Presente de Natal

"Socorro, não estou sentindo nada
Nem medo, nem calor, nem fogo
Não vai dar mais pra chorar
Nem pra rir "

“Socorro”, de Arnaldo Antunes e Alice Ruiz

O menino encostou o rosto na vitrine e ficou sonhando. Sonhar era de graça e, mais do que isso, a única coisa que podia fazer naquele momento. Foi o que fez. Parou e ficou namorando os brinquedos que se amontoavam, inalcançáveis, do outro lado da parede de vidro. Brinquedos lindos. Gostaria de ter todos ou pelo menos um deles.

– Não são bonitos? – observou, desviando os olhos só por um instante para o cachorrinho sentado a seu lado. A resposta veio rápida e entusiasmada com o abanar excitado da cauda fina e molhada, certamente menos pelos brinquedos que fascinavam tanto o menino e mais pelo simples fato de ter sido lembrado depois de tanto tempo que o menino passara olhando para os brinquedos.

Eram todos lindos, bonitos demais.

Sorriu, encantado, e por um instante – que bobagem! – chegou mesmo a ter a impressão de que o enorme urso de pelúcia, que servia de guardião para todo os outros brinquedos na vitrine, lhe sorria de volta. As mãos espalmadas, cheias e sedentas de sonhos da fartura e felicidade, tornaram-me inesperadamente brancas quando as apertou com força, a força angustiante do impossível, contra a vitrine.

Tocá-los, queria apenas tocá-los. Pelo menos um deles. Só um. Não era pedir muito, era?

Os soldadinhos de chumbo espalhados num enorme campo de batalha à sua esquerda sacudiram as sólidas cabecinhas metálicas e foram unânimes em afirmas que não, não era.

Nossa, eles eram tantos... Ficava zonzo ao tentar contá-los. Impossível. Não dava para contar nem a metade. Bolas e mais bolas. Bolas de futebol. Bolas de basquetebol. Bolas de voleibol. Bolas de tênis. Bolas imensas, bolas só para brincar, bolas de enfeitar. Todas as bolas girando e girando em seus sonhos, boas de pegar, de chutar, de enfeitiçar.

Os carrinhos de um imenso autorama corriam e corriam, sem parar, sem nenhum destino definido, e seus olhos e os do cachorrinho, brilhantes como se estivessem hipnotizados, perseguiam-nos rápida e ansiosamente, peregrinando pelas bolas de todos os esportes e tamanhos, navegando pelos oceanos de carrinhos, parando nos enormes bonecos de pelúcia, bocas abertas, mudas de espanto. Copos enfeitados tinham a cara do Piu-Piu, do Frajola, do Mickey, do Pateta e até do Cebolinha. Naves espaciais e heróis japoneses alimentavam ainda mais aqueles sonhos que morriam no frio intransponível do vidro da vitrine. Um menino lourinho e, depois, um outro tão negro quanto ele ficaram olhando-o do outro lado da vitrine. Por um instante apenas. Todos estavam bem mais interessados nos brinquedos, que acabaram levando em caixas bem grandes, maiores do que eles.

Ele sorriu, meio envergonhado de si mesmo, baixou os olhos para os pés descalços e sujos, fugindo da desconfiança dos meninos e dos adultos que os escoltaram, tão sorridentes quanto eles, até os carros que depois rumaram bem depressa para a cidade iluminada e enfeitada para uma grande festa. Um olhar melancólico deu pela falta do urso da vitrine e um grande vazio denunciou o fim da corrida dos carrinhos de autorama que, naquele momento, existia somente no melhor e mais improvável dos seus sonhos. Um vazio ainda maior cresceu dentro dele e o sorriso murchou em seus lábios, pra voltar quando outro urso assumiu o posto de novo guardião da vitrine e um reluzente ferrorama assentou pesados trilhos brilhantes no deserto da dor recente que crescera em seu coração com a partida do autorama.

Ah, eram lindos!...

O sorriso cresceu lenta e inevitavelmente em seus lábios. Ficou feliz. Os brinquedos. O Natal valia unicamente pela possibilidade de vê-los todos reunidos do outro lado da vitrine, maiores, mais bonitos e em maior quantidade. Brinquedos de todos os cantos do mundo para todos os gostos e bolsos. Brinquedos, mesmo que fossem para olhar e jamais brincar. Ficava feliz simplesmente por poder vê-los. Lindos, brilhantes como as estrelas no céu, estrelas no céu negro de seus olhos completamente apaixonados por cada um deles. Quando o sonho se tornava vivo, crescendo de tal maneira em sua cabeça que parecia possível, chegava a imaginar-se tocando os brinquedos, um após outro, esfregando-se na maciez do enorme urso branco, perseguindo o trem com os olhos, chutando todas as bolas, brincando com todos os brinquedos, até com as bonecas!

“Sonhar é de graça. Sonhar é melhor do que nada”, pensou. É bem verdade que muitos sonhos são perversos, e os maiores são piores. Machucam, magoam, ferem.

“Ah, mas é tão bom...”

– Sonhar é melhor do que nada – repetiu para si mesmo, vagamente infeliz, enquanto suas pernas doíam e os pés, dormentes e formigando muito, obrigavam-no a sentar-se. Sentou. Ajoelhou-se por uns instantes, mas, quando os joelhos também começaram a doer, preferiu ficar sentado e assim permaneceu. Não se levantou mais, os olhos fixos nos presentes do outro lado da vitrine. Freqüentemente, aparecia alguém e levava outros de seus brinquedos, mas logo em seguida aquela mesma pessoa voltava e recolocava outro igual, mas às vezes um diferente, um brinquedo novo para se olhar e sonhar. E assim, sonhando, ele foi ficando, o sorriso cada vez mais fragilizado pelo sono, a alegria murchando, até que por fim desligaram as luzes e a maior parte dos brinquedos sumiu na escuridão da loja. Restou apenas a vitrine, com luzes de muitas cores, apagando e acendendo, marcando os passos firmes do sono, aquele adversário invencível que se achegava rapidamente à sua tímida alegria natalina.

Deitou-se com as luzes servindo-lhe de cobertor, fechando-lhe os olhos mansamente, permitindo-lhe entrever os brinquedos no outro lado da vitrine. Seu presente de Natal, o calor do corpo magro do cachorrinho que o aquecia.

– Na falta de presente melhor, esse serve – disse para si mesmo, o sono finalmente o estava vencendo.

Sorriu para o quarto do urso que guardava os brinquedos na vitrine e zelava por seu sono. Abraçou-se com mais força ao cachorrinho, que lambeu o rosto dele com carinho. E, com a cabeça povoada de sonhos, agarrou-se àquele carinho como se fosse um presente, seu presente de Natal. E dormiu feliz...

Nesse momento, um dos lados da grande faixa de pano vermelho que havia no alto da vitrine desprendeu-se e a faixa ficou rodopiando no ar. Mesmo assim, ainda dava para ler o que estava escrito nela:

FELIZ NATAL!

(In: Cenas urbana, 2000. p. 17-21)