar de identidade.5

Na obra de Rufino, percebemos que algumas personagens negras da história viviam conflitos com a sua identidade, não no sentido da identificação com a sua raça e o seu povo, mas no sentido de se assumir como um ser autônomo, alguém que buscava a sua liberdade, por não se permitir ser tratado como bicho. Mas, a maioria dos negros escravizados, assim como o herói Zumbi dos Palmares, contribuiu com a formação que reside na memória coletiva de seus herdeiros, a sua identidade negra e a busca por sua afirmação. Portanto, sabemos que o intento da sociedade branca, escravocrata e estamental daquela época não foi de forma alguma alcançado. Para esta sociedade, o apagamento da memória do povo negro era algo que deveria se concretizar, e aquela permanecia com o firme objetivo de branquear os cativos, dando-lhes uma identidade condizente com a condição em que nasciam a partir de então – escravos, miseráveis, submissos às ordens dos seus senhores. O processo se iniciava pela alma, com a catequese e o batismo, até ser apagada totalmente a afinidade com suas origens étnicas.

Quando Zumbi foi morto, seu corpo foi degolado como os grandes mártires, porque acreditavam que assim sua força seria diluída e serviria de exemplo aos demais. Porém, no universo poético, sua voz parece emergir das profundezas de sua alma de poeta, pois foi preservada na memória do seu povo. O romance de Rufino proporciona, a partir de então, a inserção do líder palmarino no âmbito da literatura e, conseqüentemente, em toda produção literária afro-brasileira, porém, agora, diluído e disseminado no imaginário ficcional que envolve a produção dos escritores afro-descendentes.

 

1 Mestrando em Teoria da Literatura pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais.

2 Segundo Antonio Candido, um sistema literário é formado por um conjunto de denominadores os quais são “certos elementos de natureza social e psíquica, embora literariamente organizados, que se manifestam historicamente e fazem da literatura aspecto orgânico da civilização”.

3 A sociedade brasileira do século XIX era patriarcal e adotava o regime escravista de produção.

4 “O termo identidade tem sido usado como resposta ao longo dos tempos. A palavra vem de idem (versão latina do grego tó autò, “o mesmo”), que resulta no latim escolástico em identitas, isto é, a permanência do objeto, único e idêntico a si mesmo apesar das pressões de transformação interna e externa. Identidade – ou conformidade, por semelhança ou igualdade, entre coisas diversas – é, assim, o caráter do que se diz “um”, embora seja “dois” ou “outro”, por forma e efeito. Identificação designa modernamente o processo constitutivo, por introjeção, de uma identidade estruturada.” SODRÈ, 2000, p. 33.

5 SODRÉ. Claros e escuros – identidade, povo e mídia no Brasil, p. 35.

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