Meu Pelé, o de todos nós

 

Quem no Brasil, independente de procedência étnica, destino geográfico ou sexo, um dia na vida, não se referiu a Pelé como um gênio?

Outro dia, meu corintianíssimo filho, Abimbola, 12 anos, me perguntou:

 

"Quem é o Pelé da literatura brasileira? Cruz e Sousa ou Machado de Assis?!"

 

Pensei numa tabelinha entre Pelé e Garrincha e numa hipotética troca de passes mágicos entre Leônidas e Friedenreich, frutos negros do canibalismo amoroso luso-germânico. Bati paô (palmas) à reflexão de Gláuber Rocha: é impossível separar as cabeças de Corisco e Lampião.

 

"Mas Pelé é incomparável, Abimbola!", retruco.

 

Neste dia 19, da Bandeira, faz 10.950 dias ou 30 anos, que Pelé marcou contra o Vasco da Gama, o seu milésimo gol. O gênio continuara aquela noite, no Maracanã, um capítulo de sua extraordinária obra, que seria coroada no México, em 1970. Ali, dos pés de Pelé saiu mais um dos momentos de maior alegria do povo brasileiro.

 

A dedicatória de Pelé quando fez o histórico gol foi às criancinhas abandonadas, que deveria ser interpretada como uma alusão à sua infância de menino pobre, filho de Dondinho, um jogador fracassado. Mas foi entendida como demagogia. Assim como teria sido alienada sua afirmação que o povo brasileiro não sabia votar. Driblando a esterilidade da esquerda e o apelo à cumplicidade da direita, a visão Pelé foi profética: hoje, mais do que em 1969, a criança na rua é protagonista da tragédia social brasileira.

 

Garoto-propaganda do regime militar? Pelé, à corta-luz, dribla a leviana alucinação comunista de João Saldanha e as firulas do futebol-negócio de João Havelange. Joões, como o sábio, chapliniano e repentista Garrincha chamava seus infelizes marcadores. Tristes sombras diante do brilho do maior poeta de futebol de todos os tempos.

 

Negro de alma branca! É assim que se diz de quem, neste país, ultrapassa a linha-de-fundo da miséria. Porque a idéia de mobilidade social dos pobres está limitada ao esporte, à música. Pelé, filho iluminado de Ogum, mais que genial senhor da bola, tornou incômodo seu trajeto luminoso da infância pobre e Bauru aos salões da Casa Branca. O Itamarati, até 1958, com seus rios brancos, ruis, santiagos e ricuperos não conseguiu um milésimo da luz que Pelé teceu — para o mundo — a cara "transnegressora" do país da folha seca.

 

Ogunhê, macunaímico, Pelé encarara os zagas da vida: as travas das opções políticas, as tesouras voadoras fratricidas que flutuam sob sua glória e fortuna. Cobram-lhe paternidade responsável à dor da mãe negra da sua filha negra. Pelé não conseguira matar o coração no peito e evitar o gol-contra! Pedem-lhe postura política idêntica a Mohammed Ali. Negam-lhe, porém, as contradições da condição humana na sua particular negreza de ser.

 

Prevista nos rastros de Afonsinho e Feijão I na República Socialista do Olaria e de Sócrates e Wladimir na "democracia corintiana", a Lei Pelé é abolicionista por sua obra e graça.

 

Trinta anos depois do grito de Pelé, a meia-lua da miséria se ampliou. Há cabeça de criança faminta na marca do pênalti. O gol nº 1000 foi o último ato político à criança abandonada do Brasil.

 

Pelé, eu te amo!

 

(In: Germina: Revista de Literatura e Arte. Disponível em: <http://www.germinaliteratura.com.br/literaturara_nov2006.htm>. Acesso em: 12 de junho de 2007).