Samba em Berlim 

Seu Irineu era um mestre de obra de mão cheia. Bem verdade que gastava um pouco mais de cimento do que o necessário. No entanto, garantia que laje feita por ele nunca selou, nem parede sua nunca trincou. Ademais, estava acostumado a construir trincheiras e fortificações militares. Ele era um ex-combatente da Segunda Guerra Mundial, reformado como Terceiro Sargento do Exército. Na hora do rancho, quando ele me explicava os detalhes técnicos da obra e, principalmente, justificava os custos de material e de pessoal, também sobrava um tempo para me contar suas aventuras de pracinha da FEB, na Itália.

Aos dezoito anos, Irineu já era um pedreiro completo em sua arte, um verdadeiro oficial de colher, pedreiro de massa fina, apto para qualquer serviço de reboco ou de estuque. Resolveu deixar sua Tobias Barreto, em Sergipe, para tentar a vida na Bahia. Foi acolhido por sua tia, Dona Mocinha. Era uma criatura muito pacata e prestativa, que morava em uma casinha de porta e janela, situada na Travessa Zumbi dos Palmares, uma ruela que liga a Rua do Jenipapeiro à Rua Direita da Saúde, única em toda a cidade do Salvador que lembra o líder do Quilombo.

Irineu chegou à Bahia em tempo de guerra. Os ânimos andavam exaltados. Os integralistas do bairro ainda não se haviam recuperado do golpe de Getúlio, que alimentou-lhes todas as esperanças e depois decretou o fechamento da Ação Integralista, em 1937. Em repique, apoiavam ostensivamente a Alemanha nazista, o que lhes valeu a denominação de "quinta-colunas", ou seja, a coluna inimiga que apunhalava o Brasil pelas costas.

De fato, tudo faziam para desmoralizar o esforço de guerra brasileiro. Certa feita, em dia de parada militar, espalharam a notícia do ataque de um submarino alemão em Itapuã, o que provocou uma desordenada correria. Era a evidência da fragilidade de nossas defesas e da incapacidade das Forças Armadas brasileiras em caso de um ataque real.

Em outra ocasião, quando foi decretado o blecaute em Salvador, mandaram para a Alemanha a informação de que a terceira janela do 2º andar da Secretaria de Agricultura, que dava para o mar, permanecia com a luz acesa durante toda a noite, graças à incompetência de um funcionário. Isso valeu um comunicado debochado da rádio alemã, em emissão para o Brasil, advertindo as autoridades militares baianas sobre este furo na defesa e ameaçando bombardear a Secretaria de Agricultura. Isto era a guerra psicológica adversa. Para eles, o Brasil em guerra era uma piada!

A desmoralização do soldado brasileiro fazia parte do programa político dos quinta-colunas. A composição racial do nosso povo era o pretexto. Para eles, o soldado brasileiro era geneticamente incapacitado para a guerra moderna.

– Só faltava essa invenção do Getúlio! Onde que esses soldados negros e mestiços seriam capazes de enfrentar os perfeitos soldados do exército alemão, os mais belos exemplares da raça pura, ariana, superior e disciplinada?

Para humilhar a tropa, diziam que Getúlio havia feito acordo com Roosvelt para fornecer cozinheiros e limpadores de latrina para o exército americano na Europa.

Todos os dias, de manhã cedo, Irineu passava pela venda do Cecílio, na esquina da Travessa Zumbi dos Palmares com a Direita da Saúde, para comprar a sua boia do meio-dia. Era comida de pedreiro, ou melhor, comida de mata-engenheiro! 1. De preparo rápido, para ser feita e comida em uma hora de almoço. Tinha que ser também suficientemente indigesta, para ficar rolando no estômago até o fim do serviço. Era a carne de sertão, ponta de agulha, com três dedos daquela gordura amarela. Ao receber a quentura, liberava o óleo que temperava a carne e que animava o fogo de papel de jornal. Também era frequente o bacalhau de barrica, conservado na salmoura de azeite doce português. Nem carecia de muito fogo. O jogo era rápido. Bastava chamuscar o bacalhau, jogar uma medida de azeite de dendê cru por cima e dar uns sopapos2 de farinha de mandioca para fazer o bolo. Para ajudar a descer, um bom gole de cachaça de Santo Amaro... Depois, era só esvaziar todas as moringas de água. Comia-se tudo com todo o sal e com toda a gordura.

– Benza Deus, era preciso ser muito macho pra enfrentar esse rojão!

Irineu não se metia em política. Ele veio de Sergipe para trabalhar, juntar uns trocados e mandá-los para a Veia. Um dia ainda haveria de comprar uma terrinha em Tobias Barreto. Pouco se lhe dava Getúlio, a guerra, os comunistas e os integralistas se engalfinhando... O que mais o irritava era ter que ouvir todos os dias, de manhã cedo, na hora de comprar os sagrados ingredientes de seu rancho, a cantilena dos galinhas-verdes.

Primeiro era o ódio a Getúlio, que tinha todos os defeitos. Depois, era aquele endeusamento da raça-pura. Os alemães eram os melhores do mundo em tudo: mais fortes, mais inteligentes, melhores soldados. Geraldo, chofer da Samdu3 fazia discursos afetados contra os aliados.

– Os franceses já foram bons soldados – até porque ganharam a Primeira Guerra – mas hoje estavam degenerados pela sífilis e pelo comunismo. Que derrota humilhante aquela de 40!

– Os ingleses eram a pior raça que existia. Interesseiros, hipócritas, capitalistas, como os judeus, só pensavam em dinheiro.

– Americano, não era pra se levar a sério. O que eles sabem fazer é cinema, mas guerra não se ganha em Roliúde.- Brasileiro, nem pensar! Está cientificamente provado que a alta incidência de sangue negro na população brasileira produz tipos malformados, tendentes ao crime e às taras sexuais. Assim lhe falaram os lentes da Faculdade de Medicina, que também eram os dirigentes da Assistência Pública. Isso era a mais pura Medicina Legal e Criminologia. Os mestiços brasileiros são bons para capanga e jagunço, para soldado, jamais!

– Aquilo me revoltava - dizia Irineu - mas eu não queria me meter em briga de venda.

***

Um dia, desabou sobre sua cabeça a notícia da morte do primo Crisóstomo. Era um cabra trabalhador que nem ele. Juntou uns cobrinhos e pegou um vapor para Recife. Estava determinado a mudar de vida. Queria ajudar a mãe e as duas irmãs que ficaram em Sergipe. No meio do caminho, foi para o fundo do mar, junto com quase todos os passageiros do vapor. Soube, também, que isso foi obra de um submarino alemão.

O torpedeamento do Araraquara provocou uma comoção nacional. Os relatos de sobreviventes dão conta do massacre dos sobreviventes do naufrágio. O submarino alemão veio à tona, ligou os holofotes e metralhou os botes salva-vidas. Até hoje, quando fala do assunto, os velhos olhos embaçados de Seu Irineu ficam mareados.

– O meu primo não teve uma chance.

Isso foi a Conta. A discussão política sobre a pureza das raças não lhe dizia respeito, mas matar primo seu era uma questão pessoal. O juízo de Irineu pegou fogo.

– Filhos de uma puta! Lá no meu interior isso não fica assim só! Isso tem forra!

Irineu jurou vingança. O sangue de Crisóstomo tinha que ser justiçado com sangue de alemão, raça-pura, ariano, o escambau que fosse!

No mesmo dia, largou a obra e foi ao Quartel General, no largo da Mouraria e alistou-se na FEB. Quando o assunto caiu no conhecimento dos intelectuais da venda de Cecílio, foi a maior esculhambação.

– Irineu soldado? Um moleque preto, analfabeto, troncho que nem só, carregador de balde de massa, nem pra cozinha de americano serve!

Irineu nem ouviu as provocações. Sua única ideia era vingar o primo. Comprou uma peixeira4 de cabo envernizado, batizou-a de Alemôa. Todo o dia ele amolava a faca, conversava com ela como se fosse gente. Como ele, ela devia estar preparada e convencida da vingança.

A Dona Mocinha, sua tia, arrancou os cabelos da cabeça. Rogou por todos os Santos para Irineu tirar aquela ideia do juízo. Fez até um ebó5 com Tia Muçula. Coitada, como se ainda tivesse alguma autoridade sobre o sobrinho, ameaçou mandá-lo de volta para Sergipe. Tudo debalde. Irineu agora pertencia à Nação. Quando ela mal pensou, ele já estava vestido na jéga6 do Exército, destacado para o Rio de Janeiro e embarcado para a Itália.

***

Tudo era muito estranho naquela guerra. Muita ordem unida, muito treinamento, muita ciência. Para ele, aquilo tudo era besteira. Ele estava ali para fazer acabamento no inimigo7. Tudo que ele precisava era de sua Alemôa bem afiada. O pior veio com aquele Sargento Peixinho. Ali sim, era um bicho ruim de corte, carne-de-cabeça, caxias8 que só. Confiscou a Alemôa, sob alegação de que peixeira não fazia parte do equipamento militar.

– Rei morto, rei posto. Dei o mesmo tratamento de primeira à minha baioneta. A bichinha estava como um fio de navalha. Quando soube que os americanos chamavam os raça-pura de Germany, batizei minha baioneta de Maria Germana, substituta de Alemôa.

Tiro pra lá, tiro pra cá, a guerra ia seguindo, até que um dia, lá estava ele, no meio da tropa brasileira, diante do Monte Castelo.

O relato dos acontecimentos de Monte Castelo deixa sempre Seu Irineu cheio de orgulho. Ele ainda está lá. Ele vive esse passado. São feitos heroicos que ninguém pode lhe tirar.

A tropa brasileira estava toda no pé do morro, em ponto de bala. Lá me cima, os raça-pura entrincheirados, pareciam mangar9 dos brasileiros. Irineu e os outros não entendiam porque tanta demora. O sargento falou que estavam esperando os aviões americanos, que não chegavam. Isso irritava muito. Afinal, será que os quintas-colunas10 da venda de Cecílio tinham razão? Será que os brasileiros só prestavam para coadjuvantes de filme americanos? Ah, isso não!

Logo em seguida, o sargento passou a contraordem:

– O General Zenóbio se retou. Com ou sem apoio aéreo ela vai tomar aquele morro na marra! 11

– Ele vai à frente, acenando um lenço branco. E enquanto a gente enxergar o lenço, a gente vai atrás.

Dito e feito. Quando Irineu viu aquele lenço branco na linha de frente, sentiu que a hora era essa. Agora eles iam ver o quanto valia o soldado brasileiro.

Que nem um sagui12, Irineu subiu aquele morro, caindo e levantando, rolando de banda, saltando de um lado pro outro, que nem contavam do Volta Seca, o único sobrevivente do bando de Lampião, que cumpria pena na Bahia.

E tome-lhe tiro!

Sem ninguém lhe mandar, deitou o mosquetão de banda e desembainhou a Maria Germana. Tirou o pino e mandou uma galinha pulando13 pra cima da trincheira dos gringos. A granada caiu muito acima do ninho das metralhadoras. Foi o tanto do inimigo se jogar no chão. Que nem um gato, num pulo só, Irineu estava dentro da trincheira do inimigo. Um nervosinho se levantou com um parabellum14 na mão, e recebeu nos peitos uma lapada da Maria Germana. Foi um talho só, do pé do pescoço à espinhela. Um outro engraçadinho se levantou com o fuzil engatilhado e foi derrubado pelo fogo da infantaria brasileira. Os outros três da guarnição, quando viram aquele negão, com a Maria Germana querendo mais, levantaram com as mãos pra cima, gritando:

– Ai, ai, ai!

Em um segundo, tudo passou pela sua cabeça. No chão, dois estrebuchavam. Os três em pé, tremiam que nem vara verde. Um deles se mijou todo.

A confusão era grande, estampidos, explosão de morteiro, de granada, berros, gemidos, aquilo era terra em que filho chora e mãe não ouve! Nessa hora, Irineu ouviu uma voz de mulher no pé do seu ouvido:

– Vamos lá, Irineu, falta mais um. Vamos fazer uma cesariana naquele galeguinho dos óio azul, pra ver se nasce tripa!

Era o diacho da Maria Germana. Bebeu sangue e queria mais.

– Se aquieta, coisa ruim! Não sou matador, só vim fazer justiça. Um por um tá mais que bom!

Quanto mais Irineu gritava com Maria Germana, mais os alemães se apavoravam, pensando que era com eles. Era um tal de:

– Ai, ai, ai!

Nessa hora, felizmente, o Sargento Peixinho subia com o resto da companhia.

– Prisioneiros sob controle! Vamos embora, soldado, tem mais lá em cima pra gente pegar!

Imediatamente, jogou Maria Germana fora, pegou seu mosquetão e seguiu a tropa. Que alívio! Nunca imaginava agradecer tanto a presença do sargento. Já de cabeça fria, por um instante pensou:

– Esses são os superiores, os raça-pura? São uns ordinários que nem nós, não tem diferença, morrem e afrouxam do mesmo jeito. Naquele instante, não passou por sua cabeça nenhum pensamento de vitória ou de superioridade. Ele sentiu muita pena daqueles desinfelizes.

***

A volta ao Brasil foi triunfal, passeata, romaria ao Bonfim, discurso de político. Irineu nem se abalou. Chegou em casa, tirou a farda e tomou rumo da venda de Cecílio.

Geraldo Chofer estava lá, junto aos outros quinta-colunas, com uma cara de jegue sem pai. Irineu nem deu bola. Foi direto ao balcão e como um bom sargento, em voz alta, pediu com firmeza:

– Ô Cecílio, bota aí um Samba em Berlim!

Gaguejando, o italiano retrucou:

– Seu Irineu, que negócio é este de Samba em Berlim?

O soldado deu uma fungada de brabeza e explicou, tim-tim por tim-tim:

– Não sabe não, cabra? É branquinha brasileira, CA-CHA-ÇA, não sabe?, misturada com pretinha americana, CO-CA-CO-LA, não sabe?, fazendo acabamento em Berlim! Entendeu agora?

E ali, finalmente, terminou a sua guerra.

 

 

1Comida que mata engenheiro – comida de peão.

2Sopapo de farinha – comer farinha com a mão; colocar uma poção de farinha na palma da mão e de um só golpe, batê-la na boca.

3Samdu – Serviço de Assistência Médica Domiciliar de Urgência.

4Peixeira – grande faca de ponta usada pelos peixeiros.

5Ebó – oferenda aos Orixás.

6Jéga – fardamento; gíria militar.

7Fazer acabamento em alguém – destruir; destroçar.

8Caxias – sujeito cumpridor de todos os regulamentos; enquadrado; pessoa obcessivamente cumpridora de seus deveres.

9Mangar – ridicularizar.

10Quinta-coluna – partidários da Alemanha nazista, no Brasil, durante a Segunda Guerra Mundial.

11Na marra – à força, de qualquer jeito.

12Sagui – mico, pequeno, macaco doméstico.

13Galinha pulando – lançar granada; gíria militar.

14Parabellum – pistola automática de grosso calibre.

 (Histórias de Negro, p.101-17)