Pão da inocência

O menino veio até a porta dos fundos do casebre e tentou identificar o pai, ao longe, escavando a terra res­secada. Cedo, madrugada ainda.

A mãe estava na cama. Aliás, passava quase todo o dia deitada.

Ficou indeciso. Se chegava ou não perto do pai. A fome aproximou-se vagamente, caminhou para a barriga e instalou-se por todo o corpo. Permaneceu parado. Algo lhe dizia que seria novamente um dia de fome. Caminhou até a cozinha. Destampou a lata, talvez encontrasse algum pedacinho de pão. Não tinha. Só uns farelos no fundo. Revirou na palma da mão. Foi ao bule em cima do fogão. Tinha umas gotas de café. Bem ralinho, amarelado. E uma barata, morta. Retirou-a. Deve estar com gosto de café, refletiu.

Guardou-a para o irmão mais novo. Era um ritual.

Julgava que cabia-lhe alimentá-lo e o fazia com tudo que lhe aparecesse às mãos: gafanhotos, minhocas, broto de assa-peixe. Sentia-se interditado de comer estas porcarias, porém, crianças menores e animais – pensava – ­podem viver do que conseguirem botar para dentro. Revi­rou o café sobre os farelos e meteu tudo na boca, voltando ao umbral da porta. Mastigava vagarosamente. A fome parece que aumentou. b pai veio, a enxada arrastada pelo corpo magro. Viu-o ruminando. Deu-lhe um tapa na boca, "comendo o quê, seu safado?". Acabou de engolir tudo.

O menino assentou-se à soleira da cozinha. Ficou riscando o chão com um pauzinho. Sem virar-se, sabia que o pai estava entornando a cachaça no copo. De uma garrafa de cana no pé do armário. Reis, a marca.

Foi ao terreiro ver se tinha uma espiga de milho granada.

Talvez a refeição do dia fosse mingau de milho verde. Nem uma espiga boa. Resolveu comer assim mesmo. Uma lá dos fundos, escondido do pai. O estômago pedia alguma coisa sólida.

Ficou olhando os meninos na rua. Alguns passa­vam com a roupa arrumadinha. Sentiu que era domingo.

Antigamente iam à missa. Ele e o irmãozinho mais novo. Sabia como eram os santos da igreja. Mas não tinha nenhum parecido com ele. Eram todos brancos. Os anjinhos também. Mas diziam que todo mundo podia en­trar no céu. Era só morrer que, se não tivesse pecado, ia pro céu.

O menino escondeu um pedaço de sabão. E numa noite clara de lua cheia lavou a roupinha. E foi à missa. Lá o padre assustou-se, ao ver num confessionário uma crian­ça que não sabia nem a ave-maria. Recomendou-lhe ir ao catecismo. O menino perguntou-lhe se tinha muito pecado. O padre confirmou. Disse que quem nunca confessou nem comungou tem pecado. Comparecesse ao catecismo.

O menino não foi ao catecismo, nem mais à igreja, pois apanhou a maior surra da mãe por ter sumido de casa no domingo. E quem ia esvaziar o penico cheio de urina e cuspe? E acender o fogo, mesmo com a lenha úmida, para o jantar nem sempre constante?

O menino não voltou à igreja. Mas perguntou mais um pouco para as outras crianças sobre o céu...

Chamava-se Adônis. Nunca vira um coleguinha com este nome. Também isso lhe parecia um particular destino. O irmão mais novo chama-se Zé.

Viviam segregados dos vizinhos. Ninguém ali saía de casa. Um dia perguntaram-lhe a profissão do pai. Re­petia o que ouvira: "Posentado da Central"- mesmo sem saber o que era.

As pessoas davam-se por satisfeitas.

E viviam de quê? Aquele tiquinho de milho não dava nem prum mês.

Também não sabia.

O menino sentado à porta da rua. Passou uma dona, olhar sereno, suave. Sorriu para ela. As pessoas sempre paravam quando ele sorria. Ela veio e pegou-lhe nas mãos. Parecia a Nossa Senhora. Perguntou a ela se um menino, cujo pai bebia o dia inteiro, a mãe sempre na cama recla­mando, um menino tão sozinho, se um menino tão bem mandado, se tinha pecado este menino.

A dona acariciou-lhe o rosto negro, magro, e disse que não. O menino pediu-lhe, ansioso, que confirmasse. Não tinha mesmo pecado? Certeza isto?

A dona confirmou. Com toda certeza não tinha. Ti­nha até crédito no céu. Quando morresse, alguém que ti­vera tudo na vida ia se afastar pra lhe dar um lugar.

O menino saltou por cima do pai deitado na cozi­nha, abraçado à garrafa de Reis. Pela altura do ronco sa­bia que ficaria na mesma posição pelo resto do dia.

Foi ao armarinho e pegou a lata: "Formicida Tatu"; abaixo os dois ossos cruzando uma caveira. Abriu-a, en­cheu a caneca grande de água e misturou lentamente a porção. Foi para trás da casa, receoso de ter interrompida a cerimônia libertadora.

Os vizinhos acudiram ao ver a polícia chegando. "Adônis morreu!". "O Adônis se suicidou!" Mas por que foi?

Ninguém sabia. "Mas que coisa... Uma criança...”

O pai não sabia o que dizer, a mãe explicava: não podia nem sair da cama, quanto mais saber o que o filho andava fazendo.

O mais novo aproximou-se do caixãozinho. O ros­to contorcido do irmão não lhe sugeria dor.

Estava era com fome. Quem à sua volta poderia preencher o buraco que se avolumava, vindo pelas per­nas, passando pela barriga e chegando à cabeça?

(Cadernos Negros: os melhores contos, p. 73.)