Fato comum

 

Fato comum é o preto de elite, ou gente que se considera elite. Aqueles que pensam que são exceções, os primeiros, os mais ou menos aceitos com naturalidade. Têm mesmo certa vaidade em serem considerados diferentes.

_ “Não, mas você é diferente”. Esta é a frase de integração acompanhada de um sorriso e tapinha nas costas.

Na senzala da vida, havia negros na casa grande e os negros de eito, certamente alguns pelos privilégios tomavam ares de elite. Mesmo os capitães do mato também poderiam se considerar melhores e privilegiados. Entre os negros libertos, alguns, por vezes, tornaram-se destaques nacionais. Alguns destes, entre capitães do mato e libertos, se consideram elite. O fato de serem escravos da casa grande iludia alguns, dava prazer ao ego a necessidade de sentirem-se diferentes dos outros, mas no topo, para o branco senhor de escravo, todos eram negros, escravos. Não eram nem seriam elite, pois uma elite tem poder de decisão, de influência na vida de uma sociedade. Possivelmente as únicas elites foram os quilombos, elites de combate, capazes de fazer mudar a vida da colônia, com a força de fazer sentir sua presença nas decisões mesmo da metrópole em Portugal.

Essa história de elite caminha no tempo. Existiam em São Paulo os negros dos Campos Elíseos. Campos Elíseos foi o antigo palácio do governo do Estado. Os negros dos cortiços dos Campos Elíseos se consideravam melhores por habitarem as cercanias do palácio do presidente do Estado. Habitantes do cortiço como outros da Glete ou da São João. A avenida São João era uma rua estreita poviada de grandes casarões onde a massa subdividia o espaço. Mas nos Campos Elíseos, era diferente, ficava perto do palácio.

Negros de elite, os mulatos rosados, o Que Vi e mesmo os aristocráticos, são gente pensando pelo mesmo fascínio, das mesmas ilusões, marcados por mínimos contornos da realidade. Naturalmente a elite daqui não é mais de um assalariado bem pago, um funcionário qualquer ou doutorzinho empregado, não representando nada no geral da sociedade, não tendo poder nem influência decisória. As elites se formam no processo produtivo ou num conjunto no processo cultural. As elites do nosso meio não produzem, apenas consomem. São elites da pobreza, procurando diferenças mínimas, divisórias satisfações do ego para não olhar a realidade mais ampla. Elites da pobreza não só econômica, desprovida de dicionário e bom senso para avaliar o significado do termo.

Entretanto, tem alguns fatores que os diferenciam de nosso geral, o pedantismo, o reacionarismo, o medo constante etc. Medo de abalar sua fantasia. Medo de ser traído pelo bom comportamento e ousar. Medo da ousadia de exigir, de atacar as oportunidades. Mesmo a ousadia pode ser vista como um mau comportamento. Ela, “elite”, fica quieta, escondida.

Certeza tenho, enquanto negro continuar sonhando com elite, aparência e coisas mais, nada vai para frente. Atrás do falso status, cobre-se o sol com a peneira, perde-se tempo precioso, deixa de realizar ações fundamentais, tanto para as vidas individuais como para ações comunitárias.

Essa tal “elite”, ela entra pela cozinha e aí permanece. Não arromba portas, não senta na sala, por isto eu posso rir dela.

(In Negros na noite, p. 9-14)