Conta de somar

No Mercado do Ouro, o dia começa bem cedo. Um aboio cortante ecoa na escuridão.

Ê mingau! De ta-pi-ó-ca!

A humidade e o lusco-fusco da madrugada dão dramaticidade ao pregão de Tia Constança, uma negra reforçada, de cara bolachuda e de coração também imenso. Nunca deixou um parente africano sem um caneco de mingau. E não era qualquer mingau. Era o famoso mingau de Constança. Segunda-feira era mungunzá1, terça-feira era mingau de milho, quarta-feira era arroz doce, quinta­ feira era de carimã, e sexta-feira era de tapioca. Sábado, pra variar, ela trazia beiju molhado, coberto de coquinho ralado, enrolado na folha de banana. Nesse dia, ela trazia também um café preto em um caburé2.

Em volta do panelão de Constança formava-se logo uma rodinha. Eram negros de ganho, estivadores, canoeiros do porto e alguns capoeiras valentões. Os caixeiros portugueses mandavam os moleques de recado comprar furtivamente as jarras de mingau.

Ê mingau! De ta-pi-ó-ca! Apregoava a Tia.

– Ê, lá vem o Ambrósio Bico Mole!

Instala-se um silêncio de missa de sétimo dia. O mulato Bico Mole chega cheio de bossa. Chinelo bico fino, calça de fustão da tropa de linha3, bonezinho de feltro e um escandaloso dente de ouro. Pior é que todo mundo sabe como ele ganhou aquele dente. Ele era espia de polícia, mais precisamente do inspetor de quarteirão do Pilar. Delatou um alevante4 de nagôs que se reuniam no Caminho Novo. Deu-se de amizade com uma criatura do grupo e descobriu a preparação de uma fuga para o quilombo5 da Ilha de Maré. Era um sujeito perigoso. Chegou procurando conversa, jogando verde para colher maduro.

– Alô malta, quando é que tem um amalá no quilombo?

Todo o mundo desconversou, ninguém deu ousadia. Algumas pessoas murmuraram:

– Dedo duro!

– Caguête6 de polícia!

Ele ficou tão escabriado que saiu de fininho na direção do cais. Passado o perigo, voltou a animação do bochicho. Em meio a risadas Tia Constança deu uma gaitada gostosa. Com a mão na boca, meio sorrindo, ela exclamou:

– Merda, merda pura!

– Agora vocês vão ter que me contar. Todo mundo está rindo, menos eu.

Para atender à curiosidade de Pé-de-Vento, sisudo capoeira da turma de Besouro, Tia Constança dispôs-se a contar o sucedido.

Era a história da esperteza do Velho Satu, um tio-da-costa, capitão do canto de carregadores7 nagôs; na Preguiça.

Por falar nele, ei-lo que aparece em carne e osso, na rodinha do mingau.

Era um homem forte, alto, passado dos 50, rosto comprido, marcado por três lanhos de cada lado. Mancava da perna direita, o que não comprometia o seu passo forte de carregador de ganho. Agora um homem livre, de cabeça erguida e sorridente, o Tio Satu escolhia os carretos e fazia preços para todos os patrícios de nação nagô. Seu orgulho de liberto era que nenhum deles carregava branco na cacunda8. Aguentar ovo de branco no pescoço, isso nunca mais. Eles não eram montaria.

– Êim parente9, esse povo quer saber a história do pote de merda!

– Ói parente, quem conta um conto aumenta um ponto!

– Não vou tirar nem por, parente, vai ser tudo tim-tim por rim-tim.

 

E começou o relato.

***

Tio Satu vinha juntando uns cobrinhos10 há mais de três anos para comprar a sua alforria. Era o ganhador que chegava mais cedo no cais da Preguiça. Carregava de tudo com firmeza e com cuidado. Pela qualidade de seu serviço, ganhava muitas gratificações. Certa vez chegou a ganhar cem mil réis por ter carregado toda a louça e cristais para o palacete de uma baronesa, em Santa Clara do Desterro. Carregou até uma pianola para a casa de um judeu que morava perto do convento de Santa Teresa. Todo este dinheirinho era escondido em um pote de barro, enterrado no quintal da casa do senhor, na Rua Direita da Saúde.

O que mais lhe doía no cativeiro era entregar o resultado do seu trabalho ao Major Bandeira, seu senhor. Este era um sujeito miserável. Pertencia a uma raça de traficantes da Costa d' África, gente impiedosa e muito ignorante. O fruto do seu trabalho sustentava a vagabundagem de Zezito, filho único do tal Bandeira, um eterno estudante de Medicina. Era do tipo flautista. Jamais passou do segundo ano. Na Faculdade nunca punha o pé. Sua vida era a flauta, o violão, a cachaça e as francesas da Rua de Baixo. Começou a dar sinais de tísica, o que fez o Bandeira aumentar a pressão sobre Satu. Ele queria sempre mais e mais. Satu, muito esperto, justificava sempre o jornal que entregava ao senhor pelo seu baixo rendimento, devido ao seu defeito físico. Por ser da Costa d' África, aproveitava para falar errado, fingindo ser um boçal11. Assim, nunca entendia direito uma ordem, e quando prestava conta do serviço, falava tão embolado que atrapalhava os ouvidos do senhor.

– Ai sinhô! Nêgo de pouca valia. Nêgo puxa de perna. Tomba prum lado, tomba pro outro, trupica, e lá vai, os carrego cai, quebra as coisa, os povo castiga nêgo. Serviço bom vai pros outro!

– Tá bom nêgo, não tenho tempo para aturar a sua lenga-lenga. Fique certo que estou de olho em você, preto descarado! Se estiver me roubando, vai levar uma surra de cipó-caboclo de tirar o couro!

Seu Bandeira seguia os rastros do Tio Satu, à cata de dinheiro escondido. Era como um gato faminto atrás de um rato.

Quando o pote de Satu, cada dia mais cheio, chegou ao montante de um conto de réis, justamente o valor médio de uma alforria12 de escravo no ganho, arte do cão! o Bandeira achou o pote enterrado no fundo do quintal. Tranquilamente tirou todo o dinheiro. Afinal, dinheiro de escravo era dinheiro do senhor. Enterrou-o de novo, e passou a ostentar um sorriso sacana de vitória.

Satu não sabia o que fazer. Com a cabeça pegando fogo, procurou a Constança e pediu conselho.

– E agora? Não posso pedir satisfação nem queixar na polícia. Que droga, Satu é cativo!

– Parente, dê um ebó13 pra Xangô14, tome um banho de folha15 e esfrie a cabeça.

Constança mesmo fez todos os aviamentos. Preparou um banho de dandá, arruda, vence-tudo, tira­teima, espada de Ogum e água do alevante.

Recuperada a tranquilidade, Satu voltou pra casa com a cara mais abestalhada que conseguiu armar. Procurou o major e foi logo dizendo:

– Sinhô, nêgo muito burro!

– É claro nêgo. Todo nêgo é burro!

– Sinhô, nêgo não saber conta. Sinhô, um conto com mais um conto, bota junto ou bota separado?

- Que história é essa de conto, nêgo? Onde você viu um conto de réis, nêgo?

- Sinhô, nêgo não viu conto, nêgo pergunta: um conto com mais um conto, bota junto ou bota separado? Difíci, difíci pra cabeça de nêgo.

– É claro que é difícil. Vocês da Costa d' África são todos umas bestas quadradas, muito embrutecidos, por isso são escravos!

E sorriu mais uma vez vitorioso. Rapidamente o major pensou com os seus botões: – o Satu devia ter mais um conto de réis escondido em outro lugar e, se não encontrasse o dinheiro que ele havia roubado, não colocaria a outra quantia no mesmo lugar. Ele, sim, era um homem inteligente, um senhor de escravos! Ia ganhar dois contos na maior moleza.

– Nêgo, você é ignorante mesmo. Um conto com mais um conto, bota junto pra virar dois contos, entendeu seu energúmeno!

– Sim sinhô, Deus te ajude. O sinhô tá ensinando nêgo a fazer conta.

Major Bandeira não teve dúvidas. Pegou o conto de réis, devolveu ao pote e enterrou-o no mesmo lugar. No dia seguinte voltaria para lucrar 100%.

Durante a noite, Satu fez o que tinha que fazer. Desenterrou o pote, recuperou o seu conto de réis. Para dar uma resposta ao senhor inteligente, espremeu-se todo e obrou dentro do pote, tampou e enterrou de novo. Fez mais. Chamou toda a turma do Mercado do Ouro para estar atrás do muro dos fundos do quintal da Saúde.

De manhã, bem cedo, como de costume, Bandeira bateu um pratão de feijão16 com fato, bebeu uma caneca de café preto. Da cozinha mesmo tomou o caminho do quintal para recuperar o que acreditava ser seu. Abaixou-se com dificuldade, cavou, cavou, até descobrir a tampa do pote. Destampou-o. Estava tão ávido que nem reparou no conteúdo. Meteu a mão até o fundo e com força. A merda subiu pelo seu braço até quase o ombro!

– Uh, uh!, fiau, fiau! Quá, quá, um conto com mais um conto, quanto é Bandeira?!

A vaia foi monumental. De trás do muro a galera do Mercado do Ouro vibrou. Que inteligência daquele arrogante senhor! E todos se embrenharam pela roça do Hospital Santa Isabel, seguiram pelo Rio das Tripas, até as Sete Portas, onde festejaram com uma talagada o "conto do Satu".

***

A rodinha do mingau exultou. Todos riram muito. Pezão, um capoeira gaiato, chegou a mijar nas calças. Todos tomaram mais uma caneca por conta de Constança. Pé-de-Vento, no entanto, nascido no dia de São Tomé, perguntou incrédulo:

– E ficou nisso só, Bandeira ficou de braços arriados?

– Claro que não, respondeu Constança.

Lá mesmo, nas Sete Portas, Satu passou o dinheiro para a guarda de Constança. Escondeu-se em um dos caçuás17 que esvaziara quiabos na feira, e partiu para o quilombo da Engomadeira. Lá, um filho de Xangô era sempre bem-vindo.

O Sinhô Bandeira ficou virado no Cão. Ainda melado, brandia o cipó-caboclo, em busca do seu escravo para surrá-lo. Chamou a polícia, chamou os vizinhos, ofereceu até 50 mil réis para quem trouxesse o Satu. Não se sabe bem se pelo feijão­com-fato, se pela raiva, ou se por castigo dos orixás, Bandeira sentiu-se mal, ficou todo torto e dormente do lado direito. O povo da rua disse que foi o vento que passou! 18O imprestável do Zezito nem se mexeu. Ficou chorando na cabeceira do pai. Constança não cruzou os braços. Procurou Seu Pânfilo, um homem letrado, da turma dos abolicionistas. Ele seria o advogado de Satu. De boa conversa, ele convenceu o Zezito a aceitar um conto de réis pela alforria de Satu. Afinal, este era um valor muito bom por um escravo velho e capenga. Pai e filho partiram para Feira de Santana, uma vila de bons ares, para o tratamento do derrame de um, e da tísica. E assim Satu pode voltar para seu canto de Preguiça, liberto e altivo.

– Sujeito porreta! – conclui Pé-de-Vento.

 

1Mungunzá – mingau de milho branco, com leite de coco, também chamado de canjica no sul do país.

2Caburé – vasilha de barro para café.

3Tropa de linha – exército. Permanência no vocabulário da organização militar colonial, em que a primeira linha de combate era a tropa regular: a segunda linha eram as tropas de milicianos civis comandados por civis: e a terceira linha, as ordenanças, cumprindo tarefas de polícia.

4Alevante – expressão popular de levante, rebelião, revolta. Os socialmente inferiores e os governos deveriam sempre abaixar a cabeça perante os poderosos. Quando alguém era muito subserviente era chamado de corcunda, pois nunca mais conseguia erguer a cabeça. Quando alguém encarava o superior de frente, era um ato de rebeldia.

5Quilombos – aldeias resistentes de negros que fugiam dos locais de cativeiro.

6Caguete – delator.

7Canto de carregadores – lugares na cidade em que se reuniam os carregadores de ganho. Cada etnia africana tinha seu canto. Cada canto tinha um capitão, que negociava preços e serviços com os fregueses.

8Cacunda – cangote, corcunda. Tipo de transporte urbano individual que usava o homem como montaria. Sobreviveu a expressão popular de alteneria: - Ninguém monta em meu cangote ou na minha cacunda!

9Parente – tratamento usual que os africanos dispensavam entre si, substituindo o pronome da 1ª e 3ª pessoa do singular. Por exemplo: - Como vai parente?, - Cuidado parente!, - Parente vai lhe ajudar.

10Cobrinhos – moedas de cobre, dinheiro miúdo.

11Boçal – africano que não falava português, em oposição a ladino escravo que falava português.

12Alforria – carta de alforria. Documento atestando a libertação de um escravo, obtido mediante compra ou por doação..

13Ebó – oferenda a um Orixá, na tradição ioruba.

14Xangô – orixá da justiça na tradição ioruba. Simboliza a justiça. Historicamente, Xangô foi o quarto rei e organizador do Império de Oió, na Nigéria.

15Banho de folha – banho de purificação com folhas e ervas cozidas, que integra os rituais do Candomblé.

16Bater um prato – comer muito e com avidez.

17Caçuá – grandes cestos de cipó, colocados um de cada lado de um animal, jegue ou burro.

18Passar o vento – derrame cerebral.

(Histórias de Negro, p. 18-31)

 

Samba em Berlim 

Seu Irineu era um mestre de obra de mão cheia. Bem verdade que gastava um pouco mais de cimento do que o necessário. No entanto, garantia que laje feita por ele nunca selou, nem parede sua nunca trincou. Ademais, estava acostumado a construir trincheiras e fortificações militares. Ele era um ex-combatente da Segunda Guerra Mundial, reformado como Terceiro Sargento do Exército. Na hora do rancho, quando ele me explicava os detalhes técnicos da obra e, principalmente, justificava os custos de material e de pessoal, também sobrava um tempo para me contar suas aventuras de pracinha da FEB, na Itália.

Aos dezoito anos, Irineu já era um pedreiro completo em sua arte, um verdadeiro oficial de colher, pedreiro de massa fina, apto para qualquer serviço de reboco ou de estuque. Resolveu deixar sua Tobias Barreto, em Sergipe, para tentar a vida na Bahia. Foi acolhido por sua tia, Dona Mocinha. Era uma criatura muito pacata e prestativa, que morava em uma casinha de porta e janela, situada na Travessa Zumbi dos Palmares, uma ruela que liga a Rua do Jenipapeiro à Rua Direita da Saúde, única em toda a cidade do Salvador que lembra o líder do Quilombo.

Irineu chegou à Bahia em tempo de guerra. Os ânimos andavam exaltados. Os integralistas do bairro ainda não se haviam recuperado do golpe de Getúlio, que alimentou-lhes todas as esperanças e depois decretou o fechamento da Ação Integralista, em 1937. Em repique, apoiavam ostensivamente a Alemanha nazista, o que lhes valeu a denominação de "quinta-colunas", ou seja, a coluna inimiga que apunhalava o Brasil pelas costas.

De fato, tudo faziam para desmoralizar o esforço de guerra brasileiro. Certa feita, em dia de parada militar, espalharam a notícia do ataque de um submarino alemão em Itapuã, o que provocou uma desordenada correria. Era a evidência da fragilidade de nossas defesas e da incapacidade das Forças Armadas brasileiras em caso de um ataque real.

Em outra ocasião, quando foi decretado o blecaute em Salvador, mandaram para a Alemanha a informação de que a terceira janela do 2º andar da Secretaria de Agricultura, que dava para o mar, permanecia com a luz acesa durante toda a noite, graças à incompetência de um funcionário. Isso valeu um comunicado debochado da rádio alemã, em emissão para o Brasil, advertindo as autoridades militares baianas sobre este furo na defesa e ameaçando bombardear a Secretaria de Agricultura. Isto era a guerra psicológica adversa. Para eles, o Brasil em guerra era uma piada!

A desmoralização do soldado brasileiro fazia parte do programa político dos quinta-colunas. A composição racial do nosso povo era o pretexto. Para eles, o soldado brasileiro era geneticamente incapacitado para a guerra moderna.

– Só faltava essa invenção do Getúlio! Onde que esses soldados negros e mestiços seriam capazes de enfrentar os perfeitos soldados do exército alemão, os mais belos exemplares da raça pura, ariana, superior e disciplinada?

Para humilhar a tropa, diziam que Getúlio havia feito acordo com Roosvelt para fornecer cozinheiros e limpadores de latrina para o exército americano na Europa.

Todos os dias, de manhã cedo, Irineu passava pela venda do Cecílio, na esquina da Travessa Zumbi dos Palmares com a Direita da Saúde, para comprar a sua boia do meio-dia. Era comida de pedreiro, ou melhor, comida de mata-engenheiro! 1. De preparo rápido, para ser feita e comida em uma hora de almoço. Tinha que ser também suficientemente indigesta, para ficar rolando no estômago até o fim do serviço. Era a carne de sertão, ponta de agulha, com três dedos daquela gordura amarela. Ao receber a quentura, liberava o óleo que temperava a carne e que animava o fogo de papel de jornal. Também era frequente o bacalhau de barrica, conservado na salmoura de azeite doce português. Nem carecia de muito fogo. O jogo era rápido. Bastava chamuscar o bacalhau, jogar uma medida de azeite de dendê cru por cima e dar uns sopapos2 de farinha de mandioca para fazer o bolo. Para ajudar a descer, um bom gole de cachaça de Santo Amaro... Depois, era só esvaziar todas as moringas de água. Comia-se tudo com todo o sal e com toda a gordura.

– Benza Deus, era preciso ser muito macho pra enfrentar esse rojão!

Irineu não se metia em política. Ele veio de Sergipe para trabalhar, juntar uns trocados e mandá-los para a Veia. Um dia ainda haveria de comprar uma terrinha em Tobias Barreto. Pouco se lhe dava Getúlio, a guerra, os comunistas e os integralistas se engalfinhando... O que mais o irritava era ter que ouvir todos os dias, de manhã cedo, na hora de comprar os sagrados ingredientes de seu rancho, a cantilena dos galinhas-verdes.

Primeiro era o ódio a Getúlio, que tinha todos os defeitos. Depois, era aquele endeusamento da raça-pura. Os alemães eram os melhores do mundo em tudo: mais fortes, mais inteligentes, melhores soldados. Geraldo, chofer da Samdu3 fazia discursos afetados contra os aliados.

– Os franceses já foram bons soldados – até porque ganharam a Primeira Guerra – mas hoje estavam degenerados pela sífilis e pelo comunismo. Que derrota humilhante aquela de 40!

– Os ingleses eram a pior raça que existia. Interesseiros, hipócritas, capitalistas, como os judeus, só pensavam em dinheiro.

– Americano, não era pra se levar a sério. O que eles sabem fazer é cinema, mas guerra não se ganha em Roliúde.- Brasileiro, nem pensar! Está cientificamente provado que a alta incidência de sangue negro na população brasileira produz tipos malformados, tendentes ao crime e às taras sexuais. Assim lhe falaram os lentes da Faculdade de Medicina, que também eram os dirigentes da Assistência Pública. Isso era a mais pura Medicina Legal e Criminologia. Os mestiços brasileiros são bons para capanga e jagunço, para soldado, jamais!

– Aquilo me revoltava - dizia Irineu - mas eu não queria me meter em briga de venda.

***

Um dia, desabou sobre sua cabeça a notícia da morte do primo Crisóstomo. Era um cabra trabalhador que nem ele. Juntou uns cobrinhos e pegou um vapor para Recife. Estava determinado a mudar de vida. Queria ajudar a mãe e as duas irmãs que ficaram em Sergipe. No meio do caminho, foi para o fundo do mar, junto com quase todos os passageiros do vapor. Soube, também, que isso foi obra de um submarino alemão.

O torpedeamento do Araraquara provocou uma comoção nacional. Os relatos de sobreviventes dão conta do massacre dos sobreviventes do naufrágio. O submarino alemão veio à tona, ligou os holofotes e metralhou os botes salva-vidas. Até hoje, quando fala do assunto, os velhos olhos embaçados de Seu Irineu ficam mareados.

– O meu primo não teve uma chance.

Isso foi a Conta. A discussão política sobre a pureza das raças não lhe dizia respeito, mas matar primo seu era uma questão pessoal. O juízo de Irineu pegou fogo.

– Filhos de uma puta! Lá no meu interior isso não fica assim só! Isso tem forra!

Irineu jurou vingança. O sangue de Crisóstomo tinha que ser justiçado com sangue de alemão, raça-pura, ariano, o escambau que fosse!

No mesmo dia, largou a obra e foi ao Quartel General, no largo da Mouraria e alistou-se na FEB. Quando o assunto caiu no conhecimento dos intelectuais da venda de Cecílio, foi a maior esculhambação.

– Irineu soldado? Um moleque preto, analfabeto, troncho que nem só, carregador de balde de massa, nem pra cozinha de americano serve!

Irineu nem ouviu as provocações. Sua única ideia era vingar o primo. Comprou uma peixeira4 de cabo envernizado, batizou-a de Alemôa. Todo o dia ele amolava a faca, conversava com ela como se fosse gente. Como ele, ela devia estar preparada e convencida da vingança.

A Dona Mocinha, sua tia, arrancou os cabelos da cabeça. Rogou por todos os Santos para Irineu tirar aquela ideia do juízo. Fez até um ebó5 com Tia Muçula. Coitada, como se ainda tivesse alguma autoridade sobre o sobrinho, ameaçou mandá-lo de volta para Sergipe. Tudo debalde. Irineu agora pertencia à Nação. Quando ela mal pensou, ele já estava vestido na jéga6 do Exército, destacado para o Rio de Janeiro e embarcado para a Itália.

***

Tudo era muito estranho naquela guerra. Muita ordem unida, muito treinamento, muita ciência. Para ele, aquilo tudo era besteira. Ele estava ali para fazer acabamento no inimigo7. Tudo que ele precisava era de sua Alemôa bem afiada. O pior veio com aquele Sargento Peixinho. Ali sim, era um bicho ruim de corte, carne-de-cabeça, caxias8 que só. Confiscou a Alemôa, sob alegação de que peixeira não fazia parte do equipamento militar.

– Rei morto, rei posto. Dei o mesmo tratamento de primeira à minha baioneta. A bichinha estava como um fio de navalha. Quando soube que os americanos chamavam os raça-pura de Germany, batizei minha baioneta de Maria Germana, substituta de Alemôa.

Tiro pra lá, tiro pra cá, a guerra ia seguindo, até que um dia, lá estava ele, no meio da tropa brasileira, diante do Monte Castelo.

O relato dos acontecimentos de Monte Castelo deixa sempre Seu Irineu cheio de orgulho. Ele ainda está lá. Ele vive esse passado. São feitos heroicos que ninguém pode lhe tirar.

A tropa brasileira estava toda no pé do morro, em ponto de bala. Lá me cima, os raça-pura entrincheirados, pareciam mangar9 dos brasileiros. Irineu e os outros não entendiam porque tanta demora. O sargento falou que estavam esperando os aviões americanos, que não chegavam. Isso irritava muito. Afinal, será que os quintas-colunas10 da venda de Cecílio tinham razão? Será que os brasileiros só prestavam para coadjuvantes de filme americanos? Ah, isso não!

Logo em seguida, o sargento passou a contraordem:

– O General Zenóbio se retou. Com ou sem apoio aéreo ela vai tomar aquele morro na marra! 11

– Ele vai à frente, acenando um lenço branco. E enquanto a gente enxergar o lenço, a gente vai atrás.

Dito e feito. Quando Irineu viu aquele lenço branco na linha de frente, sentiu que a hora era essa. Agora eles iam ver o quanto valia o soldado brasileiro.

Que nem um sagui12, Irineu subiu aquele morro, caindo e levantando, rolando de banda, saltando de um lado pro outro, que nem contavam do Volta Seca, o único sobrevivente do bando de Lampião, que cumpria pena na Bahia.

E tome-lhe tiro!

Sem ninguém lhe mandar, deitou o mosquetão de banda e desembainhou a Maria Germana. Tirou o pino e mandou uma galinha pulando13 pra cima da trincheira dos gringos. A granada caiu muito acima do ninho das metralhadoras. Foi o tanto do inimigo se jogar no chão. Que nem um gato, num pulo só, Irineu estava dentro da trincheira do inimigo. Um nervosinho se levantou com um parabellum14 na mão, e recebeu nos peitos uma lapada da Maria Germana. Foi um talho só, do pé do pescoço à espinhela. Um outro engraçadinho se levantou com o fuzil engatilhado e foi derrubado pelo fogo da infantaria brasileira. Os outros três da guarnição, quando viram aquele negão, com a Maria Germana querendo mais, levantaram com as mãos pra cima, gritando:

– Ai, ai, ai!

Em um segundo, tudo passou pela sua cabeça. No chão, dois estrebuchavam. Os três em pé, tremiam que nem vara verde. Um deles se mijou todo.

A confusão era grande, estampidos, explosão de morteiro, de granada, berros, gemidos, aquilo era terra em que filho chora e mãe não ouve! Nessa hora, Irineu ouviu uma voz de mulher no pé do seu ouvido:

– Vamos lá, Irineu, falta mais um. Vamos fazer uma cesariana naquele galeguinho dos óio azul, pra ver se nasce tripa!

Era o diacho da Maria Germana. Bebeu sangue e queria mais.

– Se aquieta, coisa ruim! Não sou matador, só vim fazer justiça. Um por um tá mais que bom!

Quanto mais Irineu gritava com Maria Germana, mais os alemães se apavoravam, pensando que era com eles. Era um tal de:

– Ai, ai, ai!

Nessa hora, felizmente, o Sargento Peixinho subia com o resto da companhia.

– Prisioneiros sob controle! Vamos embora, soldado, tem mais lá em cima pra gente pegar!

Imediatamente, jogou Maria Germana fora, pegou seu mosquetão e seguiu a tropa. Que alívio! Nunca imaginava agradecer tanto a presença do sargento. Já de cabeça fria, por um instante pensou:

– Esses são os superiores, os raça-pura? São uns ordinários que nem nós, não tem diferença, morrem e afrouxam do mesmo jeito. Naquele instante, não passou por sua cabeça nenhum pensamento de vitória ou de superioridade. Ele sentiu muita pena daqueles desinfelizes.

***

A volta ao Brasil foi triunfal, passeata, romaria ao Bonfim, discurso de político. Irineu nem se abalou. Chegou em casa, tirou a farda e tomou rumo da venda de Cecílio.

Geraldo Chofer estava lá, junto aos outros quinta-colunas, com uma cara de jegue sem pai. Irineu nem deu bola. Foi direto ao balcão e como um bom sargento, em voz alta, pediu com firmeza:

– Ô Cecílio, bota aí um Samba em Berlim!

Gaguejando, o italiano retrucou:

– Seu Irineu, que negócio é este de Samba em Berlim?

O soldado deu uma fungada de brabeza e explicou, tim-tim por tim-tim:

– Não sabe não, cabra? É branquinha brasileira, CA-CHA-ÇA, não sabe?, misturada com pretinha americana, CO-CA-CO-LA, não sabe?, fazendo acabamento em Berlim! Entendeu agora?

E ali, finalmente, terminou a sua guerra.

 

 

1Comida que mata engenheiro – comida de peão.

2Sopapo de farinha – comer farinha com a mão; colocar uma poção de farinha na palma da mão e de um só golpe, batê-la na boca.

3Samdu – Serviço de Assistência Médica Domiciliar de Urgência.

4Peixeira – grande faca de ponta usada pelos peixeiros.

5Ebó – oferenda aos Orixás.

6Jéga – fardamento; gíria militar.

7Fazer acabamento em alguém – destruir; destroçar.

8Caxias – sujeito cumpridor de todos os regulamentos; enquadrado; pessoa obcessivamente cumpridora de seus deveres.

9Mangar – ridicularizar.

10Quinta-coluna – partidários da Alemanha nazista, no Brasil, durante a Segunda Guerra Mundial.

11Na marra – à força, de qualquer jeito.

12Sagui – mico, pequeno, macaco doméstico.

13Galinha pulando – lançar granada; gíria militar.

14Parabellum – pistola automática de grosso calibre.

 (Histórias de Negro, p.101-17)

 

O protesto do poeta 

Um desses dias, Catí convidou-me para ir a uma sessão mediúnica, no centro espírita que ele frequenta. Bem maior que a solidariedade do cunhado era a curiosidade de voltar a uma sessão espírita. Lá se vão exatamente 40 anos que virei as costas para o espiritismo, logo depois que um tal Edvaldo, incorporado pelo Dr. Fritz, tentou me curar da obesidade à custa de colheradas de sargaço pisado em jejum. Argh! Preferi o materialismo, para desgosto do meu pai, um kardecista convicto da cientificidade do espiritual.

As sessões mediúnicas sempre foram um mistério em minha adolescência. Meu pai dizia que nelas circulava muita carga magnética, por causa da frequência de espíritos malévolos e zombeteiros, prejudiciais aos menores de mente fraca. Para ver as maravilhosas manifestações dos espíritos, restavam-me as sessões familiares do "evangelho no lar", sempre às noites de quarta-feira, nas quais meu pai lia e predicava sobre o "Evangelho Segundo o Espiritismo", e minha mãe recebia o Caboclo Pena Branca, um irmão de luz sempre muito atento ao nosso desempenho escolar e às nossas companhias. Vez por outra, o Velho me levava às sessões do Dr. Pedro, um juiz negro aposentado que morava na Rua da Glória, bem perto do Godinho, nossa casa. Impressionava-me o desempenho do filho do dono da casa, um jovem negro e gordo como eu, cego, que incorporava o Caboclo Tibiriçá e outros guerreiros da aldeia. Falava uma língua embolada. Ficava sempre muito intrigado porque o caboclo do filho de Dr. Pedro falava fino e o caboclo de minha mãe falava grosso. Isso era por conta do mistério.

Bem verdade que o Velho fez tudo para que eu frequentasse a União Espírita Baiana, mais conhecida como a sessão de Aurelino. Aos domingos pela manhã, havia sessões de doutrinação para jovens, longas e complicadas aulas sobre a Dialética do Espírito, de Hegel, ministra das por um estudante universitário com cara de professor de matemática. Até que era interessante ouvir falar de um Deus racional, que duvidava ser mesmo divino, e para ter certeza disso precisou criar o seu oposto, nós matéria imperfeita, para, depois de tanta história, cair na real que é Deus mesmo. Mas a doutrina do domingo de manhã sofria a concorrência irresistível das pré-estreias dos cinemas Tupi e Jandaia. Imperdíveis! Graças a elas, tínhamos uma semana de vantagem nas conversas com os colegas de sala sobre as façanhas de Audie Murphy e Randolph Scott. Talvez por isso eu não me tenha formado um bom espírita.

Agora entendo que minha curiosidade resulta da falta de boas sessões mediúnicas, aquelas em que o copo anda, as cadeiras levitam e as pessoas se transportam. Estas, sim, eram experiências parapsicológicas!

***

Aceitei o convite de Catí. No carro, ele falou-me da sessão de Seu Aloísio.

– Fica no Dique do Tororó, bem em frente aos Orixás do Tati Moreno.

– Sei, sei, na Usina!

– Não, não, um pouco mais pra lá.

O Dique Pequeno, assim chamava minha Mãe. Ainda me lembro como se fosse hoje. Era sempre muito excitante quando ela dizia:

– Hoje vamos fazer uma visita a Dona Jandira.

Era uma senhora educadíssima. Recebia-nos a velas de libra. Servia sempre umas bolachinhas de goma que derretiam na boca. Magrinha, com um cabelo comprido em trança, era a cara de Iemanjá, tal como via nas imagens e nos retratos! Ela era de candomblé e enfermeira. Sei que tinha uns caboclos na vida dela. O que dava um toque clandestino às visitas era a especial circunstância que esta senhora tinha um filho com um tio meu, um primo da rua, cujo nome eu era proibido de pronunciar em qualquer conversa com os meus outros primos. Isso dava um gosto especial de jogar gude e fura-pé com ele.

Em um clima de curiosidade e de mistério, lá estava eu de novo, mais de cinquenta anos depois, no Dique Pequeno, na sessão de Seu Aloísio. Era uma sessão muito conceituada, frequentada por alguns dos mais respeitados médiuns da Vasco da Gama, do Rio Vermelho de Baixo e adjacências. O mais famoso deles era Seu Nonô das Gordas, aliás, Waldenor do Espírito Santo. Era um negro caprichoso, muito direito, que ostentava um saber profundo sobre o espiritismo. Diziam até, que ele aprendera francês para ler Alan Kardec no original. Era um tipo magro, meio careca, de rosto retilíneo, de uma qualidade meio cabo-verde. Seu apelido era autoexplicável. O motivo de sua fraqueza era muito singular: a atração irresistível por senhoras gordinhas.

Já fora contador de uma grande loja de modas na Avenida Sete de Setembro. Chegou mesmo à condição de interessado, quase sócio. Perdeu o emprego por faltar com respeito com a cunhada do patrão, Dona Zilá, uma senhora bem provida que manuseava com maestria os figurinos franceses. Foi sua perdição. Sempre teve um tesão irresistível pelas gordinhas, e logo por aquela que entendia tão bem a língua do Grande Codificador do espiritismo. Lá se foi a carreira de empresário do Seu Nonô.

Também na contravenção não prosperou. Chegou a ser contador-chefe de uma fortaleza de bicho na Baixa do Bonfim, da inteira confiança de seu Delson. Mais uma vez procurou ousadia com Dona Linda, uma rechonchuda senhora que, na mesa branca recebia Joana Darc, e no Engenho Velho incorporava uma barulhenta Obá. Por desinformação, ele incorreu em dois agravantes. Não sabia que no mundo do jogo de bicho, o respeito a um apostador que vai receber o seu prêmio era sagrado. Pior, não sabia que a Obá de Linda tinha um chamego com o Xangô de Seu Delson. Fatal, quase leva um tiro. Até hoje se arrepende de ter passado a mão na bunda daquela senhora. Hoje, resignado, ganha sua vida como contador da loja de ferragens de seu Carmo, na Conceição.

Na sessão de Seu Aloísio, tudo isto se transforma. De Nonô das Gordas, motivo de deboche em toda a Vila América, vira o médium que recebe Castro Alves, Victor Hugo e outros espíritos franceses que conviveram com o Codificador.

Outro fenômeno é o Professor Albergaria. Este sim um homem estudado, brancão, doutor de tese e diploma, fluente e escrevente na língua do Codificador. Apesar do currículo admirável, dedicou a sua vida à gaiatice e ao escárnio geral. Não bebe, não fuma, não fornica. O seu prazer sempre foi verbal. Observa e divulga todos os defeitos alheios e faz disso a sua etnografia. Os confrades acreditam que o professor saiu do sério por causa do convívio com o espírito que ele recebe. Ypiranga, esta é a entidade. Em vida fora um negão, torcedor fanático do auri-negro baiano, amigo de Isaltino, grande craque ipiranguense. Enchia o rabo de cachaça quando o Ypiranga ganhava, e quando perdia também. De tão fanático, terminou trabalhando para Seu Cristóvão, da Transportadora Ypiranga, que mantinha um ônibus funerário para o transporte gratuito de defuntos e para a correspondente aquisição de votos. Por força desta opção profissional e clubística, Ypiranga terminou embarcando e desembarcando mais de mil defuntos. Absorveu assim todas as exclamações emocionadas.

– Tão bom, Deus levou!

– Já vai tarde!

– E agora, quem vai dar um nome a meu filho?

– Mocréia!

– Um bom marido, mansinho, mansinho...

– A viúva tá liberada!

– Me perdoe meu bem, não precisava fazer isso!

Quanta dor, quanta carga negativa! Só podia ser o que é, um espírito zombeteiro, perturbador de todas as manifestações mediúnicas na sessão de Seu Aloísio. Ele não poupava nem Castro Alves.

***

Neste dia, depois de preces e concentrações, Seu Nonô entrou em trabalho mediúnico. Pálpebras cerradas, voz embargada, o espírito identificou­se: era Antônio de Castro Alves em poesia e verdade.

Catí fez a maior festa.

– Castro Alves! Você namorou uma parenta de papai, Dona Brasília, da Rua do Bângala! Em sua memória, ela ficou invicta, moça velha, e criou dois meninos pobres, Dodô Gordo e Dodô Pequeno.

– Irmão, no plano em que eu estou não posso mais reviver estes sentimentos carnais. Isto retarda a minha caminhada de luz. Disse o poeta.

–Quá, quá, quá, qual é Cecéu? Brochou?!

Eis que surge Ypiranga à mesa, tossindo e fungando. E todos sentimos o bafo da saudosa aguardente Jacaré, a mais cara e a mais procurada.

– Que moral de jegue é essa Cecéu? Continuou Ypiranga.

– Você continua encostado em duas senhoras muito respeitadas: Dona Conceição Condé e Dona Mira Braga. A primeira guarda a sete chaves uma mecha do seu cabelo, e a outra gasta tinta com a sua biografia. Pais de família, fechai as portas que espírito de Don Juan continua a passar!

– Oh espírito da maledicência! Não vês que jamais importunaria senhoras de tão vasta cultura e de reputação ilibada. Mais a mais, não seria o segundo em qualquer paixão. A primeira destas senhoras incorpora um germânico mofino que fala Tupi. Pasmem! A segunda incorpora o Jorge Amado, companheiro de letras mundanas, que quase me convencia a frequentar a Dona Flor. Não, absolutamente não! Apaixonada de amigo, para mim é homem.

Seu Aloísio interveio, providencialmente, para evitar que o Ypiranga monopolizasse o diálogo com o Poeta.

– Irmão poeta, a que vi estes aqui? Todos acreditávamos que vossa caminhada já estivesse mais avançada, na direção do seu progresso espiritual. Porque não aceitastes uma nova encarnação? Muitos acreditavam que estivesse reencarnado em um professor da Faculdade de São Lázaro, também poeta, de basta cabeleira branca. Irmão, é preciso desligar-se da vida passada para seguir o seu caminho de luz!

– Irmão Presidente. Das minhas paixões já acalmei meu coração; da minha tuberculose, já me aliviei; mas da luta pela redenção da raça negra não consigo desligar-me. Tanto que lutei pela abolição e hoje vejo o povo negro empobrecido, rebaixado e revoltado. Devo continuar o meu apostolado!

– Qual é poeta. Você é mesmo um descompreendido. Você é branco, do século dezenove e abolicionista. A negrada de hoje prefere ouvir falar do Cão que de abolição. A bola hoje está com o Movimento Negro Unificado. Não há mais lugar para poetas condoreiros. Os poetas de hoje são quilombolas. Você precisa ler Edson Cardoso e Jônatas Conceição.

– Afinal, que defeito tem a minha poesia? – falou o poeta através da garganta rouca de Nonô.

– Quanto à minha pessoa, nada fiz que envergonhe a minha vida – continuou. Sou branco como o meu avô, o Periquitão do Sertão da Bahia. Republicano, revolucionário, lutou lado a lado com os negros pela Independência da Bahia. Fui fiel ao seu legado político. Jamais cedi à tentação de acomodar-me à monarquia. Não me troco pelo Machado, que vocês tanto incensam, um passivo diante da escravidão e da monarquia. Acho muita graça em vocês, quando tentam identificá-lo como negro, o que ele em vida jamais pretendeu. Fui e sou abolicionista, o que em meu tempo era sinônimo de socialista. Que mal há nisso, do que me acusam?

Fronte molhada de suor, veias latejantes nas têmporas e no pescoço, pálpebras cerradas e mãos trêmulas, tudo em Nonô demonstrava a emoção que lhe transmitia o poeta incorporado.

– O poeta rodou a baiana. Comentou, comportado, Ypiranga.

Mais uma vez o presidente da sessão interveio para acalmar os espíritos e para devolver a palavra ao poeta manifestado

– Respeito muito a luta contra o racismo de hoje em dia e os esforços para reparar todos os seus efeitos. Mas exijo respeito para a luta de nossa geração que viveu sob o regime da escravidão e insurgiu-se contra ela. Denunciei o sequestro dos filhos do seio das mães, os castigos corporais, os assassinatos, as humilhações. Cantei o direito à vingança das vítimas do cativeiro. Não vos quero enfadar com os meus poemas, mas, por favor, escutem algumas estrofes do meu Bandido Negro:

Trema a terra de susto aterrada...

Minha égua veloz, desgrenhada,

Negra, escura nas lapas voou.

Trema o céu... ó ruína! Ó desgraça!

Porque o negro bandido é quem passa,

Porque o negro bandido bradou:

Cai, orvalho de sangue do escravo,

Cai, orvalho, na face do algoz,

Cresce, cresce, seara vermelha,

Cresce, cresce, vingança feroz

– E disse mais:

Somos nós, meu senhor, mas não tremas,

Nós quebramos as nossas algemas

Pra pedir-te as esposas ou mães.

Este é o filho do ancião que mataste,

Este – irmão da mulher que manchaste...

– E concluí:

Trema o vale, o rochedo escarpado,

Trema o céu de trovões carregado,

Ao passar da rajada de heróis,

Que nas éguas fatais desgrenhadas

Vão brandindo essas brancas espadas,

Que se amolam nas campas de avós.

Cai, orvalho de sangue do escravo,

Cai orvalho na face do algoz

Cresce, cresce, seara vermelha,

Cresce, cresce, vingança feroz.

Com palmas compassadas, em gesto bem debochado, ao estilo de seu médium, o professor Albergaria, Ypiranga contra-atacou:

– Qual é Cecéu! Nem eu, nem o movimento negro comemos essa bola. Você recitava esses seus versos para moçoilas rendadas e jovens engravatados que jamais viram um guerreiro quilombola. Para que serviram os seus versos, ó poeta dos escravos?

Apoiado na beira da mesa, Nonô levantou-se, e de sua boca saíram palavras do poeta:

– Tenha paciência, senhor Ypiranga, se não sabes para que serviram os meus versos é porque ignoras a história. Estes meus versos moveram a ação de moçoilas e janotas, que esconderam os escravos que arrombaram porteiras e mataram feitores, e os conduziram a quilombos seguros. Aqui mesmo nas terras da Bahia, estes meus versos animaram os do Clube Carijé, da Vila da Cachoeira, a apoiarem o levante dos cativos do Outeiro Redondo, na Freguesia de São Félix, em 1887. Estes são fatos e datas, senhor Ypiranga! Quilombos, eu os conheci. Fui o primeiro a cantar Palmares:

Nos altos cerras erguido,

Ninho de águias atrevido

Salve! - país do bandido!

Salve! - pátria do jaguar

Verde serra, onde os Palmares

- Como indianos cocares

No azul dos Colúmbios ares,

Desfraldam-se em mole arfar!

 

Salve! Região dos valentes

Onde os ecos estridentes

Mandam aos plainos trementes

Os gritos do caçador!

E ao longe latidos soam,

E as trompas de caça atroam...

E os corvos negros revoam

Sobre o campo abrasador!...

 

Palmares! A ti meu grito!

A ti, barca de granito,

Que no soçobro infinito,

Abriste a vela ao trovão

E provocaste a rajada,

Solta a flâmula agitada,

Aos urros da marujada,

Nas ondas da escuridão!

 

De bravos soberbo estádio!

Das liberdades paládio,

Tomaste o punho do gládio,

E olhaste rindo para o vaI.

"Surgi de cada horizonte,

Senhores! Eis-me de fronte!"

E riste... O riso de um monte!

E a ironia de um chacal!

 

Cantem eunucos devassos

Dos reis os marmóreos paços,

E beijem os férreos laços,

Que não ousam sacudir...

Eu canto a beleza tua,

Caçadora seminua,

Em cuja perna flutua

Ruiva a pele de um tapir!

 

Crioula! O teu seio escuro

Nunca deste ao beijo impuro!

Fugidio, firme, duro,

Guardaste-o pra um nobre amor.

Negra Diana selvagem,

Que escutas, sob a ramagem,

As vozes que traz a aragem,

Do teu rijo caçador

 

Salve! - Amazona guerreira!

Que nas rochas da clareira,

- Aos urros da cachoeira

Sabes bater e lutar...

Salve! - nos cerros erguido -

Ninho, onde em sonho atrevido,

Dorme o condor... e o bandido,

A liberdade... e o jaguar!

– Nada mais tenho a dizer. Vou subir - disse o poeta - que o meu médium está muito cansado. Peço apenas justiça para a minha poesia. Julguem cada tempo no seu tempo, e guardem todos os tempos na memória do povo.

***

Terminada a sessão, pairava um grande peso sobre todos nós. Nonô suava muito e era reconfortado por sua Gorda atual. O professor Albergaria continuava a fazer as suas gracinhas:

– Imagine, Diana Selvagem! As neguinhas de hoje são todas periguetes. Só querem saber do arrocha!

Ninguém tinha mais paciência para deboches.

Por um instante recriminei-me por nada ter dito ao poeta. Ia dizer o quê? Pior seria prometer providências a um espírito tão ilustre e não poder cumprir. Não, isso não! É atraso de vida, na certa. Ainda assim, pensei em algumas ações que poderiam levar estes versos libertários às grandes massas. Quem sabe, se convencêssemos João Jorge a adotar a poesia de Castro Alves como tema de um carnaval do Olodum? Melhor seria se a Rede Globo fizesse uma minissérie de televisão sobre a vida heroica do Poeta. São possibilidades...

Tocam estridentes os celulares.

Catí, são as nossas Rádio patroas! Vamos embora!

 

(Histórias de Negro, p.161-178)

 

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