Cidade de Oyó

Idéti era uma menina órfã que morava com uma sua tia por nome Adelaiyê e sua prima Omon-Laiyê. Todos que moravam naquela rua (Odé Aiyó) gostavam muito de Idéti e odiavam a prima Omon-Laiyê; por este motivo, Adelaiyê inventou, juntamente com a filha, que Idéti seria capaz de ir ao céu com vida.

Imediatamente encaminharam-se para o palácio do rei Obá-Laiyê e disseram que Idéti tinha dito ser capaz de fazer o que nem ele, nem nenhum rei seria capaz.

Ele perguntou:

— O que disse Idéti?

— Ela disse que pode ir com vida ao céu visitar Obá Orun e trazer qualquer coisa de lá para o rei, como prova.

Então o rei mandou chamar Idéti e disse para ela que, sob pena de morte, ela tinha que fazer a viagem ao céu, para visitar Obá Orun, conforme ela idealizou.

Ela se negou, dizendo ao rei não ter dito nada sobre aquela viagem, pois que ela não sabia como podia ter que ir ao céu com vida.

— Idéti — disse o rei — já dei a minha ordem; só resta pedir o que desejar para a viagem, e que tenha boa sorte.

— De nada preciso, nada quero, e nada temo, desde quando tenho fé em Obá Orun e no espírito da minha mãe.

Idéti despediu-se do rei e de todos os que estavam presentes, foi para o seu quartinho no fundo da casa da madrinha; lá chegando, recomendou-se a Obá Orun e ao espírito da sua mãe, arrumou sua trouxinha e saiu a caminho do céu, por ela ignorado.

Andou bastante e quando já se achava muito cansada foi perto de uma encruzilhada; aí ela se sentou embaixo de um pé de Rôko que adornava o caminho, para descansar e comer um pouco do pouco que conduzia na sua trouxinha. Foi quando apareceu um pássaro e, pousando bem pertinho dela, cantou assim:

 Idetí, Idetí
Jala, julo jala
Obá aiye ati arabirin lyá
Jala, julo jala
Omo Arabinrin pelu
Jala, julo jala
Pininu louó otun
Jala, julo jala
Obá Orun feré urará
Jala, julo jala, Idetí
Jala, julo jala

Com estes dizeres o pássaro disse o seguinte:

— Idéti, sua tia, sua prima e o rei levantaram um grande falso, tome para o lado direito, Deus lhe gosta e está à sua espera.

Daí, Idéti recomeçou a jornada, andando sempre para o lado direito, conforme ordenou o pássaro, até quando deparou-se com um grande portão. Ela parou e ficou a pensar como havia de atravessar, pois não tinha outro caminho. Foi quando tornou a aparecer o pássaro, novamente cantando assim:

Agoiyá nilê ô ló esé Olorun
Jala, julo jala
Okunrin kan l’ouó otun
Jala, julo jala
Ekeji didê l’ouó osi
Jala, julo jala
Olorun jokô ninu uon
Jala, julo jala, Idetí

Nisto o pássaro vôou e Idéti entendeu o seguinte:

— Entre, você vai para os pés de Deus, tem um homem em pé do lado direito e outro do lado esquerdo; o que está sentado entre os dois é Deus (Obá Orun).

Ela tomou coragem, bateu no portão e este se abriu dando-lhe passagem. Foi andando até quando avistou uma grande e muito bonita casa para onde encaminhou-se. Quando foi chegando em frente à casa, numa grande varanda, uma pessoa veio ao seu encontro e perguntou:

— Que vieste fazer aqui, menina?

— Vim ver Obá Orun.

— Você sabe que a pessoa quando vem aqui não torna a voltar?

— Sei, porém com a fé, e pelo que fizeram comigo, ele sabe que tenho de voltar.

— Você conhece a quem veio ver?

— Não, mas se me for dado o direito de ver, conhecerei.

Levantando uma grande cortina, a pessoa apontou para as pessoas que ali estavam e perguntou para Idéti:

— Qual daqueles três é Obá Orun?

— É o do meio — disse ela.

— Venha cá, minha filha, disse Deus; lhe mandaram fazer todo este sacrifício, você, confiada em mim, fez; e terá a recompensa de tudo isto, depois que me catar uns cafunés; suba aí.

Ela subiu em uma espécie de tamborete e começou a catar uns cafunés.

Ele perguntava sempre, sempre:

— Está vendo alguma coisa?

— Não, senhor, respondeu ela.

Porém ela viu o mar, todo o céu, a terra com todos os seus habitantes, inclusive as casas do rei e da madrinha, o lugar onde ela morava, etc...

Daí, ela começou a chorar, pensando em ter que voltar para enfrentar aquele mesmo cativeiro que vinha enfrentando por sua tia, morando naquele chiqueiro.

Ele então disse:

— Não chores Idéti, minha filha, você vai ser muito feliz. Tome este espelho, quando você voltar que tiver de passar pelos portões e alguém quiser impedir (Ararun, espírito, almas), você mostra, que lhe deixam passar. Tome também estas três caixas: a vermelha você entrega ao rei, logo que chegar, a amarela é da sua tia, e esta preta é a sua. Depois que terminar de falar com o rei e a sua tia, vá para o seu quartinho e abra a sua caixinha.

Ela pediu sua bênção, e ele disse:

— Vai, filha, o meu pai que lhe abençoe.

Daí ela começou a viajar. Logo no primeiro portão uma porção de Eguns (almas) se apresentaram em frente tomando- lhe o caminho, porém ela lembrou-se do espelhinho que Obá Orun tinha lhe dado, e, mostrando, todos saíram da frente e ela passou sem nada ter acontecido que a fizesse temer.

No segundo e no terceiro portão, aconteceu a mesma coisa.

Por fim, levando de vencida todos os perigos, depois de uma longa viagem, ela deparou-se com o já referido pé de Rôko, onde mais uma vez ela se sentou para um pequeno descanso, aparecendo em seguida o pássaro que já é do conhecimento de vocês, cantando desta maneira:

Olorun bukun fun é
Jala, julo jala
Mo jé araun lyá ré
Jala, julo jala

Peuá bojutô onã ré jala, julo jala, Idetí, jala, julo jala

Neste cântico o pássaro disse o seguinte:

— Idéti, Deus que lhe abençoe, sou o espírito de sua mãezinha que foi designado por Obá Orun a fim de guiar e vigiar os seus passos.

Dizendo isto, o pássaro desapareceu para sempre.

Idéti ficou muito pesarosa, chorou um pouco, depois resignou-se e se levantando recomeçou a sua jornada. Andou, andou, andou muito, até que, em uma manhã de um dia muito bonito, ela deu com a cidade onde morava e quando ia passando pela porta da casa de Adelaiyê, sua prima Omon-Laiyê chegava à janela e viu Idéti. Saiu gritando:

— Mamãe! Idéti voltou e trouxe um mucado de coisas; será que trouxe alguns presentes para nós?

— É bem capaz, minha filha. Vamos se preparar para receber-lhe de volta do Obá Orun.

Idéti encaminhou-se para a casa do rei e, por todo o lugar por onde ia passando, um mucado de pessoas lhe acompanhavam dando vivas, saudando Idéti a imortal, a rainha de Odeaiyó.

Quando ela chegou em casa do rei, este veio ao seu encontro; ela entregou a caixinha, despediu-se e voltou para casa da sua tia, onde foi acompanhada com músicas, cânticos e toques de atabaques por todos aqueles descendentes da sua raça que ali residiam.

Quando chegaram à porta da residência de Adelaiyê, todos os que não gostavam dela por causa de Idéti foram debandando para suas casas, certos de que Idéti era a sua nova rainha, a rainha imortal.

Mal Idéti botou o pé na porta, a sua tia veio buscar-lhe, junto com a sua prima. Com os maiores cuidados a tia levou- a para tomar banho, trocar de roupa, oferecendo um grande almoço, etc...

Porém nada disso Idéti aceitou. Tratou logo de entregar a caixinha amarela e depois encaminhou-se para o seu quartinho.

Quando todos saíram da casa do rei, este deu ordem para que, se alguém o procurasse, dissessem que não podia atender, pois ia gozar do presente que Obá Orun tinha lhe mandado.

Trancafiou-se dentro do seu quarto e abriu a caixa, da qual saíram tantas formigas e de tantas qualidades que deixaram o pobre rei em ossos.

A tia de Idéti, por sua vez, também ficou bastante satisfeita com o presente; chamando a sua filha, encaminharam- se para um dos quartos da casa e, quando lá chegaram que abriram a caixinha, saiu tudo quanto foi qualidade de marimbondo, acabando com a vida de todas duas.

Idéti, quando chegou no quartinho dela, sentou-se para descansar um pouco, tomando um pouquinho de Omin (água); em seguida abriu a sua caixinha; nisto, ela depara-se com um caixão de defunto e dá um desmaio.

Quando volta a si, está em um grande e muito bonito palácio, com muitos vassalos e damas de companhia para lhe servirem. E assim Idéti passou a ser rainha da terra Odé Aiyó.

(Contos negros da Bahia e Contos de nagô. 2 ed. Salvador: Editora Corrupio, 2003 p. 47-52.)

 

 

A TENTAÇÃO DE EXU

Escutem, vou contar um caso para vocês. Conheci, numa cidade cujo nome não me recordo no momento, dois rapazes muito amigos e que se consideravam irmãos, vestiam iguais, comiam juntos, onde um ia o outro também o acompanhava e assim por diante.

Eles eram tão unidos que chegavam a dizer: nunca havemos de nos separar, a não ser com a morte de um de nós.

Neste lugar todos admiravam e chegavam mesmo a invejar a união dos dois rapazes, até mesmo os colegas faziam coisas de horror para ver se destruíam aquela amizade, porém nada conseguiam.

Um dia, um daqueles camaradas, bastante revoltado por não conseguir separar os amigos, apelou para Exu, dizendo assim para os demais que se achavam presentes no momento:

— Nós não podemos dar jeito preciso para fazer estes dois camaradas se separarem, não é? Pois tenho plena certeza de que Exu vai fazer o que nós queremos e para este fim já o invoquei.

Todos que ouviram ele falar naquele momento ficaram arrepiados devido à atitude tomada pelo amigo, porém, como estavam no mesmo propósito, não levaram em consideração o que poderia acontecer.

 

Passados alguns dias, os dois camaradas saíram passeando e, como era tempo de frutas, eles foram por uma estrada onde avistaram uns pés de cajus em posições contrárias, e cada um com os frutos mais bonitos.

Vai um deles e diz:

— Eu vou colher alguns cajus naquele cajueiro do lado direito.

E o outro também, por sua vez, disse:

— Eu colherei daquele lado esquerdo pois acho melhor que os da direita.

Quando eles subiram nos cajueiros e estavam colhendo os cajus, apareceu na estrada um homem vestido com um pierrô com um lado preto e o outro vermelho.

O homem, que era Exu, passou pela estrada entre os dois rapazes e, quando já ia bem distante, um dos rapazes perguntou para o outro:

— Você viu aquele homem que passou pela estrada com uma roupa vermelha?

— Para mim está parecendo que hoje é carnaval e os cajus estão lhe fazendo ficar bêbado, porque aquele homem que passou pela estrada foi vestido de preto — respondeu o outro.

O primeiro, convicto do que tinha visto, disse:

— Lembre-se que existe grande consideração entre nós, nunca lhe menti, e não admito que me chame de mentiroso.

Daí desceram dos cajueiros e entraram em discussões severas, a ponto de brigarem corporalmente; quando estavam bem cansados, sem que houvesse um vencedor, o dito homem voltou e ia desapartar a briga, chegando em posição contrária; imediatamente os rapazes reconheceram o homem e um deles disse:

— É, meu amigo, você está com a razão.

O outro, respondendo, falou:

— Você também está com toda razão, pois estou vendo o mesmo homem com a vestimenta da cor que você disse; aconteceu ou fizeram qualquer mal contra nós para nos separar.

Aí então o homem, que era Exu, explicou:

— Ninguém fez nada demais contra vocês, fui eu quem quis fazer assim para mostrar que, nesse mundo, nem tudo pode ser como vocês querem — e desapareceu.

Os rapazes continuaram sendo amigos, porém não existia mais aquela amizade e dedicação que tinham antes.

 

(Contos negros da Bahia e Contos de nagô, p. 131-134.)

 

 

Ossain, Dono das ervas e médico da religião africana no Brasil

Conto africano da nação de Ketu

 

Havia na África, em uma certa época, um casal que tinha três filhos. Um deles chamava-se Ossain. Desde pequeno era devotado às matas e só vivia dentro delas; era muito querido por todos que o conheciam.

Com a idade de dez anos já era o médico de todos os moradores da cidade e de toda a redondeza onde ele morava com sua mãezinha e seus irmãos, faltando o pai, que ele não tinha conhecido.

A sua mãe lhe gostava um pouco, porém simpatizava mais com os outros dois seus irmãos, que também lhe invejavam muito e não lhe tinham muita simpatia.

Ossain reconhecia tudo o que faziam com ele em casa, porém não ligava, pois tudo o que faltava a ele em casa encontrava no mato, na rua, a chamado de alguma família, finalmente, em qualquer que fosse o lugar que ele estivesse.

Os anos passaram. Sua mãe já estava bem velhinha e seus irmãos também já estavam com a idade bem avançada; só Ossain contava com dezoito anos de idade.

Um dia, sem ninguém esperar, Ossain pegou um apó okê (saco grande), juntou todos os seus adôs kekerê (cabaças pequenas) com seus ixés (trabalhos), suas roupas e todos os seus demais ingredientes; depois de tudo arrumadinho, despediu-se de sua mãe, seus irmãos e todos, saindo pelo mundo afora.

Todo lugar por onde ele passava, era bem recebido pelo Obá Laiyê (rei da terra), e todas as pessoas que tinham parentes doentes iam à sua procura e ele imediatamente, confiado no seu poder, dava a atenção precisa àquela pessoa, fazendo com que ficasse boa o mais depressa possível.

Havia uma cidade onde o rei estava às portas da morte e dizia sempre para todos que arranjassem uma pessoa que o fizesse ficar bom, homem ou mulher, que ele dava o seu trono.

Aconteceu que Ossain tinha chegado nesta cidade e imediatamente foi falar com o rei para arranjar uma hospedagem. Quando foi chegando à porta do palácio, disse para o guarda:

— Desejo falar com sua real majestade.

— Sua real majestade está acamado e não pode atender pessoa alguma — respondeu o guarda.

— A mim ele atende, diga que é Ossain Obá Igbô (rei do mato).

O soldado curvou-se a ele e imediatamente providenciou que Ossain chegasse à presença do rei, que ficou muito satisfeito, pois tinha conhecimento dos seus feitos e, pensando na sua cura, mandou que Ossain ficasse no palácio como seu hóspede.

Ossain aceitou e, por recompensa ao rei, resolveu dar alguns remédios para que ele ficasse bom; sem saber de nada do que o rei tinha prometido.

Dentro de seis dias o rei ficou completamente bom; estava curado e bem forte. Passados uns dias depois disso, Ossain foi a presença do rei e disse:

— Rei meu senhor, vossa majestade vai me perdoar, mas o trabalho que tive para lhe devolver a vida tem que ser pago. Não é do meu costume trabalhar para pessoa nenhuma de graça.

Se eu não quiser lhe pagar e lhe mandar para a forca? – perguntou o rei.

Antes de eu subir para a forca, rei meu senhor morrerá; no corpo de vossa majestade está o meu sangue e a minha vila; sou tão poderoso quanto vossa majestade; basta que eu diga três palavras, para que rei meu senhor deixe de viver para sempre.

O rei, muito espantado com toda aquela arrogância de Ossain para com ele, perguntou:

— Quanto custa o seu trabalho, Ossain?

— Rei meu senhor paga meu trabalho com dezesseis cauris (búzios furados e enfiados em forma de rosário).

— Ossain, a palavra de rei nunca voltou atrás; muitas vezes, mais do que se pode se tem: todo este reinado lhe pertence.

Encaminhando-se para ele, tirou sua coroa da cabeça e colocou-a na cabeça de Ossain, dizendo:

— Prometi entregar o meu reinado a qualquer pessoa que me fizesse ficar bom.

Ossain agradeceu ao rei, fazendo questão de só aceitar os seus dezesseis cauris, pois era a quantia que ele achava de direito.

O rei nomeou-o um dos nobres da corte, franqueando todo o palácio e oferecendo tudo o que ele desejasse.

Enquanto isto, a mãe de Ossain tinha ficado doente e estava nas últimas.

Os dois filhos que ela mais estimava não sabiam o que fazer; até que um dia uma vizinha mandou que eles fossem falar com um Oluô (adivinho).

Eles foram, e o Oluô disse que só quem podia resolver aquela situação era Ossain.

Daí cada um tomou para um lado, a fim de encontrar Ossain, pois eles nada sabiam, e tudo o que faziam, em vez de melhorar, piorava a saúde da velha.

Em todos os lugares por onde passavam ouviam falar de Ossain com muita reverência e dedicação. Perguntavam para onde ele tinha ido, se sabiam onde ele estava; até que, finalmente, um deles chegou na cidade onde Ossain morava com o rei, e, bem dito, era quase o rei do lugar.

Aí ele foi ao palácio, levaram ele à presença de Ossain, que muito admirado perguntou:

— Você por aqui é novidade, o que deseja de mim?

O irmão prostou-se a seus pés, pedindo que ele perdoasse tudo o que tinha acontecido e fosse até em casa salvar a sua mãe, caso ainda chegasse em tempo.

Ossain perguntou:

— Vocês estão em condições de pagar o meu trabalho?

O irmão disse que estava.

Então, Ossain viajou juntamente com o irmão e o rei, que fez questão de visitar a terra e conhecer a mãe do seu amigo.

Quando Ossain chegou, a velha estava já na hora da morte.

Ele foi logo preparando os ingredientes. Quando estava tudo pronto, justamente nesta hora, chegou o outro seu irmão que tinha saído à sua procura.

Ossain disse:

— Estou pronto, porém está faltando o principal que é o dinheiro.

Todos os que se encontravam ali por perto, menos o rei, estranharam aquela atitude tomada por Ossain. Disseram os dois irmãos:

— Você vai cobrar o trabalho que é preciso fazer para a saúde de nossa mãe?

— Sim. Se, por ventura, vocês não providenciarem bolar agora, aí no chão, sete cauris, ela morrerá, porque não posso trabalhar para ninguém no mundo, que não seja pago. Caso contrário, o que eu fizer não surtirá o efeito esperado.

Dali fizeram um rateio e conseguiram sete cauris que colocaram no chão, no lugar indicado por Ossain, que apanhou o dinheiro, fez o preceito que devia e em seguida deu o remédio à velha, que duas ou três horas depois achava-se completamente boa.

Ossain, quando viu que a velha estava fora de perigo, despediu-se dela, dos seus irmãos e de todos.

A velha pediu que ele ficasse morando com ela, conforme moravam antes, porém ele disse que não, por não pertencer a ela e não poder ficar somente naquela terra, pois ele era ewê (a folha), e tinha que estar por todo o mundo.

 

(Contos negros da Bahia e Contos de nagô, p. 69-74.)

 

 

Conto das três mulheres que se chamavam

Paciência, Discórdia e Riqueza

 

Certa vez, como se costuma dizer nas histórias, havia um homem cujo nome era Orumilá.

Mandaram-lhe despachar um ebó, a fim de melhorar de situação, que era tão confusa, que não se sabia donde vinha e por onde havia de ir.

Orumilá, possuidor de uma grande paciência, não se abalava de sua posição serena de conformidade com as consultas que avisavam tivesse ele muita calma.

Um dia, apareceram em sua porta três mulheres que diziam chamar-se Paciência, Discórdia e Riqueza, todas querendo ficar em sua companhia. Lhe perguntaram qual das três preferia, ao que respondeu Orumilá:

— Escolherei a de nome Paciência.

Por causa disto, desgostaram-se as outras duas, falsas e ricas, seguindo viagem.

Em dado momento, no caminho, uma estrada quase deserta, surgiu uma grande discussão a ponto de irem as duas às vias de fato, por ter uma censurado a escolha de Orumilá como extravagante, e a outra retrucado que isto era coisa que dependia do gosto de cada um.

Isto foi o bastante para as duas mulheres se esbofetearem até uns trabalhadores da estrada mais próxima intervirem na luta para evitar um possível assassinato que ia se dando, levando as duas, presas, à presença do chefe local.

Ambas as partes expuseram as suas razões e, como o chefe não tivesse testemunha do fato, achando-se sem provas bastantes para resolver o assunto, mandou que as levassem à casa de Orumilá, para que ele, como o homem mais sábio e adivinhador, decidisse a causa.

Assim que elas avistaram Orumilá, foram dizendo logo:

— E por causa deste homem que estamos brigando; por ele ter ficado com nossa serva, a Paciência, sem a qual, está claro, não podemos viver; por isto, todas nós ficaremos com o mesmo homem, até o fim da nossa vida.

Fica assim provado que, onde tem paciência, existe tudo necessário para viver.

(Contos negros da Bahia e Contos de nagô. 2 ed. Salvador: Editora Corrupio, 2003 p. 87-88.)

 

 

Orixá Ibeji, Cosme e Damião

Hoje, às quatro horas da manhã, fui acordado por uma grande e ensurdecedora alvorada de foguetes, foguetões, bombas, etc...

Levantei-me da cama um bocado aborrecido devido a ser ainda muito cedo, mesmo assim me preparei, tomei café, terminei de ler um trecho do livro Os velhos marinheiros, do nosso grande amigo Jorge Amado, depois saí para o meu trabalho.

Eram mais ou menos sete horas, quando estava no ponto do ônibus, ouvi uma pessoa dizer:

— A pedra de hoje é 27, hoje é dia de Cosme e Damião.

Daí foi que vim a saber o motivo da alvorada e ter também me lembrado o que abaixo vou contar.

Há vinte e oito anos passados, no dia de hoje, eu estava em São Gonçalo do Retiro, na roça do Opô Afonjá, pois já tinham começado as festas da Água de Oxalá.

À noite eu e vários camaradas que estavam por lá resolvemos brincar de picula e, com uma algazarra danada, começamos a gritar:

— Nêgo fugido, capitão do mato, arreda que lá vai o gato.

Quando a brincadeira estava bem animada, lá por volta das nove horas, minha mãe, juntamente com as dos outros camaradas, nos fizeram acabar com a brincadeira a toque de caixa.

Nisso fomos todos pra sala da casa grande, junto no quarto do Peji de Oxalá, fazer nossas camas para dormir.

Uns choravam, outros resmungavam, até que uma senhora, já bem velhinha, filha de africanos, por nome Caetana, que estava sentada na referida sala fumando seu charutinho, disse pra nós:

— Nun fica ai assim periado, vae tudo deitá, eu vai contá um cazo pra ocê tudo uvir e drumi.

Aí ela perguntou:

— Qui dia é hoji?

Um disse é domingo, outro disse é 27, ela então disse:

— Num é isso que eu qué sabê qui santo é o do dia de

hoji?

Ninguém respondeu.

Ela então foi dizendo:

— Hoji é dia di Orixá Beiji (Cosme e Damião), õcês saibi qui era Cosme e Damião?

Todos responderam por uma boca só:

— Foram dois meninos. Ela disse:

— Tá tudo erádo, Cosme e Damião éra menino cumo ocês tudo é, mai moreu feito. Preste atenção: Cosme e Damião naceu in Larubáwa (Arábia), foi dôs irmão mabáço, todo dôs éra doutô, curava gente, gostava muito do pobre, dava muita esmola e num ligava prá dinheiro, até qui um dia levantarun farço a ele e o Rei daquela téra mandô cortá a cabeça de todo dôs. Dipôs côpo dele tudo foi pra Roma, lá todo dôs virô santo e teve um casa cum nome Igrejá (Ilê Orixá Ibeji - Casa dos Santos Dois Dois). Daí pur diante, no dia de hoji, todu mundu bancu, nêgo, mulatu, todu, raçá de gente faz caruru, cfó, acarajé, abará e chama gente conhecida pra cumê, e diz tá fazendo festa pra minino Cosme e Damião. Só nós Omo Ketu, qui só faz brigação dele dia da festa de Oxun purque mai véiu dizia qui Eledá, o Criador dele, foi Oxun purisso inté hoje se diz qui mãe do orixá Beji é Oxun. Há... só assim esse cambada tudo drumia pra discançá e pintá o sete ameihã di novo.

Nisso a turma gritou:

— Não estamos dormindo ainda, tia Caetana, conte mais...

Ela disse:

— Deita, cambada, vae drumi, num chega qui pinta dia tudo, eu vae cuntá êse só:

— Eu cunhici um homem qui chamava Ambrózo, gustava muito de jogá carta, mai éra muito bom homem; um dia de vespera da festa de Ibeji ele tava cum um mucado de camarado cunversando em porta de seu casa, quano chega um homem chorano dizeno qui seu muié moreu i num tinha dinnêra pra fazê intêro dele.

Tudo ficô cum pena de home, Ambrózo tirô cemirés e deu a ele, home chorô inda mai agradeceu i foi imbora. Num outro dia Ambrózo era costumado paciá incavalo dia di dumingo cun seu camarada tudo, sahiu pra paciá quano paça por um roça viu zuada de festa, chamô camarada tudo prá espiá; quano ele chega perto de casa da festa, viu um muié cantando bonito e quano ele chegô na casa ficou assustado quem tá cantando é muié qui moreu.

Na casa tava mesa posta cum muita comida, muita bebida, cum muita gente dansano e home qui tomô cemirés tava tocano violão fazeno festa, quano viu Ambrózo ficô todo trapaiado sem podê se movê do lugá.

Ambrózo, com a bondade qui tinha, num se zangô, inda judô home qui tinha inganado ele dizeno prus camarado: esse casa é da gente vamo fazê festa pra São Cosme e Damião e difunta qui já moreu e viveu.

Cun essa brincadêra Ambrózo cuns camarada brincô dôs dia nêsa casa e discontô bem cemirés qui deu pra intêro di muié de dona da casa.

Daí por diante não sei contar mais nada, pois só acordei no outro dia, segunda-feira, às seis horas da manhã, com minha mãe me chamando, que estava na hora de me preparar para ir trabalhar.

 

(Contos negros da Bahia e Contos de nagô. p. 191-194.)

 

Xangô, o guerreiro conquistador

Vou contar para vocês o que me foi contado por uma velhinha, filha de Oxalá, chamada Maria Báda (Olufan Deyi, nome do orixá).

Um certo dia ela estava na roça do Opô Afonjá, sentada em um banquinho em frente da casa de Ossain, eu fiai passando, e ela disse:

— Meu neto, venha cá, você é filho de Xangô, não é?

Respondi:

— Sou, sim, senhora.

— Você sabe ou tem algum conhecimento das façanhas e proezas que seu pai andou fazendo por todo este mundo?

— Não, senhora.

— Pois bem, vou contar uma delas para você.

Xangô era um homem forte, de cor preta, simpático, atraente e conquistador.

Ele gostava muito de passear pelas tribos, conquistando e se apoderando das mulheres dos outros.

Um dia o sol estava tinindo de quente, ele ia passando por um lugar e encontrou com Obá ajoelhada, pedindo aos seus deuses para mandarem chuva.

Xangô, atrevido como ele só, forçou Obá e viveu com ela.

Ela era velha, mas muito bonita, amorosa e recomendava a todos o amor daquele varão; mas Xangô era moço, cheio de vida e logo se aborreceu de Obá.

Uma noite que a velha descendente do céu adormeceu, ameaçando com as cóleras de Orixalá, Xangô fugiu e começou pelo mundo uma vida de prazeres e de lutas.

Em cada canto aparecia um inimigo, em cada tribo uma guerra. Xangô correu por todos os sertões onde as cobras suspendiam as cabeças escamosas, chegou a limpar o suor do rosto no seu saiote de fogo, dizendo com desespero:

Baba l’ori mi, ba mi ô! (O pai da minha cabeça, me valha!).

Certa vez ele chegou em uma aldeia, todo roto, com o rosto ferido e perseguido por uma tropa de guerreiros, quando a rainha Oxun mandou chamar ele no palácio. Quando ele chegou ficou pasmado, o palácio era enorme e todo de cristal líquido. O Sol, com seus raios de luz, clareava todo o palácio com cores estranhas, era um verdadeiro paraíso. Dentro, a linda rainha Oxun sorria com o seu mais doce sorriso.

— Xangô, você é muito valente — disse ela. — Eu gosto de você. Vem morar comigo aqui neste palácio, que desde já lhe pertence.

Xangô, que era muito desconfiado e prudente, perguntou:

— Quem é a senhora?

— Eu Oxun sou, neta de Obá, descendente dos Orixalás.

Xangô pensou, em pé na porta sem querer entrar. Depois de ter pensado e refletido bem, ele disse:

— Oxun, você é muito bonita, mas é neta de Obá, a velha que me persegue com seus feitiços. Vejo que você não me quer mal, mas só entro se você mandar abrir uma porta no fundo deste palácio...

Oxun estendeu o braço,  no fundo do palácio um pano d’água caiu, e Xangô viu a floresta escura. Nisto ele foi entrando, dizendo para Oxun:

— Você é muito boa.

Neste momento também foram chegando os inimigos e com receio de que Xangô tivesse fugido, foram consultar os Babalaôs, dos quais o mais moço, por nome Kankanfô, era tão sábio que todos os orixás lhe respeitavam.

Os Babalaôs fizeram e amarraram um Oxê (figura de gameleira), para mostrar que Xangô não tinha fugido; os guerreiros invadiram o palácio, quando se depararam com o Oxê, saíram todos a bradar:

— O rei não se enforcou. Vamos para a guerra!!!

Foi quando ouviram um enorme trovão, e Xangô, num relâmpago de fogo, apareceu gritando:

— Emi Xangô, Oba Ati Baba Inã (eu sou Xangô, o rei e pai do fogo).

Xangô já era um Deus. Os guerreiros ficaram estáticos, com as armas nas mãos sem nada poder fazer.

Os Babalaôs levantaram as mãos ao céu em sinal de respeito, dizendo:

— Ayo! Kabiesi!

Xangô olhava para todos com desprezo. De repente, no rio formou uma neve e apareceu a imagem de Oxun, que, com sua voz terna, assim dizia:

— Xangô, aqui estou, vamos para casa...

O guerreiro ia se retirando, mas teve que parar.

Os Babalaôs disseram para Xangô:

— Você é mais do que um homem, mas só sai daqui depois que fizer o ebó dos Orixás.

Xangô disse:

— Eu sou um guerreiro e não me sujeito. Ninguém é mais do que eu! Kankanfô, o mais sábio dos homens e dos deuses, vai falar!

Kankanfô apareceu, olhando os assistentes, olhou o céu e disse:

— Você anda mal, Xangô. Reprovo toda sua vida. Falo para o seu bem. Se não fizer o ebó com um cágado e todos os preparos, nunca mais você vai deixar esta vida errante, e a vida, assim, é um grande mal para o seu corpo e para todos nós. Faz o ebó, guerreiro!

Havia tanta doçura nas palavras de Kankanfô que Xangô se curvou, dizendo:

— Vou fazer.

— E comerás com os outros o amalá, caruru de quiabo, sem desperdiçar um só caroço de quiabo?

— Comerei — disse Xangô.

Kankanfô sorriu e jogou o opelé (adereço usado pelo sacerdote de Ifá) para saber o futuro daquele instante, mas não teve tempo.

Velha, toda acabada e apaixonada por Xangô, chegava Obá, dizendo:

— Estou cansada de perseguir Xangô. Se não fosse por minha causa ele não chegava a ser o que é. O meu ebó deve ser feito junto com o dele.

— Nunca, velha horrível! Só obedeço à palavra de Kankanfô!

O jovem Babalaô não disse nada. Jogou seu opelé. Pensou, refletiu bem e depois disse:

— O ebó de Obá deve ser separado porque ela é, no momento, apenas avó de Oxun...

Nisto Xangô se jogou nos braços da rainha Oxun, e uma nuvem com trovão, vento e chuva embebeu toda a terra durante aquele enlace.

 

(Contos negros da Bahia e Contos de nagô. p. 201-204.)

 

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