DADOS BIOGRÁFICOS

O nome de batismo é Sebastião Bernardes de Souza Prata, escolhido na década de 30 pelo próprio Grande Othelo, quando procurou o cartório para ter a certidão de idade. A data de seu nascimento também foi determinada por ele: 18 de outubro de 1915, dia em que foi batizado. Natural de Uberabinha, atualmente Uberlândia, e filho de Maria Abadia de Souza, empregada doméstica, e Francisco Bernardo da Costa, o Chico dos Prata – antiga família de latifundiários da região –, Grande Othelo revelou desde cedo a desinibição que abriria caminho para a carreira de artista. Metia-se na conversa dos mais velhos e cantava para eles – principalmente para os hóspedes do Grande Hotel de Uberabinha – mediante o pagamento de um tostão por música. 

Aos oitos anos de idade, já fascinado com filmes, apresentações em circo e espetáculos de comédia, foi adotado por Isabel e Abigail Parecis – responsáveis por uma companhia de teatro mambembe chegada de São Paulo. Porém, algum tempo depois, fugiu e foi parar no Juizado de Menores, sendo posteriormente adotado pela família do político Antonio de Queiroz. O pequeno Sebastião dos Prata estudou então no Colégio Sagrado Coração de Jesus até a terceira série ginasial.

Há versões diferentes para sua estreia no teatro, mas sabemos que as suas primeiras participações foram na década de 1920 – destaque para a peça “Nhá Moça”, de 1926. Em 1927, passou a integrar o grupo que formava a Companhia Negra de Revistas, estabelecida no Teatro República, e que existiu apenas até o ano seguinte. Grande Otelo só voltaria aos palcos em 1935, participando da peça “Goal!”, de Jardel Jércoles. No programa da peça, ele foi apresentado pela primeira vez como Grande Othelo, assumindo assim o nome com o qual se tornou célebre. Logo que voltou de uma turnê feita pela América Latina, Portugal e Espanha, o ator passou a brilhar nos palcos dos principais cassinos brasileiros e dos mais importantes teatros do Rio e de São Paulo. Em especial, no Cassino da Urca, onde foi a grande estrela, desde a criação até o fechamento da casa, em 1946. Seu trabalho no palco contribuiu decisivamente para a criação de uma linguagem nacional de teatro musical, que ficou expressa através do brasileiríssimo Teatro de Revista.

Grande Otelo estreou no cinema em 1935, com “Noites Cariocas” – realizado nos estúdios da Cinédia. Foi o início de uma carreira de 118 filmes, incluindo “Jardim de Alá”, “O Homem de La Mancha”, “Assalto ao Trem Pagador” e “Macunaíma”, de 1969, feito por Joaquim Pedro de Andrade, que mostra toda a genialidade do artista ao criar, numa pequena aparição, uma das mais notáveis cenas do cinema nacional. Em 1942, filmou com Orson Welles, em “It's All True”. Nos estúdios da Atlântida, onde participou de 29 produções, Othelo foi a prata da casa. É criador de uma dezena de personagens e de cenas antológicas – como a do balcão de Romeu e Julieta, em dupla com Oscarito, na comédia “Carnaval de Fogo”, em que mostrou que a sua carreira no cinema iria muito além das chanchadas. Em 1958, em “Rio Zona Norte”, de Nelson Pereira dos Santos, interpretou um dos seus grandes papéis, o sambista Espírito da Luz Soares.

No início da década de 40, Grande Othelo, fascinado pelo samba, começou a compor. Sua primeira composição, “Vou pra Orgia”, foi gravada na Odeon por Nuno Roland. Naquela década ele criou vários clássicos, como o samba “Praça Onze”, uma inspiração que desenvolveu com seu compadre e principal parceiro Herivelto Martins. Nesses escritos está colocada a sensação da inquietante forma de estranhamento que se apodera do homem do samba quando caminha de volta às origens de seu mundo: “Estou aqui / Eu sou o Rio, das batucadas / De samba / Dos terreiros de samba / E da Praça Onze, neném” (OTHELO: 1993, p.78-79). O ator dizia ter muito orgulho de ser sambista. O grandioso domínio musical adquirido por ele ao longo do tempo rendeu-nos diversos sambas que tratam da realidade da vida dos que tem de ser fascinantes e, mesmo assim, não conseguem ser aceitos inteiramente: “A vida não vale nada / Prá que me aborrecer / Sou feliz vivendo assim / Há de passar cem anos / Até que se esqueçam de mim” (OTHELO: 1993, p.124).

Além dos sambas, Grande Othelo deu mostras de sua veia poética em versos que recuperam o manancial de mitos, lendas, e saberes traduzidos e conservados nas Américas pelos escravos e seus descendentes:

 

Neste minuto de reflexão

Invoco à força de Ogum

À inteligência de Xangô

À candura de D. Oxum

E peço a Oxalá,

Ao povo da mata

Povo da encruzilhada

Aos pretos velhos, eu peço

Peço à luz e as trevas

Para que meus passos

A minha cabeça

E o meu coração

Meus braços, eu todo

Possa caminhar, seguro

Por este chão.

Assim seja.

(OTHELO: 1993, p.109)

 

Também escreveu outros versos em que estão presentes: a terra natal (Daqui de Uberlândia / Pra chegá em Barretos / É um pedaço de chão / E nós tem que chegá / Com toda boiada, Bastião); e Ary Barroso (Mas dali veio gente, muita gente. / Veio a Jacira e veio o Ary também); o menino Bastiãozinho (Pensa nas crianças, Maria / E volta hoje, amanhã, qualquer dia, / O Sebastiãozinho, / Está crescidinho, sabe Maria?); e o beijo louco (Esta mulher, precisa amar... / Precisa, toda. Urgente! / Amar selvagemente! Precisa receber e dar de si, / Completamente! No beijo louco.); e o sossego terno (Depois então, a calmaria / Total... Sem demasia... / O sossego terno complacente, / Da mulher que amou.); o Brasil (Ora viva a minha terra / E o meu auriverde pendão / Desperta, Brasil! / Raiou teu alvorecer / Desperta, Brasil! / Queremos lutar / Queremos vencer) e o amor (Deus me deu / E eu não quero perder / A alegria de viver / Eu sou teu, e tu és minha / Eu sou teu rei, / Tu és minha rainha). Os versos também contam de seu lamento:

Sou só.

Hoje.

Ontem também eu era só...

(OTHELO: 1993, p.17)

Esses versos refletem não só a problemática do artista negro: “Eles já não me aplaudem mais... / Não! / Eu tenho medo! / Pode ser que amanhã os outros / Não batam palmas também... / Eu quero ficar, assim, só, sem ninguém... Apaguem esses refletores, essas gambiarras!... / Eu vou quebrar este spotligh. / Eu não quero a luz... / Apaguem para sempre a luz dessa ribalta / Quero a escuridão da minha cor envolvendo tudo / Só se escute meus soluços / Neste silêncio mudo...” (OTHELO: 1993, p.54) como também determinam, com transparência, os sentimentos e “sentidos de alguém que viveu e vive em estado de poesia” (AMADO: 1993, p.9): “E si o amor viesse... / À clara luz da manhã nascente? / (...) / E si o amor viesse... / No meio dia de calor de sol a pino? / (...) / E si o amor viesse... / Amando, amando na tarde caindo? / (...) / E se o amor viesse de noite? / (...) / Num coro de rezas, em as madrugadas / (...) / Até que o dia de novo raiasse / (...) / Pra que de novo, amada, / Eu outra vez te amasse...” (OTHELO: 1993, p.113-114).

A publicação dos textos poéticos de Grande Othelo ocorre em 1993, pouco antes da morte do artista, em livro organizado por Luiz Carlos Prestes Filho com o título Bom dia, manhã. Nessa preciosa edição, encontramos poemas, letras de sambas e canções do autor, além de dois textos críticos: o primeiro, escrito por Jorge Amado, aborda da genialidade do artista em suas múltiplas capacidades; o segundo, do romancista Antonio Olinto, trata da essência brasileira demonstrada nos versos e no pensamento do autor.

Todo esse universo poético, da encenação teatral e cinematográfica ao mundo do samba, motivou o trabalho de Roberto Moura, que documenta essa singular história num livro sobre o artista. A biografia narra os principais momentos da trajetória de Othelo a partir da infância: “como sua mãe não tinha leite, Sebastiãozinho é amamentado por uma senhora branca, Augusta Maria de Freitas, de uma família rica”. Mais adiante, relata que “o moleque era um inferno: muito falante, espertíssimo, às vezes comicamente pedante, absolutamente cativante”. A narrativa de Moura explica também o surgimento da alcunha com a qual Sebastião Prata se celebrizaria: “na peça ‘Goal’, no João Caetano, é pela primeira vez apresentado como “The Great Othelo” no programa, como reconhecimento aos seus méritos e suprema ironia de Jardel Jércoles.” Destaca ainda outros momentos de relevo na carreira do ator:

Muitos apresentam o filme (Tristezas não pagam dívidas) como o primeiro da dupla Grande Othelo e Oscarito, mas eles não chegam a contracenar. Oscarito, obviamente, é o filho enlouquecido em sua forra edipiana. Já Othelo, graças à amizade com Ruy Costa e Burle, reivindica uma sequência em homenagem a Júlio Simões e ao Elite Club, que ele escreve, dirige e protagoniza em parceria com os dois, reproduzindo em estúdio a gafieira.

(MOURA: 1996, p.49).

Contando a história do ator e sua vigorosa participação no mundo cênico e cinematográfico brasileiro, o biógrafo pontua o envolvimento sociopolítico e cultural presente nas indagações expressas em cada tema discutido nos encontros vividos pelos dois:

Conheci Othelo pessoalmente por volta de 1983 e convivemos regularmente esses, mais ou menos, dez anos antes de sua morte. Inicialmente, quando meu escritório passou a ser incluído na sua ronda de rotina, eu diria quinzenal, pelo Centro da cidade e, depois, ao sabor das exigências das inúmeras coisas que pouco a pouco fomos nos propondo a fazer juntos, nos frequentando em nossas casas e por Copacabana. Se a primeira visita – mais uma gentileza que agradeço à velha Ciata – se deu por conta de um livro, que tenta organizar informações e ideias do que aconteceu com o povo carioca, e em particular com o negro, em nossa dita modernidade, esse interesse militante, que se desdobrou em atividades intelectuais e artísticas, sempre foi a marca de nossos encontros.

(MOURA: 1996, p.109).

Ao desdobrar informações daqui e dali, o cronista vai dando sentido às transformações vividas por Grande Othelo. A biografia demonstra a extrema riqueza da personalidade do artista e traz ao público-leitor as facetas pouco conhecidas do artista e do cidadão:

Um homem progressivamente refinado á quem não é dada a palavra. O negro possível desde a era Vargas, que queria, nos anos 90, mais, mas muito mais, para sua gente e sua arte. Uma pessoa com uma extraordinária capacidade de ternura que se esconde sob uma certa ironia e verve – como o definiu Vinícius de Moraes. Ou como disse Alex Vianny: um gênio trágico-satírico. O prestígio do maior ator brasileiro em cheque em frente a empresários, escroques e ministros, personagens que se confundem. Sentimentos de fracasso X, a consciência da absoluta genialidade. Comportamentos compensatórios, vulnerabilidade e o eventual alcoolismo. Eventual. Ternura, paixão, malandragem: um herói brasileiro.

(MOURA: 1996, p. 114-145).

A partir dos anos 1960, o ator passou a atuar na televisão, participando de telenovelas de grande sucesso, como “Uma Rosa com Amor” e “Mandala”, entre outras. Também trabalhou no programa humorístico “Escolinha do Professor Raimundo”, no início dos anos 90. Seu último trabalho foi uma participação na telenovela “Renascer”.

Os anos de vida que teve foram-lhe de grande satisfação. Os fatos do passado geraram em Grande Othelo um grande sentido de resistência e disposição para lutar contra o preconceito e falar dessas questões sempre que possível. Acreditava ter vencido por conta de sua índole e pelos novos desafios que surgiam em cada tempo de sua vida nos palcos, nas entrevistas ou passeando pelas cidades em que ia receber prêmios. Lutou com disposição pela vida, pela sobrevivência e pelo amor. Grande Othelo faleceu em 26 de novembro de 1993 de um ataque do coração fulminante, em Paris, onde havia chegado para uma homenagem que receberia no Festival de Nantes.

Referências

AMADO, Jorge. Apresentação. In OTHELO, Grande. Bom dia, manhã. Organização, Luiz Carlos Prestes Filho. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993.

MOURA, Roberto. Grande Otelo: um artista genial. Rio de Janeiro. Relume Dumará; Prefeitura do Rio de Janeiro, 1996.

OLINTO, Antônio. Prefácio. In OTHELO, Grande. Bom dia, manhã. Organização, Luiz Carlos Prestes Filho. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993.

OTHELO, Grande. Bom dia, manhã. Organização, Luiz Carlos Prestes Filho. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993.

Arquivo Geral da Ancine : http://www.ancine.gov.br

Petrobrás: http://www.uberlandia.mg.gov.br/cidade museu.php

 


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