Maracatu de Real Realeza

 

- A boneca é de cera
- É de cera e madeira
- A boneca é de cera
- É de cera e de madeira
 
A menina saiu com esta louvação no ouvido e, em alguns momentos, surpreendia-se repetindo-a em bom tom, rua afora.

Um dia chamaram sua avó de Calunga e ela cresceu fortalecida com as lições extraídas do maracatu, lugar de pertencimento da Calunga, a boneca sagrada.

Do mesmo modo, tão logo a menina percebeu o quadro colorido na parede com a imagem de um cotejo, a avó iniciou-a no conhecimento dessa história real:

“Negros e negras de diversos lugares da África foram trazidos para serem escravizados no Brasil. Trabalhavam duro no canavial ou no serviço domésticos ou ainda nos serviços de rua, tudo para acumular dinheiro para os proprietários. Eram trabalhadores e trabalhadoras que não tinham salário mas produziam riquezas para alguém.

Os domingos, porém, eram dias de folga. Eles e elas juntavam-se e começavam a criar formas de comunicação, já que ali estavam pessoas de línguas diferentes. Dançar era uma atividade agregadora, comum a todos os grupos ali reunidos, então dançavam.

[...]

A formação de um maracatu deu origem a muitos outros em diversos lugares em Pernambuco. Onde nasceu o primeiro? A história não registrou, mas eles lá estavam com o formato de uma corte real africana, com todos os direitos e deveres distribuídos entre sim.

Havia alegria porque se organizaram em um só povo, em outras palavras, como uma nação”.

Agora a menina olha o quadro com um cortejo de maracatu sabendo que aquela imagem lhe acompanhará em cada maracatu que passar. E no seu ouvido ressoa:

- A boneca é de cera.

- É de cera e de madeira.

 

(In: Maracatu de Real realeza. p. 1-9)

 

 

Biriba Berimba

 

 

 

Berimbau estava numa roda de capoeira fazendo o maior som e percebeu o outro berimbau, seu vizinho, desafinando a cada nota. Tanto perdeu a afinação que por ele mesmo retirou-se da roda.

Berimbau continuou o toque, ora por outra olhava o companheiro, desolado num canto. Desejava terminar sua função e ir lhe prestar apoio.

Assim fez, encontrando Vara cabisbaixa, o arame torto, a cabaça, o caxixi sem graça, Berimbau perguntou:

- O que aconteceu com você?

- Eu não sou uma vara de biriba, o meu tempo de validade venceu.

- Oh, eu posso dar um jeito. Faço a sua substituição pela biriba e todos seremos felizes por muitos e muitos anos.

- Mas se eu for substituída, serei outro berimbau.

- Berimbau não é só uma vara e sim, o conjunto, a vara em forma de arco, o arame, o caxixi, a cabaça, a vareta.

- Está bem, você tem razão, vamos nessa!

Vara, desajeitada, seguiu ai lado de Berimbau à procura de biriba.

[...]

 Entre as biribas encontradas naquela pesquisa, selecionaram uma de melhor condição, isto é, altura e galhos adequados à envergadura.

- tiraram um galho e chegaram com esta surpresa para Vara: ele seria substituído, arame, caxixi, vareta, cabaças antigas continuaram na sua companhia. Vara abraçou os ex-companheiros.

[...]

Berimbau apresentou o jovem e lhe deu novo nome: Berimbau Vara, o toque de Angola confirmou o batismo do nome e a festa continuou com a exibição dos múltiplos toques.

[...]

Atravessaram o dia inteiro naquela festa e se recolheram quando o infinito apresentava uma faixa avermelhada e ia desaparecendo enquanto as primeiras estrelas iam aparecendo. Neste encontro um som de longe: be rim baú be rim baú be rim baú be rim baú... eram eles se despedindo.

Como um só arame faz um som tão bonito?

 

(In: Biriba Berimbau. p. 3-15)

 

 

A semente

 

 

 A menina não acreditou na notícia que leu no jornal que enrolava as batatas compradas na mercearia:

No dia 13 de outubro de 1855 chegou ao porto de Serinhaém, litoral de Pernambuco, a última leva de escravos traficados da África. O tráfico estava proibido desde 1831, mas a lei foi sempre ignorada (...). 
 

Ouviu o gracejo das colegas que acompanharam a leitura e apressou-se para chegar em casa e ouvir a mãe, que sabe tudo, explicar aquela história.

- Escuta, mãe, o que está escrito aqui!

 Abriu o pacote e as batatas caíram, o que interessava era ler. A mãe sentada no batente da cozinha, ouviu, balançou a cabeça, confirmando:

- Foi isso mesmo. Minha bisavó e meu bisavô vieram nele. Algumas vezes a ouvi contar esta história, aliás, ela contava depois que a gente insistia muito, pois isto lhe causava muitas saudades. Quando o navio atracou, logo os homens foram separados das mulheres e esta foi a última vez que ela viu meu bisavô. Ele foi vendido para longe e não conheceu a filha que a bisa trazia bi ventre, minha avó.

- Então a sua vó foi escrava?

Foi, todos que vieram naquele navio foram transformados em escravos, não interessava o que eram na África. Nos engenhos de cana-de-açúcar faziam tarefas distintas, uns iam cortar cana, outros serviam à casa-grande, tudo às ordens do senhor. As mulheres escravizadas cuidavam da cozinha, das crianças, davam de mamar às crianças recém-nascidas da casa grande, vendiam quitutes na rua, umas eram alugadas para outros engenhos como ama-de-leite, arrumadeira, passadeira, cozinheira. Depois ficavam sem eira nem beira, podiam ser revendidas novamente e o dinheiro era do senhor.

- Puxa, mãe, como eles aguentavam tanto trabalho?

- Bem, não aguentavam de bom gosto, mas a vigilância era grande. Alguns conseguiam fugir.

- A bisavó fugiu?

- Não, ela continuou esperando que o avô voltasse um dia. Com o passar dos anos, ela desiludiu-se com a volta do amado, abriu a latinha que ela sempre guardava no bolso da roupa, retirou a semente lá de dentro, aproveitou uma saída do engenho, e a plantou. E disse à filha que aquela árvore que ia nascer li representava os homens e as mulheres que vieram naquele navio.

 - A tal árvore só pode ser o baobá, você sempre disse que ele é uma árvore africana, feito nós.

 - Bem lembrado.

 - E quem ficou por aqui?

 - Algumas pessoas, inclusive minha avó.

 - É por isso que tem muita gente negra na região?

 - É. Quem não fugiu, ficou por aqui, aos trancos e barrancos. Uns continuaram no eito, mesmo depois da libertação.

 - Puxa, mãe, por que você não me contou esta história há mais tempo?

 - Porque esta é uma história dentro das outras que você já conhece. Lembra daquela dos Palmares?

 - Lembro: Ipojuca, Serinhaém, Palamares, todas nos levavam ao quilombo dos Palmares? Mas os Palmares foi muito antes do último navio, eu sei.

A mãe sorriu da esperteza de Kizzy. Apanhou as batatas e colocou-as para cozinhar. No dia seguinte, na escola, a menina contou a história do último navio negreiro e a professora fez o recreio à sombra do velho baobá. As crianças não se cansaram de fazer roda para abraça-lo.

E nunca mais ninguém caçoou de Kizzy.

 

(In: Baobás de Ipojuca. p. 7-12)

 

 

Cinco Cantigas para você contar

 

 

Hoje eu quero lhe contar, criança, sobre umas cantigas de brincar ou de ninar que aprendi com meus avós. As cantigas são cantadas há tanto tempo e tantos anos que ninguém sabe quem são seus autores. Toda mãe da minha cidade, quando era da minha idade, cantou também com os amiguinhos. E vocês vão aprende-la para contar para seus netinhos.

As cantigas, umas falam de violência e outras em sabedoria. Agora a gente vai recria-las na forma de uma história para os nossos dias.

As cantigas para você contar depois aos amigos, criança, é que a gente quer um mundo melhor, nisto a gente tem esperança.

Um lembrete: um cravo nunca brigou com a rosa em frente a uma sacada.

Escravos de jô
Jogavam caxangá
Tira bota
Deixa o zambelê ficar
Guerreiro com guerreiro
Fazem zigue-zigue e zás!...
(popular)

 

Foi assim que meu avô fugiu da tirania do senhor. Meu avô dizia que foi um negro fujão, tantas vezes era pego, tantas vezes fugia, porque não aceitava a escravidão. Cada dia era dia de um negro fugir para a realidade e de zigue-zigue e zigue-zigue e zás!... fugia do capataz.

Na outra senzala a situação não foi diferente. Com a escravidão ninguém era contente, só o senhor, que vivia dessa exploração.

Os negros brincavam na capoeira e, de golpe em golpe inventado, viram o jogo aprimorado para se defenderem do capitão do mato.

Vovó também dizia que seus tios e suas tias eram escravos-de-ganho e outros viviam na asa grande. Para ekles a casa-grande era pequena como uma gaiola e se sentiam feito passarinhos presos, para fugir dali dariam qualquer preço.

Os tios e mas tias iam vender na rua tudo o que o engenho produzia. Á tarde prestavam conta ao senhor e tão pouco poupavam para a sua alforria!...

As ruas eram largas... mas não podia reunir mais de três escravos havia sempre um capataz de olho... mesmo assim os códigos de luta funcionavam e a senha pregava rebelião. Maior do que o medo do chicote era o desejo de libertação.

Os tios e as tias também aproveitavam para alimentar os velhos que viviam nas calçadas sem roupa, sem comida, sem casa, depois da lei dos sexagenários. O senhor sanguinário não podendo deles tirar mais lucros os jogou ao pé do muro. Os sábios negros velhos! Quantas vidas sofridas, tantas vidas ensinadas, agora abandonadas pelas calçadas.

“Vou m’embora pra um quilombo, nada de chicote no lombo; no quilombo eu sou livre, não tenho senhor, não” – dizia vovô, negro fujão, que não temia capataz e de zigue-zigue e zigue-zigue, zás! Era um guerreiro, escravo nunca mais.

 

(In: Cinco cantigas para você contar. p. 2-5)

 

Pai Adão era Nagô

 

 
   Olorum criou a terro. o mar, o ar. Olorum nasceu antes de tudo. 
Olorum é o princípio. Ele criou Obatalá e Oruunmilá e deu poder para Eles criarem outras criaturas e queria que todas vivessem em hamornia. Um dia, umas criaturas humanas resolveram tirar lucro de outras e, com armas potentes para este feito, invadiram a região delas e abalaram a harmonia que tentavam manter. Esta era a África.

Quando os africanos eram seqüestrados da sua terra para outras terras do outro lado do mar, eles deixavam sua família. Seus pertences materiais, seus companheiros, só trazendo consigo a roupa que vestiam. Amontoados no porão do tumbeiro, eram encarregados feito objetos ou animais, vendidos ou leiloados. E iniciaram uma vida de trabalho duro sem nenhum direito. Só tinham o dever de trabalhar, trabalhar, trabalhar. Essa forma de trabalho era chamada de escravidão.

Trabalhando desde o nascer até o por do sol, o africano era prisioneiro do “senhor”, o homem que lhe comprara e delegava ao capataz a vigilância constante para evitar qualquer descanso ou fuga. Nenhum capataz, porém, consegue vigiar ou prender a crença de um povo. E o africano trouxe com ele a sua crença e a guardava no íntimo de sua vontade, do seu entendimento. Sabia que Obatalá, aquele que criou os homens, não os criou para serem escravizados. Sabia que Orunmilá, aquele que cuidava do destino dos homens, cuidaria do seu destino e da sua descendência.

O africano não tinha o direito a nada: não tinha casa, não estudava, não passeava livremente, só podia fazer o que era da vontade do “senhor”. O “senhor” não sabia, porém, que ele guardava a sua fé nos orixás e com eles conversava em qualquer lugar que estivesse.

Os Orixás estão representados na natureza: nas plantas, nas matas, nas águas, no vento, no arco-íris, nos minerais, nos raios, na chuva, na terra, na pedra, nos vegetais, nos animais... pois o africano aproveitava dos momentos de trabalho, conversava e fazia ofertas para os Orixás pedindo proteção e força para a sua descendência continuar a lutar. E desta maneira ele se fortalecia apesar dos castigos do “senhor’”.

Foram várias as nações africanas sequestradas para o Brasil e aqui foram misturadas, o “senhor” achava que, procedendo assim, enfraqueceria a luta contra a escravidão , porque difícil elas se comunicarem umas com as outras. Puro engano. Um grupo destas nações era de origem YORUBÁ. Os Yorubás eram muito organizados, preparavam fugas e enfrentavam o capataz ou o “senhor”, se fosse preciso. O “senhor” e seus capatazes chamavam os Yorubás de Nagô, que queria dizer piolhento, porque eles eram muito agitadores. O nome nagô passou a ser orgulho para eles e de Nagô se chamaram e chamaram a sua língua Yorubá de Nagô. O candomblé era Nagô, eles eram Nagô.

 

(In: Pai Adão era Nagô. p. 3-6)

 

  Eu, o Coco

 

Perguntaram-me porque eu sou uma dança dos quilombos. Eu vou lhes contar uma história: até onde eu sei, além de ser um refúgio após a fuga, o quilombo era o lugar de reorganização da vida criativa, uma nova vida. A terra era de quem ali chegasse, portanto, poderia arar, colher, criar animais, caçar, pescar. Gozar dos mesmos direitos e deveres.

As crianças eram acompanhadas pelos mais velhos e pelas mais velhas, responsáveis pela transmissão do conhecimento produzido por casa etnia que ali vivia. À sombra das árvores, elas ouviam as histórias ancestrais.

Da minha parte, eu lhes digo: mesmo sendo uma árvore estrangeira, gozei de boa adaptação aos diversos solos sem me incompatibilizar com as palmeiras nativas. Por isso, fui disseminado do litoral do sertão, passando pelo agreste.

À noite, os quilombolas se reuniram em volta da figueira, uma reunião para o descanso da labuta – hora de discutir idéias. Uma das idéias dessas reuniões foi celebrar a minha presença na economia quilombola. Nada melhor do que dançar em minha homenagem.

Dançar sempre fez parte da vida dos quilombolas, mesmo na senzala, dançar pela morte. Dançar faz bem ao espírito e ao corpo, aprenderam com os antigos.

 [...]

Coco – deram o nome à dança, o meu nome,quer louro maior? Acreditem, fiquei muito, muito orgulhoso. 

A partir daí, as noites eram animadas com o Coco: batidas de pés, batidas de mão batidas de tambor.

 

 (In: Eu, o Coco. p. 3-9)

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