O tradutor de poesia

 

"E eu desci e fui ao boteco. Que hora é essa, que meu coração enfraquece, a cabeça zune, o pé arde, a frieira fica mole? Vou em busca de Cavaco. E de Belinho.

Joga pra lá, joga pra cá, joga pra lá, que sobe sem cair e vem a embaixada, vai cair, não caiu, e se cair eu envergonho, solta a bola, Belinho. Tá amarrada, ah! ah! ah!, eu vou é beber. Esse Belinho...

O barco atracado balança pra lá, balança pra cá, as vasilhas estão no bidê, pergunto ou não a Belinho, se posso mijar no bidê. Se Cavaco vier vai beber esta água, que é água do mar, mas Cavaco não vai saber, que ele gosta de beber de tudo. Se pergunto a Belinho ele não vai responder, que para Belinho toda água é água. Mas sujou as vasilha. Não sujou, que toda a água é água, vai Belinho dizer, quando Cavaco vier beber a água das vasilha e notar que tá salgada ... Ah, mas vou mijar que tou apertado e o mar é grande, o burrico Chiquinho eu me vejo, me olhando pela janela do catamarã. Ah! a Baía é grande, a Bahia é grande.

Foi Belinho que mandou eu desdizer o mandado, e eu desdigo se não agora a barriga de Sara vai inchar, vai inchar. Eu estava no mato, a roer minha grama, quando veio roçando no pé da moita, quando veio chegando Bugíu, e Sara. Bugíu tocando como quem não quer nada, a anca de Sara, de cara amarra, bem sonsa essa Sara, e bem sossegada. Ousado!, pensei, fingi que roía mas fiquei assuntando, quando ela encostou no barranco da cepa vi logo a sujeirada que tava pra vir. Rinchei precavido, Bugíu não ligou - amanhã eu conto tudo pra Belinho -, e continuou abraçado com a anca de Sara, encostado no barranco. Aí, sua manga de guapa saiu dos guardados e olhei para Sara que azougava quietinha, abanando o rabinho, os olho rastero, fingindo roer, que ela bem que me via, e teve vergonha, mas não regougou, que pra não espantar a manjuba, de Paco Bugíu, que encostava azeitava na gruta manrola, já com a gota serena, castanha de Sara. Vi que Sara ganhou primeiro, não adianta esconder, dizer que não é dessas, não. Vi, vi sim. A pata da frente tremeu um pouquinho, encurvou no joelho, e aí ela andou toda pra trás, devagar, arriscando derrubar Bugíu, encarapitado na sua anca, já suado e tremelicante. Parecia que ia sair a banana fora da casca, mas Sara apertou todos contra o barranco, que não ia sair, a hora era dela. Depois veio Bugíu, começou a tremer como quem tá de mal maior, fez depressa como quem tá com pressa e descarregou. Ficou ali um tempão, a descansar, espremido no barranco. Antes de ir beijou Sara no pescoço, e ela correspondeu, sonsa. Me olhando de soslaio. Pensa que não vou contar. Mas amanhã, de manhã, Belinho vai saber de tudo."

 

A primeira vez que o vi morava num barco, num catamarã. E estava sempre no boteco do Valdeque, em frente. Uma cachaça, uma cerveja, uma cachaça, uma cerveja, o corpo magro e alto, dente de ouro. Branco, branco, mesmo anos e anos de sol nas costas nuas. Perguntei-lhe se pescava. Disse que não. As mãos grossas, a corrente no pescoço, o ar franco e sadio. E perguntei-lhe o nome. E o que fazia. Eu tudo faço, respondeu. Eu sou Belinho, e por ofício Tradutor de Poesia.

 

– He! He!, Tradutor de Poesia?

– E dá dinheiro isso?

– Dá, dá o suficiente, principalmente pelas poesias que não traduzo.

 

“Senti o Braço de Adamastor no meu ombro. Nunca tinha sentido antes a pele de Adamastor. Lisa e amiga, o carinho da Adamastor. Fechei os olhos e deixei-me ficar a sentir o calor de Adamastor. Vamo a pesca, Anilzo? Hoje não, que tô derreado. Que derreo que nada, vamo sair por aí, cavar umas minhoca. O braço de Adamastor permanecia. Passado no ombro, agora o antebraço me vem ao cangote. E eu derreado, esfraquejado, aquela canseira nas pernas, vontade de dormir e não mais acordar. Parecia maleita, o principinho dela. Mas foi. Que Mastor era mais forte. A pescar mandi, que engole as minhoca. Foi aí, doutor, foi assim que começaram os meus sonhos.

Então, quando eu acordei não acordei. Estava tudo escuro em volta. E um calor danado. Tentei abrir os olhos mas não dava. Parecia que tinha um visgo cobrindo. Fiz força para pular da cama, os movimentos ficaram parados, as pernas presas, não mexiam, amarradas no corpo. E os braços: o mesmo das pernas. Tentei rolar para o lado, a ver se caindo acordava, e acordando está resolvido o problema. Não rolava. Um suor quente molhava-me o corpo. Gritei: Belinho!, me salva, me acorda. Aguardei. Gritei de novo: Belinho! Belinho! Nada. Sentia-me sufocar. O ar me faltava. Forcejei para sair do poço escuro em que me encontrava. Forcei com os ombros, com as pernas - lisas - que não existiam. Com o pescoço, que pensava estar no mesmo lugar. Com o nariz. Ah! Com o nariz. Aí consegui. Meu nariz me puxava, me empurrava. Furava o caminho, coleava, arrastando o que me cobria, que me apertava, me confrangia: terra, terra úmida. Rodei o nariz para reconhecer meu corpo. Na sua ponta meus olhos viscosos se voltaram e viram. Meu corpo era agora todo liso, sem braços, nem pernas. Marrom acastanhado, anéis brancos nas duas pontas. Vi, atemorizado, em que me tomara: numa minhoca. Numa minhoca. Daquelas grandes, de pescar. Meu estômago se revirou de nojo. Vomitei tudo o que comera na noite anterior: escorreu um monte de lama. Uma torrente tão grande que meu corpo, agoniado, coleou, e os dois Iados se encontraram contorcentes."

O caminhar rastejante, a roer torrões de terra, a escorrer senovente, sinuoso, persistia. Pelos meandros da terra, já sem braços e sem pernas, Anilzo sofria o seu sofrer. E todas as noites o mesmo suplício. Passou a olhar a cama com temor. E o cobertor, qual túnica de Nesso, o fitava, já insone, tentadoramente. Teve medo da loucura. E decidiu não pagar a Belinho o dízimo do mês, pois, sabia, seu sonho seria o traduzido no Tablado de Misericórdia.

 

 

O Tablado de Misericórdia fora resto da campanha de Teófilo, Filó, o Deputado. Mandara·o construir. Falara bastante. Se elegera. Fora·se. Sabia-se então que estava abandonado

 

 

A tradução de poesia era algo que não se dava. Vinha Belinho. Subia no Tablado. E se calava. E todo mundo reunido. Final de mês. Dinheirinho vasqueiro. Esperavam a Tradução que não vinha. Narizes ao alto. Tudo mudo. Belinho e a multidão.

 

 

Começava então Belinho a chamar os nomes. E encostado ao moirão. O Tablado já velho. Chamou Zezé de Sá Joana. Que veio, de cabeça baixa, por entre o povaréu, e pagou. As notas sujas, encardidas, mochas, passaram para o bolso implacável de Belinho. E veio Nunuca, e Luiz Gatolaim. E Nemésio. Balduína fingia que não era com ela. A multidão prendeu o hálito. Vai ler, vai ler. Belinho vai ler a poesia que Duína cometeu esse mês. Que seria?, tão novinha ela! Mas Duína não quis, foi em casa, desamarrou a fronha e trouxe o dinheiro, economizado há anos. Devia ser poesia grossa, a de Duína. Belinho guardou. E desceu do Tablado. A multidão se dispersou, decepcionada. Nunca pudera Belinho traduzir a poesia que ouvia: da boca do vento, do cheiro das flores, da água do rio, da pedra, da carne sofrida, do povo que era seu.

O mar jogava, para um lado e para outro, frio o pau do saveiro. O pau-guia. De proa.

Nezinho, enregelado, via se desvanecer em medo o orgulho de ter saído com o pai, para a pesca. Que nunca lhe dera trela, o pai. A olhar de soslaio, a fazer judiação por qualquer tunada. Chegou a pensar que o painho não lhe gostava. Por muito branco?, como a mãe? Ou pelas sem-graceza dos da rua, que lhe dizia ter nascido das liberdades do vizinho quando o pai em alto-mar? Que eu não tenho culpa. Se não é meu pai, que me dê um, que em tendo dois eu passo a ter nada? E o frio já lhe roía os ossos. Painho, a terra envem? Sim, meu filho, vem perto. Tem blusa não, painho? Tem não, que você não trouxe a sua, onde se viu vir pro mar sem agasalho? Que esse frio mata homem, quanto mais pirralho.

Sabia não, painho, que é a primeira vez que venho ao mar, para ver o espada, o braço forte do pai, o balanço das ondas, as mulhé na praia, esperando os peixe, esperando seus home, tá frio, painho, tem gasalho não?

– Não.

 

 

O corpo mirrado de Nezinho foi ficando cada vez mais mirrado. De tosse, tosse, tosse, escarro, carro, rro, ro... E Tuíca a olhar, a desejar que o menino desapareça, o estigma da desconfiança. A cara de Neca, a lhe olhar desaforada, dia após dia, ano após ano.

O dinheiro que Belinho extorquia só dava pro mês. Era pouco de cada, gente pobre, sedenta de medo de poesia. E seu trabalho era árduo. A Tradução de Poesia. Ficava ali, Belinho, à boca do catamarã, a tomar seu parati, a engolir seu traçado, ima lambreta cozida, o sururu da sobra dos outros. E a trabalhar duro, de manhã à noite. A ouvir o vento. A escutar as flores. A ler o que os animais traziam no rosto. A perscrutar as pedras. Acariciando as águas. Trabalho duro o de Belinho: o Tradutor de Poesia.

Foi ali que o burrico Chiquinho se chegou. Como à procura de Cavaco, seu amo. Era sempre ali, que vinha Chiquinho, ao cair da tarde. Esperar que Cavaco, já bem trolado, lhe caísse ao lombo. Voltavam para casa, cabeceando ambos. Burrico e dono. Gostava Belinho de prosar com Chiquinho. Com suas orelhas espetas, com o muxoxo de suas narinas, com o soquear das suas patas.

Naquela tarde ficou sabendo das estrepolias da jega Sara com o sacripanta do Bugíu.

Foi mesmo lá, no catamarã, que o mar lhe trouxe o gemer de Nezinho. E a terra, fendida pela sua tosse seca, chovia para cima, a chorar a chorar. A chorar o choro dos incompreendidos. Dos abandonados. Os elementos vinham repousar sobre o braço veioso de Belinho.

O sonhar de Nilzo era um sonho pesado. Que empurrava as nuvens do céu e as folhas das árvores. Todos os pássaros sabiam. Porque Nilzo virava minhoca de noite. Belinho soube sem querer saber. E entristeceu, que Belinho não queria Nilzo transsformado em minhoca. A ser comido pelos peixes que costumava sempre fisgar. Mas Belinho tinha que cobrar. Era seu ofício, sua profissão: Tradutor de Poesia. E cada um tem a sua sina.

A praça estava superlotada naquela manhã. Belinho estava cansado de não poder traduzir sua poesia. Era seu ofício. E cada um tem o seu destino. E tem que ser seguido. Não queria morrer sem fazer uma tradução. E por isso anunciara. A poesia deste mês não teria paga. Seria traduzida. Que era seu ofício e profissão. Pelo menos uma vez: o tradutor ia traduzir.

Por isso o Tablado de Misericórdia regurgitava. Estavam todos lá, ansiosos: Nunuca, Alício, Pedra, Aniceto de Amora, Anunciata, Bugíu, o jovem mecânico, Zequita, do papo inchado - dizem que de cachaça -, todos, todos lá, que hoje ia ter fuzuê. Não adiantava dinheiro, não tinha paga: a poesia ia ser contada

Belinho chegou, a cara lavada. Andou no Tablado, prum lado e pro outro. Pegou num dos paus do suporte, abaixou-se, pegou mais uma talagada do copo de Eufrasto, que lho deu solícito, ansioso da tradução.

 

 

A coisa saiu de repente, num jato: Nilzo é xibungo! É, Nilzo de Tia Josina.

A multidão esperou muda.

 

E Belinho dizendo: quando a tarde era cinzenta depois do oitavo mandi trunfado, Adamastor se chegou pra Nilzo e lhe pôs a mão no ombro como amigo e camarada Nilzo velho pescador sem vergonha sem mais nada, após a vara tirada se deixou se derreteu. E a pensar só que trem bão este braço esta mão me arrebento de tesão vem cá meu Adamastor meu amigo e meu amor me deixa ver seu minhocão. Minhocão, minhocão.

 

 

 

E o Nilzo foi pra casa que de macho e fudelão se mudou em peça fresca quis pensar e não pensou, quis parar mas só corrreu disse agora eu sou cabrão. Mas não disse para si nem pro filho ou pra Tonica disse ao vento ao pensamento e foi dormir só a pensar. Pensar pensou pisou pegou na minhoca do Adamastor e aí ficou e aí virou e revirou que a minhoca que ele é a minhoca que ele quer se apaixonou pelo que não pode pelo próprio pelo home pelo amigo Adamastor. Não foi ele, nem o sonho, foi o ar que me contou.

 

 

A praça ficou em silêncio. Num canto do Tablado de Misericórdia, agarrado ao pau de soca, lá ficou Anilzo, o Anilzo de Tia Josina, a chorar, a chorar bem baixinho.

 

... e na esteira do corisco, na ressoca do cuitelo, se chegando de mansinho, a jega Sara sexou. Sexou com Bugíu que não sabia que era isso que a jega Sara só queria, se roçando se melando e zurziu para Bugíu, garoto novo sem sabença e Bugíu foi atrás entrou pelo mato com Sarinha, ela vem, vem mansinho, só com a bunda que falava, que uma jega não tem fala, mas Bugíu que já queria entendeu o querer de Sara.

 

Quando a pança de Sarinha começou a reinchar, o reincho que Sara procurava esconder e Jacó apadrinhar mas nasceu corpo de Sara com cabeça de Bugíu, Bugíu sabe, mais Jacó, menos Sara que é jega mas tem culpa que foi ela que trouxe Bugíu pro mato e já começa a amamentar.

 

A multidão correu, foi à casa de Jacó e trouxe a aberração pro Tablado. Que foi mamar, no peito de Sara, com cabeça de Bugíu, dente, olho, cabeça certa, mas o corpo de equada, pata, rabo, coisa errada.

Mas Belinho não contou, que aprendeu da coisa feita pela orelha de' Chiquinho, que estava lá no mato, na noite desta transada.

 

E Sara a espantar moscas, muito sorna, o estrupício a lhe mamar. Ela quieta, mas todos sabendo que ela sabia, e tinha feito porque queria.

 

 

Quero acusar Tuíca, de matar sem dó nem pena, seu filho único, tiquinho, pobre, fraco, coitadinho, que todos chamam Nezinho. Naquela manhã de julho, muito frio, muito gelo, que ninguém vai para amar, escolheu pois este dia, que o filho nasceu fraquinho, com o pulmão já furadinho a olhar o pai com amor, a querer ser forte e grande para um dia enfim pescar. Pois Tuíca home de Neca, por vizinho Sezefredo, sempre achou que seu Netinho, era filho de outro ninho.

Quero deixar bem claro que isso é crime formal, pois de frio e sem comida hoje o anjinho Manoel, por todos chamado Netinho, não morreu foi de bronquite, foi o pai, que é o culpado, de levá-lo no saveiro, sem roupa sem agasalho pra fazer de mal pensado.

 

Trago aqui por testemunha o céu, o mar, o risquinho, da asinha da morena gaivota tão sozinha, que foi que viu, e veio e que me contou. Com todos os efes e erres, desta malinha ação.

A primeira pedra pegou Belinho na fronte. Mas não o derrubou. Nem ele demonstrou qualquer ar de surpresa. E contam - uns dos naquele dia presentes, e sem muitos detalhes, que todos que estiveram no Tablado na tarde fatídica não gostavam de falar no assunto, preferiam sepultá-lo no silêncio comum - que Belinho caiu sorrindo. À pedra seguiram-se as terceiras, uma quarta, em saraivada. E dizem que já sabia, antes do dito ocorrer, não fosse ele Belinho, ledor da natureza, dito por ele tradutor de poesia.

O sangue que escorria dos seus olhos, cabeça, pescoço, vinha pela borda do Tablado, debruçava-se na quina e ficava ali, pingando, pingando. E vieram todos a pisá-lo, a chutar a si e a ele, à carcaça que sorria estrebuchante e maldita.

A última imagem do dia mostrava o sol morrendo, vermelho, a bola amarelada ao fundo do Tablado de Misericórdia. Próximo ao pau de suporte, ao corpo desconjuntado de Belinho, o rabinho balangante de Sara aflorava. Sua cabeça baixou e deu uma longa lambida, o beijo final em Belinho. Belinho: o Tradutor de Poesia.

Adiante a multidão se afastava, compacta, convicta, enchente agônica da justiça justiçada.

Botafogo - 13.02.85

(Flor de sangue, 1990.)