O Filho de Luísa

 

Uma boa história pode começar de qualquer maneira. Esta começa com uma quitandeira da Bahia.

Chamava-se Luísa O sobrenome deixo para dizer depois.

Luísa era pequena, bem negra e tinha lábios roxos – diferente de quase todo mundo, que tem lábios cor-de-rosa. Outra coisa: a maior parte dos negros da Bahia, naquele tempo, escrava. Luísa não. Por quê?

Não sei. Quando começou esta história, ela já era livre – nada, nada sabemos dela antes disso.

Luísa também não era cristã, Era um problema? Para as autoridades era. Tinham receio de negros que não fossem cristãos. “Se acreditam em outros deuses”, pensavam, “podem pedir ajuda a eles e esses deuses vão ajudá-los contra nós. É melhor, aqui na Bahia, só permitir, o deus cristão.”

Para Luísa, porém, ter outra religião não era problema.

Ela achava que todo mundo pode ter a sua. Quanto mais religiões e deuses, melhor. Quem estava certo nesse ponto? Não sei. Queria apenas contar urna história e já estou enredado em discussão.

Luísa tinha outra estranheza. Quer dizer, que se considerava estranheza.

Namorava negros e brancos. Não olhando a cor, se apaixonava dia sim, dia não. Tinha uma queda especial por sujeitos de mão cabeluda.

– Beleza não põe mesa – dizia para as amigas. – Tem mão cabeluda? É meio caminho andado.

Uma tarde veio à quitanda um certo Oliveira.

Luísa o primeiro que viu foram as mãos. Servia. Uma hora que Luísa saiu do balcão para pegar uns tomates, Oliveira sapecou-lhe um beliscão no pescoço. Luísa respondeu com uma ombrada que jogou Oliveira no chão. Era a paquera da época. Naquele mesmo dia começaram a namorar firme. Aí não teve mais beliscão nem ombrada.

Não há mal que sempre dure. Nem bem. Luísa fazia parte de uma sociedade secreta de negros malês. Eram negros de religiões não cristãs, que preparavam uma revolta pela liberdade de todos os escravos da Bahia.

Religiões não cristãs, na verdade, eram duas: a mulçumana e o candomblé. Luíza era mulçumana e simpatizava com o candomblé, de forma que era a pessoa ideal para o movimento.

Em fevereiro de 1835, estourou a revolução dos malês. Luísa foi presa e comeu o pão que o diabo amassou. Castigada com duzentas chibatadas, teve hora que ela desejou ter morrido. Pensou que ia apodrecer na cadeia. Mas, um belo dia, quem veio soltá-la? Oliveira. Ele era branco e foi ao juiz com uma conversa comprida: ia se responsabilizar pela quitandeira e coisa e tal.

Luísa, é claro, ficou muitíssimo agradecida. Foram andando pela rua e ela contou uma coisa para ele: estava grávida e tinha sido uma sorte não perder a criança. Oliveira também contou uma coisa: era jogador profissional de cartas. Estava vendo aquele chapéu de pissandó, aquela medalha de São Judas Tadeu de ouro trinta quilates? Tinha ganho no sete-e-meio.

Quando fez nove meses, nasceu um menino.

Batizaram-no Luís, mas não vou dizer o sobrenome.

Era negro fosco como Luísa e tinha a testa alta e o nariz fino como Oliveira. Não sei se disse que ele era português. Oliveira gostava sinceramente de Luísa. Então, dando sorte no jogo, abriu uma Loja para ela vender doces de alfenim.

Luísa continuava agradecida. Jurou que não ia mais se meter em revolução. Em troca, Oliveira jurou que ia procurar trabalho honesto e largar os ases e os curingas.

Nenhum dos dois cumpriu o prometido. Um dia estourou nova revolução de malês. Luísa combateu e voltou a ser presa. Oliveira arrumou uma dívida grande no jogo. Aí, pegou o filho:

– Vou te apresentar a um velho amigo, no cais da Ribeira. Quando se aproximaram desse amigo, falou: “Esse é um filho, que te falei”. Piscaram o olho. O homem, zaque! Botou algemas no garoto.

– Pai, manda ele me soltar! – pediu Luisinho.

Oliveira foi escapulindo de mansinho:

– Perdão, meu filho. Mas foi tua mãe que mandou te vender.

Você ainda vai ser feliz.

Luisinho, acorrentado no porão, chorou até o Rio de Janeiro.

Os anos passaram. Do Rio, Luís foi vendido pra São Paulo. Subiu a pé, acorrentado pelo pescoço, a Serra do Mar. Era inteligente e determinado como a mãe – que, agora posso dizer, se chamava Luísa Mahin. O sofrimento da escravidão não o destruiu. Uma das suas tarefas era estudar com os filhos do senhor.

Aproveitou para aprender o que eles tinham preguiça de aprender.

Se tornou rábula, que quer dizer advogado sem diploma.

Começou provando no tribunal que tinha direito à liberdade, pois era filho de uma mulher livre. Em seguida, iniciou – junto com outros estudantes e jornalistas – a Campanha Abolicionista.

Conseguiu, ele sozinho, libertar mais de mil escravos, provando na Justiça que eles tinham direito à liberdade porque tinham sido escravizados depois da proibição do tráfico. Seu nome e sobrenome:

Luiz Gama.

Um dia, voltou à Bahia e procurou o pai. Tinha morrido. Procurou a mãe. Não acreditou nunca que ela o tivesse vendido. Luísa tinha partido. Mas o nome de Luís Gama ficou, para sempre, na História do Brasil, como uma figura pioneira da Campanha Abolicionista.

(Gosto de África: histórias de lá e daqui, p. 9-14).