O olhar

"mas você sabe
que tudo ficou antigo
e você não volta
nem com escolta
nem amarrado
porque o passado
já te perdeu
e o perigo
muda mesmo de
endereço"

“Não tem volta”, de Christiaan Oyens e Zélia Duncan

Seu olhar encontrou o passado quase por acaso. Sem querer mesmo. Aliás, aquele olhar casual, passeio inútil, mas costumeiro pela infinidade de coisas do outro lado da parede de vidro, há muito tempo deixara de ser importante para ela e, quando acontecia, era por outros motivos, razões bem diferentes das que um dia teve.

Desencantara disso há muito, muito tempo...

Contudo, aquela aparição inesperada encantou-a. Não pelo que havia ali. Já vira outras e melhores, com certeza. Caso lhe perguntassem, provavelmente não saberia explicar o porquê daquela fixação, o interesse inesperado, a atração hipnótica. Limitou-se a ficar ali, o olhar triste e insone prisioneiro daquela imagem distante.

Distante.

Passado.

Seu olhar foi arrastado para o passado ao ver aquela menina do outro lado da vitrine. Um olhar profundo e melancólico para um passado que vinha se esforçando para esquecer.

Lembrar? Lembrar pra quê, se doía tanto?...

Por isso, procurava esquecer. Não guardava recordações. Queimara as poucas que tinha. O passado morreu bem cedo e sem deixar saudades. Preferia enveredar pelas multidões sempre passageiras da cidade. Entregar-se a rostos e mãos sem nome, que tinham um único interesse: possuí-la.

Usá-la.

Comprá-la por um certo preço e usá-la. Xingar. Bater. Mas pagar por isso. Prostituta. Vadia. Vagabunda. Rameira. Pagar até pra xingar.

Desaprendia e aprendia todo dia. Nunca era a mesma de um dia para o outro. Mudava sempre. Era sempre uma estranha para si mesma. Não valia a pena eternizar-se por mais de um dia, pois isso representaria acumular coisas, lembranças, palavras, nomes, situações, criar uma vida para si. E tudo o que não queria para si era uma vida. Ambicionava apenas passar sem deixar rastros, diluir-se no esquecimento diário e implacável da cidade sem deixar o menor vestígio. Sobreviver. Jamais viver. Morrer sempre, a todo instante, para não lembrar.

Por isso, aquela visão inesperada e o fascínio que exercia sobre ela desorientaram-na completamente. Perda de tempo. Não deveria estar ali por tanto tempo. Inútil. Doloroso. Lembrar-se era sempre um exercício tolo de dor e frustração.

Saia da frente dessa vitrine, sua boba!

Desista!

Vamos embora!

Xingou-se. Gritou consigo mesma. Fez o que podia e o que não podia para reiniciar a marcha pela calçada, a peregrinação pelo néon e pela escuridão da cidade.

Impossível. Tornava-se cada vez mais inalcançável para si mesma, o olhar prisioneiro daquela imagem distante mas comovente do outro lado da vitrine, dentro da loja.

Além dos brinquedos. Além da beleza da vitrine. Além das luzes de todas as cores brilhando incessantemente numa existência cinza e passageira. Além dos preços que naquele instante já podia pagar sem maiores esforços. Muito além até de suas lembranças mais distantes e sepultadas sob as incontáveis vidas que vivera desde que chegara àquelas ruas para se vender. Muito mais além do que tudo isso e alcançados apenas por seu olhar, aquele olhar profundo e triste, estavam o encanto e a impossibilidade...

Uma menina como ela. Uma menina negra como ela. Uma menina negra como ela fora um dia. Uma menina negra como ela fora um dia, que quis um presente, qualquer coisa, num Natal esquecido, que alguém, certamente um homem, um homem mais velho como aqueles que costumavam procurá-la nas ruas transformadas em seu lar, lhe disse que daria.

Sete anos?

Talvez. Pouco importava. O que realmente importava era o olhar. O olhar era o mesmo. Era aquele olhar de paixão irresistível e desejo interminável. Um olhar que experimentara um dia, noutra eternidade, milhares de anos antes de resolver que não teria mais vida e não teria mais nada para não sentir aquele mesmo olhar e sofrer a primeira dor por causa dele.

A lágrima veio repentinamente e surpreendeu a menina do outro lado da vitrine. Assustou-a...

– Pai!

Apareceram uma mulher e um homem. A menina era muito parecida com o homem. Tinha os olhos iguais aos da mulher. Filha.

– Filha. Filha. Filha.

Nenhum dos três entendeu porque ela chorava. A menina refugiou-se no colo do pai e afundou o rosto em seu peito, trêmula. A mãe a consolava, acariciando repetida e generosamente a sua cabeça.

– Caia fora, sua vagabunda!

Alguém de dentro da loja tentou enxotá-la, mas ela nem ligou. Sorriu para a menina, feliz. Não tinha dúvidas de que os pais lhe dariam aquele presente ou qualquer outro que quisesse. Não pagaria muito por aquele presente e ela sabia muito bem do que estava falando. Muitas vezes o preço que se paga por certos presentes é muito alto. Amargo. Na verdade, muitas vezes paga-se com a vida.

– Feliz Natal, menina!

 (In: Cenas urbanas, p. 58-62).