Discurso do Inquisidor

- Haja açoite

haja grilhão

tudo com moderação

e acaba o negro fujão

e a revolução

e fique alerta

a prisão

e a coação

e se arranque o coração

do corpo

vivo

do cativo

lição

e assim se faça

para equilíbrio

da raça

e se esqueça

a talho de lombo

e sal

a aventura louca

do Quilombo

magote

de moleques

insolentes

dementes

e descrentes

rudes pecadores

crias do diabo

aja-se com cuidado

na caça dessas feras

arrebanhá-las vivas

para exemplo

e para expor

na praça

em escarmento

o corpo emasculado

aja-se com prudência

que a subserviência

é mais que obrigação

é exigência

da negra condição

o negro não é gente

e vende-se por metro

e peça e tonelada

e não tem alma:

a consciência calma

é mérito de nobre

a condição nos cobre

até a salvação

final

no dia do juízo

e as negras mais vistosas

e virgens sinuosas

servia-as de repasto

e cura para sífilis

e outras doenças mais

trazê-Ias para o leito

e aprimorar a raça

que os mulatos claros

asseguram aumento da fazenda

vaginas de crioulas

cerradas, escovadas

um bom banho de cheiro

e até que gemem pouco

de leve intimidadas

mas vale o sacrifício:

conhecem do ofício

e potras açuladas

ao toque original

derramam-se dengosas

éguas no curral

e a temperatura

eleva até a altura

dos trinta e sete graus

e a prática empolgante

a história nos garante

nossa glória há de ser

pois que será mulata

a musa desta terra

que alguns querem morena

e a raça cor de prata

se miscigenará

sem se abastardar

ou conspurcar

que este nosso ofício

é redençao de almas

e nossa penitência

assim em conclusão

sempre o açoite e o grilhão

tudo com moderação

ajeita a situação

e acaba a revolução apagada da História:

Palmares, o Quilombo

delírio, ilusão,

onde se encontram registros

da malsinada nação?

se os livros nada revelam

se não restam manuscritos

tudo se torna invenção

de gente mal informada

que nada tem de cristão

e quer denegrir a raça

e impor discriminação

onde existe a igualdade

o amor, a fraternidade

onde todos são irmãos

sem distinção

e da mistura das raças

tristes

que nos legou Portugal

é preciso construir

um grande povo cordial.

 

Senhores deste engenho

prossigamos

na dura liça:

a História

um dia

nos fará

justiça.

(Dionísio Esfacelado, 1984, p. 73-75).