Eles pensam que ninguém sabe

Eles pensam que ninguém sabe, mas eu vi. E por isso, não durmo direito há mais de um mês. Mesmo sabendo que eles pensam que ninguém é testemunha, não fico sossegado. Também, quem é que mandou eu ficar zanzonando sozinho, feito lobisomem. Ainda mais pr’aquelas bandas. Nenhuma pessoa com um pouco de juízo na moringa se arriscaria a andar sozinho pr’aqueles lados a tal hora. Acho que por pensar dessa maneira, eles não se preocuparam muito em dar uma busca mais detalhada no local. Talvez isso nem tosse importante. A julgar pelo arsenal que carregavam: Vinchesters, Chimites... canhões e trabucos de todos os tipos e calibres; o mais importante pra eles tava lá dentro daquele barraco quase caindo aos pedaços. Eu percebi, de longe, o grupo – graças a Deus que não me viram primeiro! – e me amoitei rápido, observando a manobra.

Primeiro, se dividiram e depois foram se espalhando e cercaram o barraco. Quando todos tinham tomado posição, um deles gritou: “Tinhaço, te entrega. Sai daí de mãos pra cima que não te acontece nada. Você tá cercado. Não adianta resistir”. Ninguém respondeu. E o mesmo cara insistiu: “Nós sabemos que você tá aí. Não tente nenhuma manha. É besteira. Nós somos em dez. Melhor você vir por bem”. Nada. Então, um sujeito foi se arrastando feito cobra – eu vi muito bem, porque minha vista é pra lá de boa – e quando chegou debaixo da janela do barraco, atirou um negócio pelo buraco que havia nela e saiu correndo. Teve um barulho seco lá dentro e começou a sair fumaça. Era uma granada de gás. Demorou um pouco e todos ouviram uma tosse – todos quer dizer: eles e eu – e uma voz rouca, mas forte, entrecortada, gritou: “Tá legal... Eu m’intrego... num atirem... eu m’intrego”. Lá fora, o chefe do grupo ordenou – só podia ser o chefe porque era o único que falava: – “Sai devagar, de braços erguidos”.

Pro meu espanto, não dos outros, a porta abriu num repente e um monstro dum negrão saiu correndo, com dois berros nas mãos, atirando pra todo lado, feito um doido. Pro meu espanto, não dos outros, porque eles abriram fogo cerrado em cima do infeliz e picotaram o nego à bala. De araque! O sujeito ficou um tempo suspenso no ar, não sei quanto, mas tenho certeza que ficou, de tanto tiro que recebeu, até que caiu, igual uma peneira, levantando pó do chão.

Não vi mais nada. Minha vista escureceu e eu apaguei mesmo. Quando acordei, o lugar tava deserto. Mas o sangue, as marcas dos tecos estavam lá, no barraco. Era só cutucar com um canivete, que a gente arrancava um bocado de arrebite. Dei o maior pinote da minha vida. Corri pra burro.

Agora, vivo nesse dilema. As imagens não saem da minha cabeça. Tenho certeza que eles pensam que ninguém sabe, mas eu vi. E por isso, não durmo direito há mais de um mês. Mesmo sabendo que eles pensam que ninguém é testemunha, não fico sossegado. Eles são fogo, e quem me garante que não venham a descobrir que eu também sei?

(Fogo cruzado, p. 65-66)