A trans(ne-)gressão poética de Arnaldo Xavier

Gilmara Guimarães*

O presente artigo tenciona demonstrar de que maneira a escrita de Arnaldo Xavier repercutiu em outros poetas, seja pela proposta de trabalhar rumo a uma construção diferenciada em termos de linguagem, seja pelo modo chocante de escrever sobre o negro e sua condição social. Tem a finalidade de expor alguns trabalhos feitos por Arnaldo Xavier e propor algumas questões atribuídas à sua poética.

O paraibano radicado em São Paulo fez parte do “Grupo Pindahyba”, composto pelos poetas Aristides Klafke, Souza Lopes e Roniwalter Jatobá, e responsável pela editora de mesmo nome. Nos anos 80, participou dos encontros de escritores negros brasileiros e publicou em diversas antologias, inclusive no exterior.

Exponho no título o termo transnegressão, conceito criado pelo poeta na tentativa de sintetizar seu modo de pensar e de trabalhar artisticamente. Ele remete não apenas ao gesto de transgredir uma ordem canônica presente na literatura brasileira, mas busca situar o negro nessa transformação, interagindo de forma radical e produtiva. A propósito, argumenta Ronald Augusto:

O compósito verbal transnegressão, cunhado por ele, tenta dar conta – através da justaposição dos vocábulos (negro + transgressão), ao estilo da montagem cinematográfica – de uma proposta estética interessada em lesar tanto as idéias feitas que orientam nossas filosofias de vida, quanto à imagem de um cânone totalizante, “universal”, vantajoso (para quem?) a ponto de poder ser aplicado em qualquer tempo-espaço. (AUGUSTO, 2007, p. 99).

O trabalho de Arnaldo Xavier é direcionado à crítica e à reflexão de como é necessário questionar e, até mesmo, romper com os alicerces europeus herdados pela literatura nacional, inclusive pelos autores afro-brasileiros. O artigo “Dha lamba á qvizila – a busca de uma expressão literária negra” é uma reflexão a respeito do histórico cultural da "escravização" que enlaçou/enlaça nosso país: antes, a escravização dos africanos e seus descendentes; hoje, a imposição de elementos culturais vindos da Europa e Estados Unidos, de forma a invisibilizar as manifestações culturais afro-brasileiras.

Quanto ao texto, tem-se já no título e subtítulos a subversão do código linguístico, que se estende a todo o corpo do artigo. Arnaldo se expressa através de neologismos, inversões sintáticas das palavras, adição ou subtração de letras. Aliás, as duas palavras que o iniciam, “lamba” e “quizila” são de origem yorubá. “Lamba” significa “chicote ou tala de couro” e “quizila”, segundo a tradição candomblecista, quer dizer raiva de alguém ou recusa de alguma comida ou bebida, o que torna o titulo bastante provocador: “do chicote à raiva”, termos que bem se encaixam na proposta questionadora inerente à poética do escritor e em sua atividade crítica.

O autor ainda faz diversos trocadilhos com o provérbio “em terra de cego, quem tem um olho é rei”. As posições dos vocábulos diferenciam cada assunto do qual trata no artigo, mas sempre fazendo um paralelo com as ideias centrais expostas. O primeiro assunto, por exemplo, é tema de muitas discussões nos movimentos sociais, principalmente o movimento negro e na literatura afro-brasileira. Aborda a imposição da cultura europeia e norte-americana em nosso país, que o poeta denomina Brasiloyro. A população, via de regra, “aceita” a aculturação, e isto ajuda a prevalecer a “idealização do branco” que permeia toda a história da sociedade brasileira. Para “Axévier”, a funcionalidade da literatura negra “implica na desidealização da própria sociedade brasileira, assim como está predisposta quanto a forma & conteúdo.” (XAVIER,1986, p. 89)

O escritor propõe uma valorização da cultura e da identidade negra de modo que a população afrodescendente não se conforme com a falsa ideia de “existência de uma democracia racial no Brasil”, que deixa subentendida uma igualdade que não alcança o real. A ideologia de que o país é composto por uma cultura homogênea e harmoniosa choca-se com a realidade cheia de conflitos, tensões e invisibilidades. Instaura-se a supervalorização do que é estrangeiro e na tentativa de “parecer branco”, o negro é ignorado por ter necessidades próprias, diferenciadas visões e, principalmente, uma cultura e uma identidade que são colocadas como inferiores e primitivas.

Todo o radicalismo e indignação do autor podem ser percebidos quando trata da necessidade de uma revolução que se dê também na forma literária:

Hum tempo novo exige uma nova linguagem. E que esta Linguagem seja exatamente o sentido )quizilista (, o gesto (xangótico), a sugestão )ebólica(, a careta quilombística), a escrita )exuzíaca( que o corpo do Negro aponta de forma própria e irreversível. (XAVIER, 1986, p. 96)

Arnaldo sugere que o negro se reaproprie de elementos que são dele, já que por ele criados. Suas palavras remetem ao imaginário do candomblé e não estão em seus sentidos negativos, difundidos pelas igrejas cristãs. Atuam como evocação dos valores negros traduzidos em forma de expressão. Para ele, a Literatura Negra, apesar de ter uma identidade própria, ainda não foi capaz de se valer de uma expressão que não se baseasse no discurso do branco, e, como a linguagem do Break, rompesse os valores vigentes.

Quando fala sobre a busca de uma expressão literária, seu desejo é que a tradição afro-brasileira não seja mais invisibilizada e que os negros adotem uma postura mais radical e inquietante a respeito da imposição cultural. Quando digo isto, não estou apenas colocando a questão da cor, mas também de toda uma posição de superioridade ou inferioridade que isso implica.

Passemos à leitura de alguns experimentos poéticos do autor. Logo abaixo se encontra um caligrama, sem título, que o poeta fez em comemoração aos cem anos da abolição da escravatura. O poema em si sugere múltiplas interpretações, dado que é pela visualidade que se vão criando  sentidos, emoções, intenções. O símbolo do cristianismo envolve e agrupa a data 1988, em que foi proclamada a “libertação” dos escravos no país. O texto também sugere como o corpo negro é moldado conforme a doutrina eurocêntrica e sua religiosidade estruturada conforme a igreja católica ensina. Em sua contundência, dispensa maiores comentários:

Já no texto abaixo, a cidade de São Paulo é tomada pelo avesso, com o eu-poético compondo paisagens de sofrimento, exploração e morte. Arnaldo Xavier invoca cenários de guerra vigentes na Rússia, na África e na Varsóvia destruída pelos nazistas, o que de imediato remete à memória histórica de mais de um genocídio. E, novamente, a radicalidade de sua poesia se traduz na relação entre vida e morte, alimento e violência, leite e sangue:

São Pálido

um dia no rio
tietê correu sangue


como correu no rio volga
como correu nos esgotos de varsóvia
como correu nos vales de áfricas
(e suas veias
borbulhavam gemidos)
lá pras bandas de são miguel paulista

correu sangue
e o sangue foi confundido
com leite
e as mamadeiras percorreram
os corpos deitados
sobre os trilhos
enquanto as locomotivas
não vinham (cheias
de vidas)

sangue confundido
com leite
no vice-versa de putas cabras
que amamentavam a radial
leste de a
feto

(XAVIER, 1978, p. 27).

 

Figura múltipla e inventiva, Arnaldo Xavier deixou uma produção que ultrapassa o discurso poético tradicionalmente estabelecido. Seus escritos são fonte de inspiração para artistas ligados a outros códigos e formas de expressão, como a música e as artes visuais. Nessa linha, compôs em parceria com o cartunista Maurício Pestana o Manual de sobrevivência do negro no Brasil, edição bilíngue, em que passagens bem humoradas convivem com alguns "socos no estômago". As charges remetem ao cotidiano preconceituoso vivido pelos afrodescendentes em nosso país, como no exemplo abaixo:

   

–– Boy! these scenes from South Africa are so moving that they seem to be happening right here!

Quando você se defrontar, com argumentos cheios de remorso, de que não existe discriminação racial no Brasil, que o preconceito contra o negro é social e que os negros são complexados, pergunte ao interlocutor cheio de culpas... se ele já passou um dia de negro.

When you hear claims that there is no racial discrimination in Brazil, that the prejudice against blacks is a social one, and that blacks have a complex, ask the guilt-laden person you are talking to...if he has ever had a nigger’s day. (XAVIER, p. 1993).

Arnaldo também teve alguns de seus poemas musicados e foi letrista de algumas músicas de forró e reggae. Entre elas, “Balada Apokalírica no. 1”, “Reggae por Nós” e “Tempo de Luz”, gravadas pela banda Jualê, com a participação de Toninho Crespo, compositor e amigo de Arnaldo. O poeta tem também parcerias com o músico Gereba, sendo letrista muitas de suas canções, a maioria forrós.

A poesia de Xavier foi questionada por seu experimentalismo linguístico e seu comportamento de crítica à literatura. Em O negro escrito, Oswaldo de Camargo assim se manifesta:  

Arnaldo Xavier, poeta de quem se está esperando muito como um inovador, mas que parece não ter achado ainda a fórmula que não anule o seu passado com os “experimentalismos” iniciados no “Grupo Pindaíba”, desaguados na feitura de Rosa da Recvsa. Espera-se de Arnaldo que se inclua “claro e negro”, na corrente de poetas onde já estão instalados Solano Trindade, Carlos Assumpção, Oliveira Silveira, Adão Ventura, Paulo Colina, Abelardo Rodrigues, Cuti, Ele Semog, por exemplo. (CAMARGO, 1997, p. 103).

Em toda a sua produção, Arnaldo sempre ressaltou o caráter polêmico que o caracteriza, com posicionamentos não-conformistas e textos questionadores em estrutura e significação. Entretanto, muitos de seus poemas mostram-se irônicos e retratam de maneira divertida os problemas enfrentados pelo negro em sua vivência. Ronald Augusto argumenta que Arnaldo não se limita a produzir uma escrita de “fácil digestão” e afirma: “sua linguagem pressupõe o poema como uma fatura sígnica cuja existência não pode justificar apenas para servir às necessidades de certas interpretações, por mais bem intencionadas que elas sejam”. (XAVIER, 2007, p, 99)

Tendo em vista a reflexão de Ronald Augusto, proponho certas indagações: o que é esperado de um autor? Como coloca Pignatari: “um poema cria a sua própria gramática. E o seu próprio dicionário. Um poema transmite a qualidade de um sentimento” (PIGNATARI, 2004, p. 18). Sendo assim, a linguagem poética deve ter o intuito de comunicar, implantar juízos de valor, ou ser um documento panfletário?

Grande vanguardista que foi, é importante salientar que sua escrita segue em confluência com a poesia concreta. Pois esta tem por finalidade romper com a tradição rítmica e formal que acompanha o verso. Têm-se assim, novas formas e possibilidades de enxergar o poema, como sendo, inclusive, objeto de visualidade. A disposição das palavras, a maneira como elas interferem no espaço do papel e a utilização de diferentes signos, como o ideograma, números, símbolos, tudo isso possibilitará ao leitor uma maior interferência no poema. Cito Décio Pignatari:

a poesia concreta acaba com o símbolo, o mito. com o mistério. o mais lúcido trabalho intelectual para a intuição mais clara. acabar com as alusões. com os formalismos nirvânicos da poesia pura. a beleza ativa, não para a contemplação. para nutrir o impulso, pound. no máximo: ser raro e claro, como disse o último fernando pessoa. criar problemas justos e resolvê-los em termos de linguagem sensível. (www.poesiaconcreta.com.br).

O propósito de Arnaldo Xavier sempre foi de incomodar, pensar conjuntamente outras possibilidades de uma escrita libertária. Enfim, este trabalho procurou divulgar alguns escritos de Arnaldo Xavier, bem como tratar da figura polêmica que sempre foi ao querer “escrever negro”, mas de maneira diferenciada, e ter uma posição enérgica ao demonstrar sua opinião à respeito da Literatura como um todo. “Axévier” contribui para a literatura afro-brasileira por ter sido um indivíduo que desenvolveu uma crítica instigante sobre a arte e cultura negra, em textos que traduzem numa linguagem de invenção a vivência negra “nua e crua”.

Referências

ALVES, Ana Cristina Tannús e FEITOSA, Susanna Busato. Marginália e Contracultura: em busca do discurso poético de Aristides Klafke no controvertido contexto de 1970. In: Estudos Lingüísticos XXXIV, 2005.

AUGUSTO, RONALD; Transnegressão. In: AFOLABI, Niyi; BARBOSA, Márcio, RIBEIRO; Esmelada(Orgs) A mente afro-brasileira. Trenton-EUA / Asmara-Eritréia: Africa World Press, 2007.

CAMARGO, Oswaldo de. O negro escrito. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura, 1987.

PIGNATARI, Décio. O que é comunicação poética. 8 ed. São Paulo: Ateliê, 2004.

XAVIER, Arnaldo et alii. Contra mão: poemas. São Paulo: Edições Pindaíba/Poesias Populares, 1978.

XAVIER, Arnaldo; PESTANA, Maurício. Manual de sobrevivência do negro no Brasil. São Paulo: Sampa, 1993.

 XAVIER, Arnaldo. Dha lamba à qvizila – A busca dhe hvma expressão literária negra, IN: ALVES, Miriam, CUTI, Luiz Silva, XAVIER, Arnaldo (Orgs.). Criação crioula, nu elefante branco. São Paulo: Secretaria do Estado da Cultura / Imprensa Oficial,1986.

Websites consultados

http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=artigos/docs/reggae_ludovicense

http://www.magnolia.blogger.com.br/2005_07_31_archive.html

http://www.cronopios.com.br/site/ensaios.asp?id=2456 http://www.facom.ufba.br/etnomidia/humor.html

http://www.overmundo.com.br/overblog/axevier-contralamuria

http://www.plataforma.paraapoesia.nom.br/arnaldox2.htm

http://br.geocities.com/bandajuale/opoema.html

http://pnob.com.br/PnoB9_web.pdf

http://www.poesiaconcreta.com.br/texto.php#

http://www.portaldasletras.com.br

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 * Gilmara Guimarães é Graduada em Letras pela UFMG.

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