Travessia

Negros, goianos e nordestinos apresentam em comum intrigante característica: famílias numerosas. Acredita-se que isso se deva à necessidade de braços pra domar a terra e a uma forma de driblar as altas taxas de mortalidade infantil a que estão sujeitos. Segundo Bergson, há, subjacente ao ... mas por que estou me estendendo sobre este assunto? O que me proponho a relatar nada tem a ver com tais questões. Ou tem? Bem, que o julgue a leitora­ou leitor.

Cuidarei aqui do como e quando uma criança passa do devaneio irrefletido à percepção crítica das condições existenciais do seu grupo social. Do momento em que o viver situações se abre para o compreender.

Cansada de pagar aluguel pro turco da venda, minha mãe, um dia, comprou um lote no extremo leste de Belo Horizonte e botou os onze filhos pra construir uma casinha de dois cômodos e banheiro do lado de fora. Os únicos vizinhos em situação pior que a nossa eram dona Gercina, marido e escadinha de nove filhos à beira da morte por inanição num barraco caindo aos pedaços, separado da gente por tênue cerca de arame farpado.

Família estranha aquela. Dona Gercina - pernam­bucana miúda - era casada com Sô Manoel, cor amarelada, gordura suspeita e persistente mudez, vindo de Unaí, Minas, já perto dos Goias. Só geravam filhas e, diz que, tentando um varão, só foram desistir na nona. Passavam estas o dia inteiro assentadas num banco comprido de tábua, saias abertas nos joelhos, catando feijão, penteando cabelo e ajudando a mãe a lavar roupa: no fundo, nenhuma atividade que agregasse valor ou consumisse alta energia. As três mais velhas, Parecida, Madalena e 'Xiliadora, até que de vez cm quando saltavam a cerca pra vir brincar comigo e minhas irmãs. Mas nunca passavam de uma brincadeira de roda ou passar anel. Futebol (minhas irmãs eram craques), pegador, maré, pular corda (lembram? Sal, pimenta, querosene, bota fogo! Shlept! Shlept!), tudo junto, era muito pra elas. Havia um desânimo atávico, uma tristeza endêmica, um impaludismo crônico e familiar que lhes destruía o viver, corroía-lhes o alento.

Tinham um agregado, Alcides, sujeito meio abobado, que falava mascado, com o canto da boca. Usava chapéu velho, de feltro, com furos do lado, e umas roupas largas, também em estado crítico. Parente não devia ser porque os outros, a despeito da ampla gama de cores, do amarelo-­angelim ao marrom-canela, não chegavam ao peroba-rosa que era o Alcides. Apesar de semi-idiota - e também desa­nimado -, cortava lenha, cuidava da horta e, de vez em quando, era visto arrumando o telhado do barraco.

Minha mãe era comadre de dona Gercina. Não sei bem como, já que eu era o caçula, tinha meus nove pra dez anos quando a conheci e, depois que mudamos prali perto, ela não tinha tido mais nenhum filho. De qualquer forma, ciente de suas obrigações - compulsórias ou assumidas ­estava a menos pobre sempre ajudando a vizinha, com roupas usadas, macarrão. Arroz, feijão ... Quando Natal, Ano Novo ou algum outro evento de peso, aparecia até um bacalhauzinho ou uma galinha. Com minha mãe por coma­dre, podiam morrer de qualquer coisa, menos de fome.

Enfim, aos fatos.

A Belo Horizonte da segunda metade dos anos 50 sofreu profundas mudanças sob os efeitos da industria­lização nacional que se consolidava. Os novos agentes econômicos iam empurrando para a periferia as famílias da falida nobreza rural moradoras do centro da cidade. Por consequência, começaram a deslocar os pobres do subúrbio para bairros mais afastados, quando não para as cidades próximas.

Dessa forma, a expansão da cidade passou a não se dar mais em congruência com o planejamento original. À medida que os novos ricos construíam mansões nas encostas próximas à Serra do Curral, os lumpens e os operários com baixa qualificação que gravitavam em tomo das áreas urbanas estabeleciam-se em favelas ou em bairros de saneamento precário, ainda à distância de tiro de canhão da urbe. Enquanto isso, o pessoal sem renda nenhuma passava a morar mais longe, naquelas áreas que poucas décadas depois se tornariam outros municípios ou a chamada Região Metropolitana de Belo Horizonte. Dominadas por grandes árvores, caça rasteira, grandes mananciais e possibilidades de uma agricultura de sobrevivência, essas terras davam a seus moradores o status das grandes famílias reais européias, inclusive sem problemas de IPTU, ICMS, ISS e outros inconvenientes do Estado leviatã. Em compensação, também não tinham escolas, hospitais, renda para adquirir sal, pólvora, roupa e outros que tais, o que lhes emprestava uma existência semelhante à das tribos indígenas.

Tal se deu com dona Gercina e Sô Manoel. Re­ceberam um dinheirinho pela venda do lote com a casa velha e se mudaram prum bairro desse tipo, na zona oeste, chamado Serrano. A vida deles mudou um pouco e, como verifiquei depois, pra pior, se é que era possível.

Minha mãe continuou ajudando a comadre. Numa periodicidade que não sei como fora acordada, em torno de cada dois meses, partia eu pro Serrano com sacolas a tiracolo cheias de roupas, arroz, feijão, sal, gordura de coco ... Pruma criança representava um certo peso, mas não tanto, já que a gente também não tinha tanta grana assim pra comprar coisas.

Pegava um ônibus até o centro da cidade, outro até um bairro intermediário, Jardim Eldorado, descia, caminhava uns cinco quilômetros e chegava ao Lar dos Meninos Dom Orione. Essa instituição era um orfanato católico, bem organizado, para o qual minha mãe fazia pequenas contribuições em dinheiro, em selos usados recolhidos entre pessoas amigas - não me perguntem o que faziam com esses selos - e orações (também não sei como contabilizavam isso). Saía de casa aí pelas seis horas da manhã e lá pras oito e meia estava no Lar dos Meninos. Morto de fome. Não tomava café em casa (mas já era de propósito, hehehe...). Os padres deviam achar que eu era uma criança cumprindo missão de guerra, porque eu era super bem preparado. Punham mesa com pão de todos os tipos, rosquinhas, manteiga, geleia, sucos, café com leite, mel, frutas... Comia igual a um paxá. Me emprestavam um boné de soldado - mais capa de chuva e galochas, se estivesse chovendo – , e me convidavam a descansar um pouco. Mas não demorava lá. Saía batido, pegava a estrada assoalhada de folhas, entre árvores altas, frondosas, e daí a uma hora, hora e meia, chegava à casa de dona Gercina. A família toda já estava me esperando. De banho tomado, as roupas velhas limpinhas (provavelmente havia um dia certo, eles nunca estavam assim quando moravam perto da gente!), cabelos amarfanhados, carinhas ansiosas.

As meninas não conversavam comigo. Olhos baixos, ariscas. Não sei por quê. Naquela época eu não representava grande risco. Daí, abraçava todo mundo, entregava as bolsas pra dona Gercina, dava os recados que mamãe mandava dar - de boca, eles não sabiam ler ~ e saía pra passear com Alcides. À sua maneira abobada, me mostrava os trilhos de animais, dava uns tiros com sua cartucheira sem acertar nada, falava das virtudes medicinais de algumas ervas - plantadas e naturais - e eu voltava pra casa deles.

Então botavam a mesa: sonhos fritos, água de rapadura e farinha. De vez em quando apareciam castanhas-de-macaco assadas e uns cocos cozidos, que, hoje, pensando bem, suponho que eram pupunha. Eu caía em cima arrasando. Na volta, tinha que passar de novo no Lar dos Meninos. Só pra mostrar a cara. Acho que eles tinham medo que eu me perdesse, fosse sequestrado, sei lá o quê. Chegava em casa de tardinha; Sacolas vazias, dava os informes pra minha mãe e caía duro na cama. Cansado e satisfeito. Estranho, mas todo mundo ficava feliz comigo.

Um dia, num desses retornos, minha mãe resolveu fazer umas perguntas. Achava esquisito que eu não voltasse com fome, já que a única refeição garantida era o café da manhã do Lar. Comia na dona Gercina, expliquei. Disse que tinha um lanchinho lá. Me perguntou se a família toda participava do lanche. Eu disse que não, que ficavam todos em volta olhando. Ficou pensativa. Recomendou pra dali em diante só me sentar à mesa se todo mundo fosse comer. "Tudo bem", respondi.

Na outra ida, segui sua determinação. Na volta, informei: "Ninguém quis se sentar comigo." E acrescentei, descuidadamente: "Acho que a comida não dava pra todo mundo, não".

Minha mãe foi pra beirada do fogão e, de maneira disfarçada (não pra mim, que tinha ido atrás ver o que ia ter pro jantar), tentou enxugar as lágrimas no avental.

Tinha dez para onze anos. Foi a partir desse dia que apreendi o sentido daquelas peregrinações.

 

(Cadernos Negros 26: contos afro-brasileiros, p. 57.)