METAFÍSICA DO GALO
Não obstante, já houvera o toque da faca no pescoço da ave quando alguém gritou em advertência que a soltassem. É legorno, disseram, não serve para o santo. O bicho sentiu o frio da lâmina, o calor do arranhão e ademais, ouvindo o grito, debateu-se.
Legorno — assim: esbranquiçado, pescoço liso, sem o porte dos grandes dourados, negros, vermelhos. Mas galo, sem dúvida, e ali estavam as cristas carnudas, as asas largas e curtas, o esporão que confirma o macho. Nem mesmo se poderia dizer galispo ou garnisé, que era de bom tamanho, só que legorno.
A meia-noite, uma ave tresnoitada, sacudida pela mão que a conduz ao sacrifício, ofuscada pela lanterna que outra mão carrega, pode assustar-se ainda mais e evocar o diabo pela barulheira que faz. Nessas ocasiões, há quem lhe fale ao ouvido, quem peça coisas ao santo, conversando com o galo. Com aquele ali não adiantava, era um esporro só. Legorno, ainda por cima. Não serve, há quem discuta, mas também quem tenha certeza: não serve para o santo.
Vida de galo é só canto, bicada e pastoreio de galinhas. Se é raça de briga, pode virar herói na mão de um galista. Em de casa de quimbanda, sendo todo preto ou vermelho, são muitas as chances de que termine encruzilhado numa meia-noite, em meio a farofa, cachaça e charutos.
Legorno, afora a serventia às fêmeas, é bom de panela. Depois do contato com o fio da faca, porém, o galo nunca mais foi o mesmo. A princípio arredio, varava cerca e grade, evitando companhia. Voltava a casa quando tudo ficava quieto e teimava em passear pêlos quartos, mais atento a gente do que a galinhas.
Um dia, bicou a verruga do dono da casa. Foi assim que se começou a falar dos seus poderes. Tarde de domingo, ressaca de pinga, o quimbandeiro jazia escarrapachado na cama, deixando à plena mostra a verruga sinistra, prcocupante, que lhe crescia no nariz. No posto médico, haviam falado em cirurgia e exames. Mas para ele próprio era coisa feita, desgraça desejada, despique tramado por desafeto competente em malefícios. Aí, vem o galo e extirpa o mal com uma só bicada, sangue quase nenhum, segundo o testemunho espantado da dona da casa, que entrava no quarto naquele exato momento.
E da ordem natural das coisas que o fato se tenha espalhado, que vizinhos tenham acorrido em busca de milagres para outros males, que o quimbandeiro tenha procurado segurar a ave, de olho na administração dos negócios de cura. O comportamento do bicho, entretanto, desencorajava ações serenas. Agora, não só transvoava as barreiras, fugindo à aproximação, como passara a andar a maior parte do tempo em cima de muros, chamando a atenção do povo.
O Mutuá, bairro de São Gonçalo, tem quintais, cercas, terrenos baldios, mas antes de tudo histórias fortes de quimbanda. Ali ainda é possível a um galo tomar as liberdades que tomou o legorno, desafiando quem tentasse agarrá-lo. Fato é que o dono abriu mão de ações mais enérgicas, em parte grato pelo episódio da verruga, em parte suspeitoso de que o santo pudesse ter deslocado os nervos do bicho no instante do quase-sacrifício. Até mesmo gente que normalmente cobiça aves deixadas ao léu respeitava o desacerto do legorno.
Quem comeria uma ave na certa transtornada por Exu? Mas bicho nenhum, ainda que desvairado, foge por inteiro ao destino instalado no seu íntimo. Galo é galo, gosta de ninho no chão, de remexer a terra com unhas fortes atrás de comida, gosta de banho de areia para se livrar dos insetos infiltrados nas penas. O legorno não gostava de nada disso, certo, mas acabou adorando juntar-se, como todos de sua espécie, a uma galinha.
Uma tresmalhada, sem choco, que só dormia no alto das árvores.
De dia, aparecendo alguém, o galo subia no muro, onde se equilibrava, andando, pesquisando vermes; a galinha, embaixo, no pé do muro, à cata de semente e farelo. De noite, empoleirava-se no galho mais alto de um tamarindeiro, ele logo abaixo, vigilante. Nada diziam as pessoas contra o macho, porque havia o peso das virtudes a se celebrar. Mas a fêmea, olhada com desconfiança, passou a ser chamada de galinha maluca, começou-se a especular se já não deveria estar na panela.
Deus, bem sabem os cristãos, condenou os animais à panela da eternidade quando os entregou às mãos dos homens. Lá no Génese, Ele não deixa por menos: "Sede o medo e o pavor de todos os animais da terra e de todas as aves do céu, como de tudo que se move na terra e de todos os peixes do mar...".
Ou seja, tem vida, se mexe, vira comida fácil, fácil. Por isto há quem possa achar difícil compreender exortações do tipo "baleias e peixes, bendizei ao Senhor! / pássaros do céu, bendizei ao Senhor! / bichos do mato, bendizei ao Senhor!".
Alguns, aqui e ali, escapam: gato e cachorro, por exemplo, esses que se pensa conhecer melhor. Pensa-se, é verdade, pois bicho é mesmo o que não se determina nem se sabe. Bicho é só pensamento e ilusão.
Dos que vivem empanados com os homens, arrisca-se, é muito natural saber mais. Cachorro, reflexo do dono, é todo euforia e latidos. Gato, não, gato é só pulo e silêncio, fiel a si mesmo e ao lugar, de onde seduz os humanos.
De um galináceo, ai dele, não se conhecem afetos. É que nele mais interessa ao homem, no fundo, a morte — seja da prole nos ovos que se comem, seja a carne no prato.
Talvez por isso não se soubesse muito o que fazer com a extravagância do legorno e da galinha maluca. O par esquivava-se às romarias organizadas. Às vezes chegava gente do bairro e, ao pé do muro, tentava obter do galo benefícios milagrosos. Alguns saíam dizendo-se curados, ora de reumatismo, ora de asma, ora de maiores desgraças. Nem sempre pagavam ao dono, que ainda tentava bancar o oráculo, quando já havia perdido em muito o controle das consultas, pela natureza desacertada do galo. O quimbandeiro esforçava-se para tolerar as coisas do jeito que eram.
A galinha é que era cada vez menos tolerada.
Pra começo de conversa, não era d'Angola, essa que o povo de santo chama de conquém. Chama, respeita e tem porquê. Diz o fundamento que certa feita a peste estava matando muita gente numa região. As pessoas foram consultar o doutor em mistério, que mandou pintarem de manchas vermelhas, com o pó da entidade responsável pela geração da vida, uma galinha comum. O ardil manteve a Morte afastada e fez nascer a conquém, por isto forte nas obrigações. Duas delas, sabe todo bom zelador de santo, equivalem a um bicho de quatro pés.
O problema é que a galinha do Mutua não unha nada que invocasse o respeito da tradição. Ordinária, sim, sem qualquer marca especial que justificasse a presença ao lado de um prodígio. Conquém, não uma ave amalucada, deveria ter feito companhia ao galo.
Daí, a intolerância. Daí que aturar legorno mandingueiro é uma coisa: tem a força do incomum, a pressão do povo, a possibilidade de ganhos, a tradição africana de honrar os animais. Já a maluquice de uma galinha pode no máximo afetar o choco, nunca a sua carne. E sendo panela o assunto, o povo de santo, como aliás a cristandade esperta, nada sabe, nem quer saber, daquela quizila imposta no Génese: "...não comereis a carne com sua alma, isto é, o sangue...".
Por estas e outras, a galinha tresmalhada, sem dono conhecido, foi morta e servida ao molho pardo pela mulher do quimbandeiro. Se fosse d'Angola, pelo menos teriam borrifado água debaixo das asas no instante do sacrifício, como manda a lei do santo. Era pedrês, comum: nenhum rito, nenhuma homenagem.
Ao desaparecimento da fêmea, seguiu-se o do macho. Não por morte, mas por sumiço, melhor, por sonegação. Tornou-se averso à simples visão de humanos, escondendo-se durante o dia no fundo de um monte de pedras, tocos e folhas adjacentes à casa do dono. Era avistado à noite, de vez em quando, andando no muro. Arisco, trépido, legorno.
Mais uma vez, estranheza: onde já se viu galo morar em toca, que nem cobra ou tatu? Quiseram desentocá-lo à força. Em vão. Um vizinho versado em metafísica do oculto veio amenizar as inquietações com a palavra "ádito", a câmara secreta de templos antigos. Ali, ao abrigo de olhares não-iniciados, os sacerdotes zelavam por deuses poderosos.
Decidiu-se respeitar o ádito do legorno, deixá-lo em paz. Com o passar do tempo, nem mesmo à noite mais se podia avistá-lo: parecia estar definitivamente enquistado, em jejum absoluto. A toca, já afamada, era objeto de curiosidade e sussurros reverentes da vizinhança.
Mas o olor que se diz exalar das coisas santas não parece existir no universo do galo, por mirífico que seja.
O mau cheiro levou um dia o quimbandeiro a pesquisar o lugar com a enxada. Havia apenas ossos, restos apodrecidos de carne, vermes e penas. Foi tudo cuidadosamente limpo, envolto num pedaço de veludo preto e exibido a quem de direito. Ou seja, a gente que, por viver na lei do santo, sabe das transmutações, sabe da força da matéria tocada pelo Invisível.
Na quimbanda do Mutua já é consenso teológico que, mesmo morto, um bicho de pena afeiçoado pelo santo permanece animal de poder. E mais, começa-se a pensar diferente sobre legorno: agora galo galo, quem sabe, em definitivo.
(A lei do Santo)