A la Cruz e Sousa
 
o formas alvas, brancas, Formas claras
de luares, de neves, de neblinas! ...
ó formas vagas, fluidas, cristalinas ...
Incensos dos turíbulos das aras...
[...]
Infinitos espíritos dispersos, inefáveis, edénicos, aéreos,
    fecundai o Mistério destes versos
com a chama ideal de rodos os mistérios.
 
                       (Antífona, de Cruz e Sousa.)
 
O! Formas negras, cafusas
terras devolutas
do meu ser
Formas fumegantes
Formas larvares de atitudes
embriões da minha alma
do Tudo e do Nada
e que se mexem à oitiva
de mim:
Formas dilaceradas
por séculos e séculos de estupros
e gritos e vozes aprisionadas
em caravelas de silêncio e dor!
 
O! Formas negras alvoroçadas pelos tambores sorrateiros uníssonos falares à
surdina
coisas de senzalas e de eitos e de minas
vertidas em sangue
Ó Formas translúcidas de sofrimento!
Crepuscular cântico de alforria feito de medo e ladinez
de perguntas raivosas
ante esse eterno 14 de maio; nosso dia "D" seguinte:
 
Um sol emparedado
de silêncio e pesadelo.
 
Ó Formas iradas de mim!
 
Formas animicamente
enredadas nas batas cristãs
alma negra crucificada
na mais-valia malsã
Formas científicas do chicote
livresco a dilacerarem nossas mentes
por séculos e séculos, chega!
palavras de escambo
de mal querer
e de escárnio sobre
o nosso falar escravizado
 
Ó Formas brancas
fiandeiras de nosso sangue convertido
em suor sexo e salmouras e açúcares e cafés
amarguras mil impregnando
de venenos acadêmicos
nossos caminhos de liberdade
 
Ó Formas Mulatas do Ser
Crespas atitudes sonhadas
e não ditas na vertigem
daqueles dias e séculos obscuros
 
Formas negríndias mamelucas
acabrunhadas de negruras
infortúnios lançados ao nascer
a língua pesando toda revolta
silenciada pelo ferro em brasa.
Ó cântico enviesado de
choros e de amargor e do
silencioso compadrio cristão
a solfejar a mansidão em
nossas cabeças ... Ó Formas!
 
Ó Formas Pardas
avaras de pretidão
formas marrons
de burro quando foge
entremeadas falas
em sussurros de amor
e urros de lanhos e sal
a mosquearem
nossas costas vivas de sangue
 
Ó Formas alvas
Fôrmas claras seculares
ignaras falas
saídas por detrás
do atlântico enredo
de outros suspiros
épicos de saudades
ondeados de tacapes,
ágape anímico
 
embebido do sangue pagão
turíbulos ensandecidos
de teorias racistas
afunilando nosso ser
em recomposição.
 
Ó Formas docentes!
Formas nuas
cruas de humanidade
incrustadas nos livros de história
onde nosso povo
é calado sob a verdade
da mentira pregada nos livros brancos
continuamente reciclados em seus
signos de dominação ...
 
Ó Formas!
 
Ó Formas em desalinho
caminhos de pretos
altivos enredados
nas teias do ser ou ser
um Eu que se faz a cada
dia respirando as contradições
semânticas embutidas
em nossa pele-madrugada-alvorecer
 
Formas liriais
matinais suspiros
enrustidos num samba
velho e dolente
ninando gente grande desamparada.
 
Formas de fel e de açúcar
 
Spleen doloroso cruzis soulsiano,
via-sacra pagã sacramentada
em correntes no rio subterrâneo
de Mim.
 
Ó Formas Alvas, Formas Claras. Formóis!
Íris fotográficas incandescentes
sobre o lamento e o desejo olhos curvados sobre a justiça
cega aos meus pés
enrodilhados em aço
e à minha alma-ser
em purgatório camítico
vagando por entre minas eitos guetos
e galés midiáticas
 
Ó Formas vestais
a me comprimirem
encarvoado em fogo
nos turíbulos do poder
me fazendo som
e futebol tribal
 
Mente indefesa aos teus ranças
de exclusão perpetuados
nessa difusa imagem
na qual não me reconheço homem
mesmo que pagão
mesmo que órfão das
benesses construídas
por essas mãos de calos
e costas envergadas
mas vivas de perguntas
a fustigar em tuas certezas apolíneas
 
Ó Formas onívoras da nossa identidade!
 
Devoro-vos!
em signos e signos e mais signos
advindos da sua própria
louridade de sereia.
Rego outras palavras
com as cores tiradas
desse pote de ouro
guardado em todos os Ori/ fícios
do meu Eu iluminado
de negrumes
e instauro um novo olhar
pejado de pretumes
em todas suas essências
 
Ó Formas
antropofágicas
Ó Formas fálicas
do meu Ser!
(Memória da noite revisitada & outros poemas, p. 73.)