Sikulume

Numa aldeia bem no meio da floresta, vivia um homem muito pobre e muito, mas muito velho. Sem filho ou esposa, de seu não possuía nada além da cabana e de umas poucas cabeças-de-gado das mais magras. Num certo dia de sol, ele sentou-se junto de seus animais e pôs-se a contemplar distraidamente alguns pássaros que iam e vinham no alto das árvores, ao longo de um pequeno riacho, nas trilhas cintilantes. Encantou-se com suas plumagens vistosas, as longas caudas em várias cores e os brilhantes penachos no alto da cabeça.

Nunca havia visto pássaros como aqueles e, depois de algum tempo, correu para a aldeia em busca do chefe. Encontrando-o, contou-lhe sobre o que vira.

– Quantos eram? – interessou-se o chefe.

– Eu contei sete – informou o velho.

– Você terá a minha gratidão eterna, meu bom amigo – o chefe estava realmente muito comovido e prometeu: – Eu lhe darei sete vacas como recompensa por ter vindo contar o que viu.

O velho ficou evidentemente satisfeito, mas, intrigado, quis saber o porquê da recompensa e da emoção na voz do chefe.

– Eu perdi meus sete filhos em combate – explicou ele – e acredito sinceramente que esses sete pássaros sejam eles. Eu lhe peço que continue observando, vigie-os, e de maneira alguma deixe que saiam de suas vistas...

– Não dormirei se for necessário – prometeu o velho.

– Não será por muito tempo, eu lhe asseguro. Amanhã mesmo mandarei sete guerreiros para que capturem os pássaros.

Na manhã seguinte o chefe reuniu todos os jovens da aldeia e disse:

– Escolherei seis dentre vocês e mandarei meu filho, o único que me restou, para completar sete.

Todos perceberam o tom de amargura na voz do chefe, pois o oitavo filho, como todos bem sabiam, era considerado por ele mesmo o mais idiota entre todos os que tivera. Antes, quando os sete amados filhos ainda estavam vivos, o pobre coitado era apenas desprezado, deixado de lado. Mas, desde a morte dos sete, aquele que lhe restara era mais constantemente humilhado, maltratado até.

– Vocês precisam pegar os pássaros – insistiu o chefe. – Não me importa o que tenham que fazer. Apenas tragam todos.

Em seguida, armou-se e acrescentou que qualquer um que tentasse impedi-los deveria ser morto sem a menor piedade.

Os seis guerreiros e mais o filho do chefe saíram no encalço dos pássaros e os perseguiram por muitos e muitos dias até que, por fim, completamente exaustas, as aves foram capturadas. Como já escurecia, ficou decidido que dormiriam ali mesmo e na manhã seguinte retornariam à aldeia. Caminharam por várias horas até encontrarem uma cabana abandonada no meio da floresta. Estranharam, pois, apesar de não encontrarem ninguém, havia um fogo aceso. Dois deles, mais desconfiados, insistiram que deveriam prosseguir viagem e acampar em outro lugar, mas como realmente estavam muito cansados, resolveram dormir na cabana. No meio da noite, um deles, que estava acordado, ouviu quando uma voz, vinda da escuridão que os rodeava, disse:

– Tem carne boa lá dentro. Vou comer o gordinho primeiro...

Outra voz concordou:

– Eu fico com aquele e depois aquele outro...

A primeira voz, cheia de entusiasmo, assentiu:

– É isso mesmo. O de pés pequenos a gente deixa por último ou para os outros. Quem mandou eles não virem conosco!

Gargalhadas soaram no fundo da selva escura. Aquele que tinha pés pequenos atendia pelo nome de Sikulume e era o filho que o chefe tanto desprezava. Assim passava a ser chamado pelos outros guerreiros logo depois de começar a falar, o que acontecia agora depois de ele apanhar um dos pássaros.

– Acordem! Acordem! – gritou ele, fazendo com que as estranhas vozes se calassem e despertando seus companheiros. Mais do que depressa, contou-lhes o que acabara de ouvir.

Nenhum deles acreditou no que ele falou e os mais impacientes chegaram a zombar dele, dizendo:

– Você deve ter sonhado, seu idiota! Não há ninguém aqui a não ser nós e os pássaros, seu irmãos!

Como Sikulume insistiu, combinou-se que um deles permaneceria acordado e, se alguma coisa acontecesse, gritaria para que todos acordassem. Não se passou muito tempo e o rapaz que ficara vigiando viu uma sombra insinuar-se para dentro da cabana. Fingiu dormir quando uma segunda foi avistada junto à porta. Vozes sussurradas repetiram as mesmas observações ouvidas anteriormente por Sikulume, uma delas acrescentando:

– Vamos chamar os outros. Tem carne para todo mundo aqui.

Assim que as sombras, que imediatamente supôs que fossem de canibais, saíram, o vigia acordou os companheiros e todos fugiram. Quando os dois canibais retornaram com muitos outros como eles, não mais os encontraram. A raiva dos convidados foi tamanha que os dois pobres infelizes acabaram devorados por eles.

No meio do caminho, Sikulume parou e lembrou-se de que esquecera seu pássaro.

– Vou voltar – disse, acrescentando tristemente: – Ou não terei como encarar meu pai novamente.

Seus companheiros sentiram muita pena dele e um dos mais velho lhe ofereceu seu pássaro, pedindo:

– Fique com o meu, Sikulume. Você não pode voltar para aquela cabana. Ela está cheia de canibais...

Sikulume agradeceu, mas não aceitou, dizendo:

– Eu jamais poderia aceitar algo assim. O que preciso é apanhar o pássaro que capturei.

Apanhando sua azagaia, cravou-a no chão e concluiu:

– Se minha lança continuar de pé depois de certo tempo, vocês saberão que estou vivo. Caso ela trema e caia, saibam que morri e voltem para a aldeia.

Partiu.

No caminho, encontrou uma velha sentada numa pedra que quis saber para onde ele ia. Sikulume lhe contou e ela lhe deu um pedaço de carne, recomendando:

– Se os canibais correrem atrás de você, jogue esse pedaço de carne sobre uma pedra.

Sikulume agradeceu e um pouco depois chegou à cabana onde os canibais ainda se empanturravam com a carne dos dois companheiros. Apanhou o pássaro e esgueirou-se o mais cautelosamente possível para dentro da floresta, aproveitando que a maioria dos canibais dormia esparramada pelo chão. Para seu azar, um deles acordara naquele instante e, ao vê-lo saindo da cabana, começou a gritar e lhe atirar tudo o que encontrava ao alcance das mãos.

Sikulume correu. Correu muito. Correu em todas as direções possíveis e o mais que pôde. No entanto, para onde quer que fosse, encontrava os canibais e eles estavam cada vez mais próximos. Lembrando-se da recomendação da velha, atirou o pedaço de carne sobre uma pedra. Foi dito e feito. Assim que viu a carne, um dos canibais atirou-se sobre ela e a engoliu. Seus companheiros, aos verem-se privados de um pedaço que fosse, lançaram-se sobre ele e o devoraram, uns atirando-se sobre os outros, se mordendo, arranhando e brigando por mais e mais carne.

Entretanto, uns poucos sobreviveram e continuaram a persegui-lo.

Estavam quase alcançando Sikulume quando ele, lembrando-se de que o manto que carregava sobre os ombros tinha certos poderes, atirou-o para longe. O manto adquiriu vida e rumou noutra direção, atraindo os canibais para muito longe, deixando-os tão cansados que, quando eles se deram conta de que haviam sido logrados, Sikulume já se encontrava entre os outros guerreiros com seus pássaros.

Continuaram sua viagem de volta, mas, um pouco depois, viram-se novamente perseguidos pelos canibais. Correram e logo encontraram um homem sentado numa pedra que lhes disse:

– Se vocês quiserem, posso transformar essa pedra numa cabana.

– Pois faça isso! – gritaram todos.

No instante seguinte à transformação, todos entraram na cabana e se divertiram jogando iceya. Os canibais chegaram e ficaram farejando o ar e a pedra, pois na verdade não conseguiam ver a cabana que estava ali bem diante de seus olhos, mas apenas enxergavam a pedra. Mesmo assim, provavelmente irritados, puseram-se a morder a pedra, acabando por quebrar os dentes antes de finalmente partirem.

Mais uma vez, Sikulume e os companheiros reiniciaram a marcha de volta para casa. Ao chegarem, surpreenderam-se ao não encontrar uma pessoa sequer na aldeia e nem a própria aldeia, tudo transformado num monte de cinzas.

Repentinamente, uma mulher com os olhos esbugalhados, tremendo de medo, saiu de uma das cabanas queimadas e balbuciou:

– Pensei que não tivesse sobrado mais ninguém de nossa gente...

Sikulume quis saber o que tinha acontecido e ela informou:

– Todo mundo foi engolido pelo Inabulele, que foi para os lados do rio.

Inabulele era um monstro enorme que há anos povoava os pontos mais desconhecidos da floresta e assombrava a vida de todos, temerosos que eram de seus ataques quase sempre devastadores.

Sikulume e os companheiros rumaram apressadamente para o rio e, lá chegando, o filho do chefe disse que entraria nas águas com sua lança.

– Se vocês virem as águas agitadas é sinal de que estarei no estomago de Inabulele. Caso as águas se tinjam de vermelho, o monstro estará morto.

E atirou-se no rio.

Como era de se esperar, o Inabulele o engoliu de um bote só. Dentro do estômago da temível criatura, Sikulume encontrou o pai, a mãe, muita gente e gado. Com a lança, começou a espetar o monstro por dentro, uma, duas, várias vezes. As águas do rio começaram a se agitar e a princípio os outros guerreiros imaginavam que Sikulume tivesse sido devorado pelo monstro.

Com o passar do tempo, no entanto, ao verem que as águas começaram a se tingir de vermelho, alegraram-se, pois era certo que Sikulume o matara.

Rapidamente puxaram Inabulele para a margem e o abriram para que a gente da aldeia e seus rebanhos pudessem sair.

Um pouco depois, Sikulume partiu para a casa do curandeiro e, ao sair, pediu à irmã que lhe preparasse bastante comida, pois certamente voltaria com muita fome.

Depois de se fartar, virou para ela e pediu que fosse buscar a pele do Inabulele que matara, pois dela pretendia fazer um manto, visto que o seu antigo se perdera no meio da floresta quando ele fugia dos canibais. Sua irmã chamou alguns amigos e todos rumaram para o rio. Parando na margem, ela cantou:

Inabulele, Inabulele, Sikulume mandou-me aqui para levar sua pele...

Imediatamente o corpo do monstro projetou-se para fora das águas e de sua pele, um certo tempo mais tarde, foi feito o mais belo manto que um guerreiro usou sobre os ombros naquele tempo e naquela região.

Noutra ocasião, Sikulume disse aos amigos que pretendia se casar com a filha de Mangangezulu e todos lhe garantiram que se o fizesse decerto seria morto.

Como sempre fora muito obstinado e até teimoso quando punha uma idéia na cabeça, Sikulume disse:

– Pois eu vou até lá e quero alguém ter a coragem de me matar!

Chamou os guerreiros mais amigos e os convidou para acompanhá-lo. No caminho, chegaram a uma planície onde a grama crescia bem alta e verde e, de dentro dela, saiu um rato, que logo quis saber onde estavam indo. Ao saber que todos se dirigiam para as terras de Mangangezulu, o rato, com o medo na voz, começou a cantar:

Volte, volte, sikulume,

Ninguém retorna de Mangangenzulu,

Nem mesmo tu.

– Nem pensar! – insistiu Sikulume. – Não voltarei!

– Já que não posso impedi-lo, devo ajudá-lo – disse o rato, mandando que ele o matasse e jogasse sua pele para o mais alto possível. Feito isso, a pele começou a dizer: – Não entre pela porta de frente da aldeia, Sikulume. Nem pense em comer da comida que for colocada sobre um tapete novo nem durma numa cabana que não tenha coisa alguma dentro.

Chegando à aldeia de Mangangezulu, prevenidos pelo rato, tanto Sikulume quanto aqueles que o acompanhavam entraram por outra porta que não aquela em que eram esperados, surpreendendo a todos.

– É de costume de nossa terra – pretextaram.

A mesma desculpa foi utilizada quando insistiram para serem servidos num tapete velho e não naquele novo em que seus anfitriões traziam a comida. Algo semelhante foi dito quando pediram que a cabana que lhe deram para dormir fosse ocupada com muitas coisas e que não estivesse vazia como a encontraram.

No dia seguinte, o chefe lhes pediu que cuidassem do gado. Quando estavam fazendo aquilo que lhes havia sido pedido, uma violenta tempestade caiu sobre a região. Sikulume estendeu seu manto e ele transformou-se numa sólida cabana, mais sólida do que uma rocha, dentro da qual todos se abrigaram.

Entardecia quando voltaram com o gado como se nada de grave tivesse acontecido, mais uma vez surpreendendo a todos. A filha de Mangangezulu foi ao encontro dele e bastou um único olhar para que um se apaixonasse pelo outro. O que os dois não sabiam era que, enquanto conversavam animadamente junto da fogueira que iluminava a cabana que Sikulume e os companheiros ocupavam, a mãe dele, uma grande feiticeira que estava inconformada com o fato de a filha gostar tanto dele ao ponto de lhe dizer que o acompanharia a hora em que ele pedisse, se preparava para afastá-los com um dos seus encantamentos mais poderosos.

Pisando na pegada de Sikulume, ela imediatamente o transformou num elande e, cheia de si, virou-se para a filha e disse:

– Quero vê-la acompanhá-lo agora, filha ingrata!

– Ele é o homem que amo, minha mãe – afirmou a jovem, concluindo: – E nada irá nos separar, nem mesmo seus feitiços!

No mesmo momento, ela empurrou o elande até que o animal caísse dentro da fogueira. Diante dos olhos de todos, o elande transformou-se num pedaço de carvão, depois de queimar por certo tempo.

A jovem o apanhou com as próprias mãos e o atirou num pote d’água, e deste ergueu um grosso rolo rodopiante de fumaça que foi aos poucos assumindo a forma e a imagem de Sikulume.

– Venha, meu amado! – gritou ela, agarrando-se a ele e saindo correndo da aldeia, levando consigo um ovo, um saco de leite, um pote e uma pedra muito bem polida, extremamente lisa.

Enfurecido, o pai dela reuniu todos os homens que estavam na aldeia e todos puseram-se a persegui-los através da planície. Ao vê-los, a jovem atirou o ovo ao chão e deste desprendeu-se uma espessa nevoa na qual o pai se perdeu durante algum tempo, mas logo reiniciou a perseguição. Em seguida, ela atirou o odre cheio de leite, que se converteu numa forte torrente d’água que retardou o pai por muito tempo. Ele até procurou livrar-se da água retirando-a com uma cabaça, mas desistiu, resignando-se a esperar que secasse. Mas, assim que não havia mais água alguma entre ele e os dois apaixonados, voltou mais uma vez à perseguição. Foi então que a jovem usou o pote, que, ao espatifar-se no chão, espalhou uma escuridão impenetrável em todas as direções na qual o pai se perdeu por dias até que a claridade retornou e, mais uma vez, ele voltou a persegui-los.

Vendo que o pai não tinha a menor intenção de desistir, ela atirou a pedra quando ele estava prestes a agarrá-los e esta se transformou numa rocha das mais íngremes que ninguém seria capaz de escalar, de tão lisa que era. Então, seu pai acabou por desistir e retornou para a sua aldeia;

Sikulume entrou em sua aldeia com a jovem a seu lado na condição de esposa. – Essa é a filha de Mangangezulu – apresentou-a, concluindo:

– Se tivesse dado ouvidos a vocês talvez jamais tivesse a oportunidade de conhecer uma mulher tão bela e dedicada.

Depois deste dia, ninguém nunca mais teve a coragem de dizer a Sikulume que ele não era capaz de fazer as coisas que ele se dispunha a fazer, e, assim, tornou-se o chefe de todos e um nome por muitos e muitos anos lembrado.

(In: Sikulume e outros contos africanos, p. 20-37.)