Literatura e militância em Henrique Cunha Jr.

 

Luiz Henrique Oliveira *

 

A literatura militante de Henrique Cunha Jr. faz-se pela afirmação de sua identidade afro e da crítica erigida às relações raciais no complexo social. Como ele próprio afirma no primeiro número de Cadernos negros (1978, p. 4), “a vida só tem sentido dentro de um trabalho na comunidade”. Este posicionamento explica o motivo pelo qual são retratadas personagens negras em sua variabilidade mais abrangente, ou seja, os tipos sociais do anonimato cotidiano. Aliás, cotidiano que nutre o conjunto da obra (conto e poesia), visto através do prisma dos descendentes de escravos.

A linguagem do escritor é tipicamente filosófica e corrobora para demonstrar a ascensão social do negro. Perpassa o estilo descritivista, bem próximo ao da reportagem. Relativiza dicotomias e maniqueísmos reinantes em nossa sociedade.

Falemos, primeiramente, de alguns contos de Negros na noite.

“Fato comum” remete-nos ao conjunto de situações constrangedoras pelas quais passam os negros no cotidiano brasileiro. O conto se inicia com reflexões de um narrador em terceira pessoa acerca de várias situações que envolvem a ascensão social do negro e sua ilusão de aceitação pelo estrato econômico imediatamente superior. Eis o texto:

 

essa história não contém ingredientes novos, ela repete o dia a dia. Dia a dia que aqui nos serve de relato, para fixarmos algumas idéias (...) para mais facilmente precisar a realidade. A realidade num sentido estreito, de um grupo estreito de pessoas que vivem as frustrações de uma fantasia...
(“Fato comum”, In Negros na noite, p. 9)

 

O “fato” se refere a Paulo Fusquinha, negro que, segundo o narrador, já fez sua autocrítica, o que lhe conferirá credibilidade ao fato a ser narrado. Paulo sempre procurou manter-se distante dos movimentos negros, por julgar que “não tinham nada a ver” (p. 10) as discussões ali acontecidas. Mesmo nascido sob o sol da periferia, filho de funcionário público, estudara e conseguira boa posição: funcionário do banco do estado. Perpassava os espaços da periferia e da elite, obtendo um passaporte ilusório, qual seja, o status econômico.

O problema é que as ilusões do capital não conseguem esconder por completo as apregoadas igualdades da democracia racial. Paulo, em verdade, era dois: o Paulo Fusquinha, “nome e sobrenome da periferia do Rio de Janeiro; nas altas sociedades, do túnel de Copacabana para baixo, conhecido como Negrão, Paulão, Paulo Negrão” (p. 10).

Bem empregado e residente em Copacabana, tornou-se objeto de desejo e/ou fetiche das coroas da “soçaite”. Negrão era trânsito livre, palatável. Além disso, era constantemente elogiado e apologizado pelo seu talento e erudição. O contato com o mundo da alta sociedade fê-lo esquecer-se, por um tempo, do legado impregnado em sua alcunha de periferia. É interessante notar que a (cor da) pele funciona como um significante chave ao mesmo tempo da recusa e da “aceitação”. Recusa e “aceitação”, aliás, caminham lado a lado, tapando os olhos de Negrão para a realidade. Em outras palavras, Negrão está à deriva da recusa e da percepção de sua castração, pois o um e o outro convivem distantes, mesmo dividindo o espaço. Nas palavras de Homi Bhabha (2005, p. 122) para marcar ilusoriamente a falsa aceitação, “a pele, como significante da discriminação, deve ser produzida ou processada como visível”, donde se nota que a falsa aceitação de Paulo passa principalmente pela marca constante, sobretudo nos atos enunciativos, de seu pertencimento étnico.

O fato marcante para Paulo é que ele mesmo, “aceito” pela elite vê-se deslocado quando Carlos lhe chega ao escritório procurando um gerente financeiro, “nome certo” (p. 12). Paulo ficou de dar a resposta ao fim do expediente e, então, propôs-se ao cargo em aberto. Num lapso de recusa e racismo, Carlos oferece a Paulo Negrão a necessária epifania que mudaria a vida deste:

  

_ Negrão, como é? Encontrou meu gerente?

_ Sim, Carlos, encontrei.

_ Sabia. Tinha falado para o pessoal. Você nunca falha, é o homem mais bem informado do Rio de Janeiro. Pois bem, quem é a fera.

_ Eu, Carlos.

O sorriso se desfez no rosto barbeado e a palavra é recomposta meio aos solavancos: _Tá brincando, Negrão!

_ Não, não estou. Eu sou a pessoa no modelo para seus negócios.

_ Negrão, você sabe, aqui entre nós, ninguém duvida dos seus conhecimentos, da sua capacidade, mas você sabe, na diretoria tem gente que não vai aceitar.” (idem, p. 13).

 

O fato serviu para Paulo retomar as suas origens, procurar a sua família. Buscou também proximidade com o movimento negro. Fato ocorrido no campo da ficção mas, se a arte mimetiza o real, há que se abrir os olhos para os “fatos” que se repetem cotidianamente no complexo social.

Na sequência, encontramos “Princesa Liberdade”, conto que se passa no bairro Bexiga, símbolo da junção entre a São Paulo antiga e a São Paulo progressista, também conhecido como reduto da resistência e cultura negras. “Neste endereço, se agitam quatro corpos femininos, impacientes, em meio a uma quantidade de papel, livros, roupas, instrumentos e material de uma peça de teatro: Sônia Maria, Maria Aparecida, Ângela Maria e Marilângela“ (p. 17). As quatro figuravam na vanguarda de muitas outras mulheres, cujas trajetórias estavam amarradas às injustiças e insatisfações com os limites impostos pelo tempo e pela cultura. Além disso, estavam elas engajadas em lutas do movimento negro e feminista.

Segundo o narrador-personagem, as quatro protagonistas deste conto estão unidas também por um destino comum: a procura pela liberdade “de agir, de poder ser, de poder viver muito além do simples imaginável” (p.18). Entretanto, a narrativa, estrategicamente, está dividida em dois momentos temporais: o primeiro, o da juventude das personagens, representa os anseios de cada qual, convergindo para mudanças no complexo social; o segundo, como se verá adiante, marca os destinos das quatro personagens, muito distantes dos sonhos de outrora. Ei-los:

Maria Aparecida é a primeira a deixar a morada conjunta, retornando a uma passividade de tempos em que residira no interior, “longe do dinamismo, longe das ideias calorosas, das festas, presa à vida da casa, dominada pelos olhares dos pais, dentro das mesmas restrições de tempos atrás” (p. 23). Em seguida, o narrador encontra Marilângela pregando em praça pública, “em nome de uma tal bíblia, única verdadeira sobre a face da terra” (p.23). O conforto da obscuridade era o que incomodava o narrador, que comparou a cena vista às de engajamento, protagonizadas pela amiga em tempos passados. “Triste visão do impossível, tão triste que ela preferiu não ser reconhecida abaixando a cabeça entre as páginas do livro escuro” (p. 23).

Por fim, o reencontro entre o narrador e Sônia, que decidem telefonar para Ângela. O narrador toma a linha e inicia a conversa, quando de súbito, o papo é interrompido:

_ Meu marido, ele está chegando. Vou desligar.

_ Mas escute, por que? Ele não sabe com quem você está falando.

Nervosa, com voz trêmula, a ligação foi cortada sem as despedidas habituais. Eu e Sônia nos limitamos a comentar o fato. Embora não tivéssemos sabido neste momento, houve um tapa machista, sem resposta para saber com quem ela falava ao telefone. (p. 24)

 

A cena mostra uma Ângela agora vítima daquilo que combatia. De certa forma, o autor nos coloca frente a frente com os limites da possível (?) ruptura com a tradição opressiva, machista, racista. Apenas Sônia mantinha-se firme em suas ideias e, acima de tudo, firme em vivenciar suas ideias. Por consequência, é possível estabelecer um paralelo com os movimentos subversivos em geral, que chegam a um ápice de conscientização e decaem até se tornarem incipientes. Recuos e mais recuos são golpes duros. O militante Henrique Cunha Jr. utiliza-se das letras como forma de elucidar o descendente de escravo, pois se “as Marias deixaram um discurso incompleto, (...) há outros ecos e servem de ponto de referência e reflexão para outros, mesmo que elas mesmas não o repitam agora” (p.24).

O elemento mágico serve de subsídio crítico em Negros na noite. O conto “O preto que dormia no teto” é um exemplo. A narrativa ocorre num quarto de pensão onde quatro estudantes compartilham o espaço para dormir. Entretanto, o que incomoda um personagem branco é o fato de um preto dormir no teto. A implicância revela um jogo de intolerância e racismo, que ganha intensidade com passar do texto. O embate entre os personagens revela bem o pensamento de Beauvoir (s/d, p. 16): “o ser humano só se põe se opondo”. Deslocando a afirmativa para o caso em questão, por um lado, para que o branco se afirme como sujeito e, consigo todos os preconceitos, seria a implicância a condição essencial. Por outro lado, seria pelo olhar à contrapelo da práxis social que o preto descentraria o branco. Vamos ao texto:

No outro dia se levanta quando todo o pessoal já se agita para não perder a hora, desce do teto. E meio cercado pelo companheiro insatisfeito que lhe dirige a palavra, o preto que dorme no teto com um olhar ríspido, forte e direto como nenhum branco está acostumado a ser olhado por um preto, desarma-o. Ríspido e forte, profundo e majestoso, um olhar sem sorriso e quebra-gelo. O ríspido olhar desarmou o colega, ele cinicamente muda de tom e com um traço de ironia no rosto pergunta:

_ Você quer alguma coisa?

O rapaz meio perturbado, gagueja e completa:

_ Penso que não.

(...)

Esse negócio de segurar no olhar é coisa que todo preto devia saber. Evitaria muito papo furado, Mas não. O pessoal anda apagado, escondido, encolhido, com ar de quem tem medo de bicho papão, tímidos olhares de moleque medroso, que pode ser castigado, repreendido ou barrado (p. 41-42).

 

O conto prossegue relativizando a normalidade das ações cotidianas. A implicância contra o preto que dorme no teto continua.

O autor vale-se do elemento alegórico neste ponto. A estranheza do fato do preto dormir no teto e a não compreensão do sentido daquilo pelos outros bem representa a estranheza/implicância dos branco em relação ao costumes típicos da coletividade afro-brasileira. Mais uma vez, Cunha Jr. convida a refletirmos sobre as relações raciais. Revela ainda, que, no tecido social, a hipocrisia reina de tal forma que o racismo parece ser uma via de mão dupla, e que a vítima histórica não pode e não deve revidar. Vejamos:

Como todas as manhãs, ele (o preto) se levantou, se espreguiçou, desceu pela parede e de repente deu um murro violento no sujeito (branco).

Fim. Nunca mais ninguém falou naquela história. Logicamente o sujeito resmungou, chamou o preto de violento, racista e coisas mais. Na escola, todos ficaram sabendo. Críticas e comentários pela atitude violenta não faltaram. Mas nada disto importa, afinal, que comentários podem fazer um preto que dorme no teto? Comentários são comentários, as ações são ações e dormir no teto... nada melhor do que isso. Se bem que tenha gente que prefira trepar na mesa. 

Além do universo do conto, Henrique Cunha Jr. também perpassou o universo da poesia, aliás, marcadamente pela afirmação de sua identidade e de seu coletivo. Os traços físicos são privilegiados e diferenciados, graças à benfazeja da natureza. O poema “Cabelos” é boa ilustração:

 

Cabelos enroladinhos enroladinhos
Cabelos caracóis pequenininhos
Cabelos que a natureza se deu ao luxo
De trabalhá-los e não simplesmente deixá-los
Esticados ao acaso
Cabelo pixaim

Cabelo de negro. (In Cadernos negros 1, p. 9)

 

A questão identitária aqui busca reverter a dialética “cabelo bom “ X “cabelo ruim”. O poeta usa da valorização de seus cabelos e opõe-se à mística dos cabelos lisos. Relativiza o conceito imperante de beleza, pois produto de um ponto de vista específico que carrega consigo uma determinada e complexa formação cultural.

“Mulher negra” trata da valorização do gênero feminino. O poeta procura retirá-la do costume social de atribuir à mulher negra os papéis concessivos do prazer e da privação de amores reais. Em Cunha Jr. ela ganha respeitabilidade e é desejosa em carne, osso e alma:

 

no mistério de sua cor
encontro toda a fascinação
todo o brilho da África
em mulher negra luzidia
vinda das profundezas do espírito
na noite das alucinações de minha vida
preenchendo o negro do meu coração 

seu rosto de nariz largo
seu cabelo pixaim
sua pele escura como ébano
fazem a beleza em forma negra. (In Cadernos Negros 1, p. 7).

 

Marca constante da poesia de Henrique Cunha Jr. é a valorização do fenótipo negro. Se, na cultura instaurada, a mulher ganha notabilidade também pelos traços físicos, o poeta busca valorizar a alteridade da beleza oficial. Mas para ele, a mulher negra é o Um.

Assim, nota-se que Henrique Cunha Jr. utiliza da literatura como forma de reflexão como elemento propulsor para novas realizações, como ele mesmo afirma, nos Cadernos negros 3 (1980, p. 42) ser “o caminho do reconhecimento de si, na reconstrução da história em oposição a história do branco opressor (...) Portanto é aqui e agora que se deve realizar aquilo que temos de África, quilombo e escravos”.

 

Referências

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. São Paulo: Círculo do livro, s/d.

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2005.

CUNHA JR. Henrique. Negros na noite. São Paulo: EDICON, 1987.

CUTI et all (orgs.). Cadernos negros1. São Paulo: Ed. dos autores, 1978.

CUTI et all (orgs.). Cadernos negros 3. São Paulo: Ed. dos autores, 1980.

 

Notas

Mestre em Teoria da Literatura – FALE / UFMG.


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