SOL SANGUÍNEO

(Terra chã)

                                 Para: Cienas Santos

                                       Sérgio Natureza

1.

Voltar a desolado abrigo
da terra
          chã.
Voltar aos limítrofes
da palavra (larva fulminante
e alarde) que assiste

da despensa
ao rapto da existência.


Voltar ao solo atávico
onde os loucos
                      riem-se
à sombra da neblina.


E – bardo – romper

a borda,
           rasgar o hímen
da linguagem
          que capta
em sua teia,
os inquilinos do assombro.

O que move a lenda
é o fulgurar do incêndio,
o raio invicto
a fecundar a pedra.

Falo do que se inscreve
no inabordável
como a lua no lago
                          alada.
falo do que falam
caninos num tempo de crotalus.

Voltar ao fulminante alarde
da palavra.

2.

Minha terra é o nome
que desabotoa o indomável.

A palavra física
em meu uivo esventrado. Minha
erra é ter-
               me.

E urdir
– no capítulo da carne –
o sopro itinerante;

E arder
sob o sono do tempo
e sua lírica de escombros.

Recolhido às artérias
lúdicas
ouço contar a memória
no living das lagoas secas.

Insular e ascética a semente
fugaz dos rastros
                       me guarda
em seu enigma.

Longe
é a flor que fala à contenção
que transborda.
E o cio homicida que o vento
escuta e cala.

Do cais rasurado de esperas
velam noites a terçar
atabaques.

Minha terra é minha pele.

Das rinhas
em que o sal
dá músculos à água

vieram o sol –
e o azeviche
conjugado à carne;
e vieram moendas de açúcar
e súplica;
e vieram demandas de açoite
e séculos
a desatar fonemas
à fervura.


A mim que cingiram caminhos
o mar de
Antilhas laceradas.

3.

Reconheço-me no branco
que agasalha o rastro
das palavras. No rumor
de sílabas que lavram
minha urdidura: o parto
a granel sem sigla
ou made in...

– Nascer foi domesticar
as pedras.

Lentamente a carne exorta
ao poema
sua memória de cactos.
Eis as palavras aprendidas
ao deserto; eis as falanges
que vicejam cicuta
sob as flores.

(Ó vertigem de espinhos!)

Cada sopro é a noite
a esgrimir
sua asa de estio; cada cio
é o alfabeto
que desata o gesto.

Minhas pernas grafam
a pátina morena dos rios
de águas turvas. Os rios
(ruminantes) sujos de argila
e sede.

Algo a forjar-me
esta língua de prismas,
réstias que adensam
a face expandida do sonho.

Ou sulcos no tempo
sem relevo: a goiv’arando

a névoa. E malho,
e lanho, e lírios insulares
ao olho – dardo à deriva –
de minha larva de exílios.

4.

Venho dos córregos
de água salobra,

do descampado
chão de farelos

na cara o sol
rachou minha argila

seca: é o que digo
aos guardiões

que batem lata
em meu silêncio.

Distante ovulam
ritos de memória

como remendos
no ontem. E meu

olhar rasante
incide, infante,

ao canyon livre
e ao habite-se

da flama do dia
e sua blitz.

O que não busco
me tem

o que não houve
era meu

pedras no caminho torto
mentiras feitas de mel

há que se viver o árido
como se cálido

há que se viver o breu
como se brio

há que se viver o nada
como se nada,
nada, nada até sangrar

que só dão água
para quem já tem o mar.

5.

Êh mar, ímã de azuis, êh mar!
Linfa de sal (negreiro)
em minha carne
ciliar de palafita em flor.

Eis-me.

Cuspido ao pólen
da palavra
minha terralenda
e súplica
que se exalta
no que em mim se inscreve
a barro
e sangue.

6.

As águas móbiles
                        do desejo
alçam-nos
à densa limalha dos dias,
ao voo das órbitas
                       submersas.

Urgem no átrio
em que a sede reincide: as
asas azagaias do desejo.

É sempre limiar o sol
que nos labora
                      o rito
da manhã
feita de azul e enzimas.

Assim as palavras
(que são flores de água),
alimentam-se de rimas
para entreter o vento.

Todas as coisas estão grávidas
de fogo. De um certo navegar
para nenhum cais.

Dentro de nós o tempo
seminal
           pagina a memória
anímica
como um deus que adoece.

Antes do que é brilho
e forma
a vida uiva para ninguém.

7.

O fogo infiltrado no olhar
amanhece
               o tecido da fábula,
exubera o sol

no gestual da noite
esquiva. A lágrima

rútila
que a manhã côa
do infinito ontem
                         espalha-se
na imensa teia de rasura
dos dias

ante o branco de nada
ante o branco mineral
de sal

                    e silício.

E a boca espelha
a léria
               lúdica
Onde tudo se esfarela
E a linha
            não alinha.

E nem a rinha
de extintores de sonhos
arrasa
        a fleuma
da palavra transfigurada.

8.

Pelo menos resta
o verso – árido
mineral a soprar
sua luz transversa.

(E os remendos da linguagem
a despirem o que vestem.)

Abram-se talhos na tarde gris:
grafemas luminares.

No beco da página em branco
freme o lábaro do poema
o rastilho de sílabas
cruas.

(Tão furtivo
que a palavra apenas
esmerilha
seu dorso de lince.)

Algo se rasga
na casca do insondável
(donde a assisto ao tempo
atado à minha ínfima
espessura).

Algo marulha na derme
(e na calha)
do signo manifesto.

Minha terra é o nome
do indomável enigma,
a palavra física incrustada
na fábula.

Minha terra é minha pele.

                  (Sol sanguíneo, p. 15-27)