A partida

 

Para minha avó Luzia, in memoriam

 

Para toda aquela família, a vida no campo se distanciava do futuro. Crescia neles a convicção de que, se continuassem com os pés fincados ali, iam se tornar obsoletos, esquecidos pelo tempo. Então, ir para a Capital, ou alguma outra metrópole, passou a ser um modo de fazer sentido nesta vida, e uma prova de sobrevivência para os mais inteligentes. Mesmo aqueles que, por bairrismo ou indolência, não esperavam outra coisa senão morrer no endereço onde nasceram, admiravam, ainda que secretamente, a quase virtude dos que anteviam no horizonte o chamado da prosperidade. Todos, enfim, estavam certos de que, a cada trem que passava pela cidade, um pouco de futuro seguia suas trilhas de fumaça e ferro. E não voltavam mais. Aliás, também os trens já ofegavam ao passar pela cidade, e iam cansando, cansando, até pararem de uma vez. Enferrujados pelo progresso. Os roletes de cana secavam na estação ferroviária, por mais que os vendedores os molhassem, e eram jogados no rio juntos com a esperança de melhores dias. Em verdade, a cada ano, algum produto tornava-se excedente nas feiras e armazéns, alguma atividade perdia a graça ou pesava como nunca, e ia desaparecendo sem deixar rastros para e geração seguinte.

Como a confirmar todos os presságios, certos parentes vinham da capital, a passeio, com o sucesso dourado a lhes cingir os dedos.

- Este aqui, quando fizer vinte anos, vai comigo para Salvador – dizia um tio a cada visita, apontando, com a mão dos anéis, o filho mais velho da irmã viúva. Os mais novos se assanhavam.

- Cê vai pra Bahia, é? Cê vai pra Bahia? – interrogavam, se referindo à capital.

- Cê vai levar a gente?

Justino, o primogênito, orgulhoso de si e confiante em seu futuro, apenas esboçava um sorriso de vanglória, sentimento que a mãe compartilhava. Mal entrado o ano em que ele completaria a idade prenunciada pelo tio, a alegre expectativa da partida contagiou o lar deles e tornou-se parte de seus hábitos. Estava nas sementes pouco promissoras revolvidas com terra, estava nos infinitos bagos comidos à sombra da jaqueira, nas idas à feira, nos entre-folêgos das brincadeiras no rio. No fundo daquela euforia, entretanto, mãe e filho dividiam um silêncio que quase era dor. Eles raramente tratavam da viagem diretamente um com o outro. “Ademais, isso de ver filho partir é como parir; perdemos tanto da gente, pro pouco que o mundo ganha... O mundo não dá valor...”, disse Luíza a uma vizinha, sem se acostumar com a ideia da partida. E como seria diferente? Aquele filho era muito para ela.

Quando se casara, o marido tinha nove filhos. Três filhas. Havia os enteados que não aceitavam autoridade de Luíza, que era tão jovem quanto alguns deles. Anos mais tarde, após a morte do marido, dois dos homens preferiram a orfandade das estradas a lidar com uma nova matriarca, um deles, expulso pelo mais velho, que protegia a madrasta em honra à memória do pai.

Desde o casamento, até o nascimento do seu primeiro filho – exato nove meses depois – Luíza viveu a sensação de não pertencer plenamente àquela família. Somente sua própria cria viria lhe dar a posse daquela casa. Mesmo assim, por muitos anos, ela teve que se acostumar com o fato de que sua casa igualmente pertencia a uma ausência - e os filhos e filhas dessa ausência. Tal como os anos que lhe faltavam, as palavras também se esquivavam, e não lhe ajudavam a lidar com as pequenas rebeldias dos seus novos parentes. E elas vinham certas como os dias.

Ao chegar, Justino dera porto seguro à sua mãe. Agora Luíza tinha por onde desenvolver a sua noção de autoridade, e com uma legitimidade inquestionável. Não só porque nascera, simplesmente, é que o filho lhe dera um chão, mas também pelo arrimo que foi se tornando ao longo de toda a vida dela, porque o marido só viveu o tempo de ouvir o quinto e último filho lhe chamar de pai uma ou duas vezes.

Ainda criança, o trabalho atou-se às mãos de Justino, subiu às suas costas. Nada diferente de outras crianças da roça, mas Luíza via no seu filho um arcanjo protetor. Ela o via e tratava como chefe da família. Seu pequeno marido. “Ora! Afinal, era o mais velho dos seus!”, pensava convicta. Contudo, agia sem que os maiores percebessem.

Por sua vez, como se também houvesse perscrutado alguma designação celestial, Justino assumiu a família e o trabalho com uma responsabilidade bem maior que os seus dez anos, quando as palavras do pai soaram incompreensíveis.

- Não é só a terra que compramos dos brancos que a gente tem que honrar e fazer crescer mais do que eles fizeram. O sobrenome que pegamos deles também...

Ao longo do tempo, aquela fala foi se desdobrando em sentidos que fortaleciam os propósitos da vida de Justino. A sua autoridade vai aos pouco sendo reconhecida por irmãos mais velhos e mais novos, e daí vem um prazer que alivia o peso do seu papel. Ele gostava de ser ouvido e de planejar o futuro da família, de cuidar da mãe como faria o marido que ela teve por tão poucos anos. Já lhe vinha o gosto de ter uma esposa de verdade, filhos e uma casa, embora nem atinasse como isso aconteceria. Sabia que logo tudo mudaria completamente e, aos vinte anos, veria o mundo começar de novo.

- Vou vim buscar a senhora e os meninos – prometeu, se referindo a todos os irmãos a partir dele.

Na manhã da partida, todos acordaram com uma disposição que parecia fazê-la pairar acima de tudo. Do bem, ou do mal. Luíza e Justino estranharam seu estado de espírito, mas resolveram, como os outros, abrir suas janelas interiores para aqueles mornos raios de luz que os convidavam a sorrir. Quase ninguém, então, entendeu logo o que se passou...

Justino voltava da feira radiante como o sol que lhe reluzia a pele. Ele vinha cercado de sonhos. Completava o cortejo as compras carregadas pelos irmãos e suas infindáveis perguntas sobre Salvador, como se não fosse a primeira vez que Justino iria à capital, como se ele e a cidade fossem velhos conhecidos. Vendo a euforia do grupo, se poderia achar que todos viajariam juntos naquele dia!

A mãe e a irmã os aguardavam na porta de casa e só elas, do lugar onde estavam, viam a espantosa transformação nas feições de Justino à medida que ele se aproximava. O seu rosto alegre tornava-se denso e grave, seu ar maduro, tenro. Demudava. Rejuvenescia! Justino perdia idade. Mãe e filha se entreolhavam ligeiramente a confirmar o inacreditável a que assistiam. E ele foi ficando mais moço, mais novo a cada passo e, na soleira da porta, desabou num choro repentino e incontido, que deixou os irmãos atônitos. Com um gesto, a irmã barrou os outros ainda na varanda e Justino foi, sozinho, se apoiar nos ombros da mãe. Os irmãos se olhavam como espectadores diante de um perfeito número de ilusionismo. Viram desaparecer ante seus olhos o homenzinho que os guiava com pulso e autoridade no trabalho, ou nos festejos, o irmão-pai que os repreendia, aconselhava a até lhes prometia um mundo novo. Perguntavam-se pelo seu herói cotidiano.

Luíza levou seu filho para o quarto, contendo as próprias lágrimas para não machucar mais a sua criança – lágrimas que não impediriam de brotar nos quatro quilômetros de caminhada até a estação. Sentada na cama, deixou que ele pranteasse a cumplicidade dos dois, o medo dos dois, a saudade que há tempos vinha lhes enrodilhando. E enquanto ela lia para o filho a oração que copiara para lhe entregar naquele dia, ele derramava no colo da mãe toda aquela infância retornada.

(Sete: diásporas íntimas, p. 25-29)

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