Figurações do centro e da margem nas narrativas de Eustáquio José Rodrigues

Giovanna Soalheiro* (. )

 

Impressionou-me ver, no coração da África, uma boate com tantos requintes. Não ficava nada a dever às suas congêneres da Europa e do Oriente, se bem que – e talvez por isso – não tivesse no arranjo geral um estilo próprio definido. Na verdade, três estilos ali se harmonizam para proporcionar um ambiente de conforto e prazer: numa estrutura européia, um arranjo asiático com cores africanas. (“Festa na casa de Kagoa, o Muniabungo”).

 

 

Refletir sobre a prosa ficcional produzida a partir de meados do século XX é, em grande medida, centrar-se nos conflitos sócio-culturais que norteiam a sociedade brasileira e sua imersão mais profunda na chamada alta-modernidade. No caso específico do Brasil, aprofundam-se os deslocamentos espaciais e culturais, que põem em evidencia as tensões históricas criadas entre o centro e a periferia. Em meio às aberturas teórico-conceituais em torno dos espaços pós-coloniais, não é mais possível afirmar a pretendida “pureza” de algumas tradições. Em contrapartida, nota-se uma ampliação do conceito de cultura, formando o que hoje chamamos de pluriculturalismo. Tendo em vista essa crise das sociedades modernas, o presente texto propõe uma breve explanação sobre as narrativas do escritor mineiro Eustáquio José Rodrigues, nascido na cidade de Ponte Nova (MG), em 1946. Sua obra de estréia, intitulada Cauterizai o meu umbigo, foi publicada no ano de 1986 pela editora Anima e, alguns anos mais tarde, segue-se Flor de sangue, pela Mazza Edições.

O autor possui também narrativas presentes na série Cadernos Negros1, das quais é preciso destacar, devido ao seu aspecto trágico, o conto “Pão da Inocência”, incluído em sua obra Flor de sangue, de 1989. Nessa narrativa, que retrata os conflitos vivenciados pelo garoto Adônis em meio à miséria e à flagelação de sua família, já é possível perceber o projeto estético-literário de Rodrigues, que visa a delinear, no tecido textual, a cultura popular e os conflitos sociais que marcam a sociedade brasileira. Tal narrativa, breve e densa ao mesmo tempo, ganha contornos nítidos de tragédia. O conto, atravessado por uma vaga referência aos mitos da cultura judaico-cristã, narra a curta trajetória de vida de Adônis – menino negro – que, após ser informado sobre a possibilidade de permanecer “no reino dos céus”, comete o suicídio como forma de se libertar da realidade opressora na qual estava inserido. “Pão da Inocência” é construído a partir de uma voz enunciativa que sugere uma leitura tensa da tradição cristã, perpassada por uma ironia evidenciada em meio às contradições inerentes ao arranjo temático na narrativa. Se para a tradição cristã o suicídio é o pecado; no conto, é possível observar um contexto de aprovação, feita por uma “dona de olhar sereno, suave”, que “parecia a Nossa Senhora”. Ao dialogar com essa “dona”, Adônis recebe como resposta às dúvidas sobre os seus pecados uma aprovação para realizar a sua própria morte. Assim, a partir de um olhar contemplativo sobre a realidade de opressão sofrida pelo garoto, assistimos à defesa imaculada dessa postura que, por muitos, é vista como agressão à vida. Nesse sentido, nota-se a quebra de paradigmas, construída para relativizar a escolha pela morte como alternativa para uma realidade em que já se vivia como “morto”. O conto sugere, portanto, uma “morte social”, já que a personagem central representa, metonimicamente, o universo infantil brasileiro perpassado pela miséria e pela violência da exclusão social. Dono de uma sensibilidade particular para rasurar estereótipos sociais, Eustáquio revela-se leitor atento e delicado da realidade nacional. A sua crítica é, em certo sentido, indicativa, pois o que ele visa a rasurar são visões tradicionais – como é o caso do conto acima citado. Com isso, através da espacialização da dor, a voz narrativa de “Pão da inocência” lança mão da transgressão do centro, evidenciando – a contrapelo – uma infância perdida em um espaço, quase sempre, invisível para o poder público.

 

 

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Nas narrativas de Cauterizai o meu umbigo, por sua vez, observa-se o interdiscurso traçado entre África e Brasil, muitas vezes perpassado pela memória ancestral dos africanos e pelas conseqüências das guerras coloniais que ocorreram no continente. O autor, conforme afirma Luiza Lobo, no artigo intitulado “Literatura afro-brasileira contemporânea”, relata sua experiência de vida no Zaire e o seu retorno ao Brasil (2007:250). Tendo em vista essa perspectiva, notaremos um dos pontos altos da prosa ficcional de Rodrigues, pois contos como ”Cauterizai o meu umbigo, oh mãe!”, “A vingança de Kakombola” e “O tradutor de poesia” revelam um cenário conflituoso, que parte dessa relação transcontinental. Ao optar por esse contato com a África, as narrativas do escritor mineiro atribuem à identidade nacional um caráter simbólico, na medida em que há a releitura de territórios locais e globais marcados pela influência mútua entre identidades. Em meio a um espaço complexo, desenha-se, portanto, uma rede de manifestações, em que o diálogo entre tradições põe em evidencia as raízes, ou; pelo menos, os rastros/resíduos2 de comunidades e indivíduos que vivem entre-mundos. Nesta perspectiva, “O tradutor de poesia”, criado a partir de uma linguagem “regional”, recria palavras, recupera-lhes o significado, além de tomar emprestadas expressões de línguas africanas. Nesse conto, Eustáquio evidencia todo o seu modernismo, pois a inventividade lingüística ultrapassa a lógica incoerente de um essencialismo purista – que denega a riqueza da linguagem falada pelo povo – para expor a oralidade própria do falar brasileiro. Como se sabe, esse falar brasileiro é fruto da interação entre as línguas africanas no Brasil, o que reforça o processo de crioulização inerente á nossa formação cultural.

 

Muniz Sodré, em A verdade seduzida (2005), esboça um novo conceito de cultura no Brasil, a partir do jogo duplo estabelecido entre os processos comunicativos entre mundo ocidental e as tradições africanas. Segundo o autor:

(...) A primeira coisa a ser dita é que a formação social brasileira é o caso patente, palpável, de coexistência e interpenetração multisseculares de duas ordens culturais, a branca e a negra, funcionado esta última como fonte permanente de resistência a dispositivos de dominação e como mantenedora do equilíbrio efetivo do elemento negro no Brasil. (SODRÉ, 2005:92)

 

A afirmação de Sodré refere-se à construção da identidade cultural brasileira, a partir de seus inúmeros focos de tensão. Na verdade, por meio dos espaços, das máscaras ficcionais e da linguagem; será possível apreender uma realidade que se desnuda pelas incongruências de um tempo passado que se arrasta até o presente. O autor, através de uma escrita que se aproxima, em grande medida, da verve poética dos trovadores e cordelistas, envolve-nos numa atmosfera permeada por desencantos, mas que traduz em seus personagens a vontade de compreender as formas de viver em um espaço que se revela, constantemente, em sua multiplicidade.

Outros aspectos relevantes próprios da prosa de Rodrigues é a representação do espaço urbano marcada pela marginalidade, e, ao mesmo tempo, a sensibilidade da voz enunciativa, que procura fotografar, com certa tendência à urbanidade, os cenários formadores da cultura popular em nosso país. Em conformidade com esse cenário, desencadeia-se – no âmbito específico da representação literária – uma tentativa constante de conferir visibilidade aos estratos mais excluídos, o que permite uma maior visualização daqueles que habitam o submundo da cidade, a exemplo do conto já citado “Flor de sangue”.

Portanto, compreender o sentido dos contos presentes em Cauterizai o Meu Umbigo é penetrar num reverberante exercício de (re) criação da linguagem, na qual vozes negras e brancas se unem para traçar o complexo perfil das identidades brasileiras. Rodrigues possui um ponto de vista agudo e tenso sobre a realidade nacional; mas, ao mesmo tempo, procura retratar tal realidade por meio de uma sensibilidade expressa no modo como os ambientes e os personagens são desenhados, ou seja, sempre através de um olhar atento e particularizado. Nesse sentido, preferimos falar de poetização dos elementos da narrativa, já que o sujeito enunciador do discurso ficcional, embora retrate contextos hostis e violentos, volta-se para o registro sensível aos matizes e aos ritmos que marcam a fala e o espírito do povo. Por essa razão, devemos ressaltar que tal livro possui traços estilísticos muito próprios, pois é a voz do outro que se presentifica no tecido textual, a fim de conferir uma maior representatividade aos envolvidos na reencenação da vida.

Como será possível notar, os contos partem de uma visão que é centro-periférica, pois, além de retratarem os acontecimentos específicos da cidade, buscam também evidenciar os conflitos da gente pobre e sua vivência – imbuída de tristezas e privações – nas periferias. Se por um lado, o conto se particulariza por ser uma síntese do homem e de sua vida intermitente; por outro, ele é também a expressão profunda e meditativa de dores e alegrias que se ficcionalizam, delicada ou invasivamente, no plano da escrita. Dessa forma, travam-se – “em batalha fraternal” – a arte de representar e os objetos a serem representados e, portanto, recriados pelo olhar sensível do autor. Cauterizai o meu umbigo é desses livros que marcam pela “delicadeza agressiva” que emana da linguagem, por mais paradoxal que isso possa parecer. Em meio a tragédias pessoais e coletivas, notamos um olhar que parte de dentro, captando a essência e as lacunas interiores de sujeitos inseridos em espaços que marcam e fraturam pela ausência mínima de dignidade.

É preciso mencionar ainda alguns elementos constitutivos da estrutura literária, caracterizadores, principalmente, de uma escrita contemporânea fragmentada e que, por essa mesma razão, simboliza as personagens desprovidas de caracterização completa e univalente. Os contos apresentados em Cauterizai o meu umbigo podem ser examinados, em parte, por certa variedade temática. De um lado, observamos um escritor preocupado com questões sociais, como a marginalização inerente à vida miserável dos grandes centros urbanos – violência, fome, criminalidade, pobreza – e, de outro, notamos uma África que se propõe a dialogar com os confrontos existentes entre o mundo contemporâneo e um retorno ao arcaico. Trata-se, deste modo, da adoção de uma postura crítica do narrador quanto aos deslocamentos transcontinentais, com a finalidade de visualizar o processo histórico de formação das culturas brasileira e africana, perpassando, evidentemente, a intricada relação entre ser dominante e o ser dominado.

 

 

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Em diálogo com a tradição literária afro-brasileira, o conto “Cauterizai o meu umbigo, oh mãe!” estabelece uma relação metonímica, não apenas com a obra de Rodrigues, mas com parte considerável da literatura produzida pelos escritores negros. A narrativa em 1º pessoa nos é relatada por um “viajante”, nomeado Rodrigues, que se encontra em territórios africanos. A nomeação da personagem indica uma possível reencenação do sujeito autoral, já que este viajou, com certa freqüência, a países africanos para realização de trabalhos como engenheiro. O conto possui, dentro da sua estrutura, outras pequenas narrativas que são responsáveis pela compreensão totalizante do enredo, através do recurso da mise en abyme. Esse recurso consiste num processo de “duplicação especular”, em que outra narrativa aparece, no conto mencionado, de forma simbólica.  A inscrição de uma micro-narrativa, que carrega consigo o confronto entre as histórias narradas, denuncia uma dimensão reflexiva do discurso ficcional, uma vez que a consciência estética propõe uma forma de diálogo entre o texto literário e, nesse caso, o texto histórico.

No conto, estabelece-se um dialogo entre uma África ancestral e outra contemporânea. O narrador nos faz conhecer pontos de vista distintos, através de uma “conversa” entre Limpunda e Wyombo, de etnias distintas, que surpreende também pelo imaginário colonial que perpassa os discursos das personagens. Assim, um deles – ao apontar para uma arma ancestral fixada na parede da sala – afirma que, das guerras realizadas, somente restaram “os mais fortes, os mais bravos, e os mais inteligentes”(pag. 94). Rodrigues, que observa atentamente toda a conversa, procura refletir sobre a condição atual do continente africano e a de seus habitantes. Dessa forma, “escutamos” uma nova história da exploração, relatada por aqueles que, diretamente, estiveram envolvidos nela:

“Dizem que já no século XV os grandes fornos do Mali produziam aço que rivalizavam, em ductibilidade e dureza, com aqueles fabricados em Milão. Por esse tempo, Diogo Cão subia o Oceano Atlântico, dobrava o Cabo das tormentas, e fincava a bandeira portuguesa na foz do rio ao qual chamou Nzadi em suas anotações. Quatro séculos depois, o belga Stanley, aportando no mesmo local, arrancou a bandeira portuguesa e rebatizou o Rio Congo. Iludido, dizem, pela resposta nativa à sua pergunta: “qual é o nome deste rio? Responderam: Nzadi Ne Kongo (este rio pertence ao Rei Kongo). Mais um século se passou até que o rio e o país correspondente recebessem de volta uma variação de nomes primitivos: Zaire.” (p.94-95)

 

Na citação acima, percebe-se o processo de exploração iniciado pelas metrópoles portuguesas. Diogo Cão foi um navegado de Portugal que, no século XV, foi enviado por D. João II, para realizar viagens de descobrimento na África – na costa sudoeste africana – entre os anos de 1482 e 1486. Após chegar à foz do Zaire e avançar pelo interior do rio, fixou uma inscrição que comprovou a sua descoberta. Assim, o navegador estabeleceu relações com o Reino do Congo, introduzindo na região elementos da cultura portuguesa.

No dialogo entre as duas personagens, afloram histórias sobre as guerras entre tribos e etnias africanas, sobre a escravidão iniciada no próprio continente e sobre as tentativas de resistências de algumas tribos no processo de dominação. O narrador de “Cauterizai o meu umbigo, oh mãe!” revela as vozes marginais originárias dos conflitos históricos que perpassam a formação da sociedade brasileira. Mas ele revela, sobretudo, a necessidade de se construir uma nova história, sem a cobrança por uma tradição cultural única, já que muito se perdeu no passado. Os choques, os conflitos sangrentos, a arma fixada na parede na sala de um dos personagens são formas de cauterizar o passado, construindo projetos que se formam pelos rastros ou resíduos de comunidades deslocadas. Com isso, Rodrigues não sugere o esquecimento da história do povo negro, mas simplesmente a tentativa de superação dos conflitos, inclusive dos atuais.

Em Cauterizai o meu umbigo a busca pelo “ser brasileiro” se afasta de uma verdade logocêntrica de cultura. O ponto-de-vista negro, assim como o branco, revela raízes, mas nunca uma identidade única e acabada. O multiculturalismo, muitas vezes, é retratado de modo lúdico nos contos de Rodrigues. Evidentemente, não se trata apenas de um jogo ficcional, mas o autor cria imagens que se formam nas peripécias da linguagem, criando uma prosa que luta contra a literatura instituída. Os neologismos, os regionalismos e as gírias que configuram a escrita do autor são, certamente, parte de uma estratégia discursiva que põe em rasura a natureza lingüística do cânone literário brasileiro. Deste modo, transgredir visões e expandir a noção de cultura são formas infinitamente enriquecedoras para se pensar a identidade nacional a partir da manifestação de tradições distintas, mas que se misturam para formar o brasileiro. Cabe ressaltar que não estamos falando de mestiçagem e sim de possibilidades de reconhecimento que ultrapassam a pretendida harmonia da democracia racial defendida por Gilberto Freyre, em Casa grande e Senzala (1933).

Pensar nas possibilidades de expansão da cultura, a partir de uma leitura ampla e sem pré-conceitos, é umas das propostas de Eustáquio José Rodrigues. O verbo cauterizar sugere o ato de queimar – pôr em cautério – parte do corpo humano para desarticular ou cicatrizar alguma região, conforme presente no dicionário Houaiss. No sentido figurativo, pode significar, ainda, correção severa – utilizando ou não meios violentos. O substantivo umbigo, por sua vez, tomando em sua simbologia, reflete sobre a raiz, ou melhor, sobre raízes que, aqui, não podem ser únicas. Rodrigues é consciente dos conflitos criados no campo da identidade nacional. Cauterizar umbigos significa, portanto, fechar feridas, mas também afirmar uma história negra que ainda precisa ser reescrita

Referências

 

ANTONIO, Carlindo Fausto. Cadernos Negros: esboço de análise. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas. SP, 2005.

BHABHA, Hommi. O local das culturas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001.

GLISSANT, Édouard. Introdução a uma Poética da Diversidade. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2005.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pósmodernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

LOBO, Luiza. “Literatura afro-brasileira contemporânea”, Crítica sem juízo. Rio de Janeiro: Garamond, 2007.

RODRIGUES, Eustáquio José. Cauterizai o meu umbigo. Rio de Janeiro: Anima, 1986 (contos).

________________________. Flor de sangue. Belo Horizonte: Mazza, 1990.

 

________________________. Cadernos negros 12. São Paulo: Quilombhoje, 1989. (contos)

________________________. Cadernos negros 26. São Paulo: Quilombhoje, 2003. (contos)

________________________.Palmares, Ano I, Número 2, dezembro de 2005, p. 32-33.

SANTOS, Jussara. “Partindo de um certo umbigo”, Caderno Cespuc de pesquisa.Série Ensaios, nº 10. Belo Horizonte, setembro 2001.

SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

 

* Mestranda em Estudos Literários pela UFMG.

1 QUILOMBHOJE (Org.). Cadernos negros 12. São Paulo: Quilombhoje, 1989.

 

2Édouard Glissant trabalha com a noção de rastros/resíduos em conformidade com o conceito de crioulização, considerando o caráter de manifestações da cultura formado a partir de raízes distintas. Nesse processo, nota-se o imbricamento entre culturas, o que dará origem a uma formação conflituosa, porém harmônica na sua forma de manifestação. O conceito glissantino pode ser aplicado aos contos de Rodrigues, já que estes desenham um cenário de formações híbridas, expressos também por meio da linguagem.

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