Cabelos

 

Cabelos enroladinhos enroladinhos

Cabelos caracóis pequenininhos

Cabelos que a natureza se deu ao luxo

De trabalhá-los e não simplesmente deixá-los

Esticados ao acaso

Cabelo pixaim

Cabelo de negro.

(In Cadernos negros 1, p. 9)

 

 

Fato comum

 

Esta história não contém ingredientes novos, ela repete o dia a dia. Dia a dia que aqui nos serve de relato, para fixarmos algumas idéias, para tentarmos, nos nossos exercícios mentais, mais facilmente precisar a realidade. A realidade num sentido muito estreito, de um grupo estreito de pessoas que vivem as frustrações de uma fantasia, que não conseguem transformá-las nas fadas mágicas, mas sempre na bruxa a envenenar a maçã. Apesar do gosto amargo deste veneno, insistem em continuar experimentando-o. É amargo, ruim, mas é sempre parte da fantasia (ou do pesadelo). Pierrôs e Colombinas perdidos num carnaval que não dura apenas quatro dias, carnaval longo que atravessa uma vida.

Tratando de uma história diária, banal, ela poderia ser contada através do jogador de futebol famoso que nos dias de glória é destaque nos bailes do municipal e que, antes, assutava ou fazia medo aos seus atuais “amigos”, quando chegava na porta de carro e dizia: _ Doutor, quer que eu tome conta?

É bom dizer, de antemão, que não temos a mínima intenção em criticar ou julgar a ascensão social de ninguém. Aliás, sob certos termos, somos até muito favoráveis. Também não vamos confundir, comer bem e viver em casa decente, com as tais atitudes burguesas, vindas de um pensamento deliberadamente classista e espoliador. Vamos ficar na superficialidade dos fatos e olhar apenas o preço da ilusão de integração social de certos pretos “realizados”.

Saindo do jogador de futebol, pensamos em dar uma olhada através do casal de amigos que hoje faz terapia de grupo só porque numa dessas igrejas de bairros de alta sociedade foram confundidos com... Eles moram há muito tempo no tal bairro, são freqüentadores assíduos há muitos anos da tal igreja, devotos caridosos e grandes colaboradores de todas as obras paroquiais. Um dia, uma outra madame devota lhes perguntou empregados de quem eles eram mesmo? Daí a crise da cor. Mas esta história é muito cruel. Vamos procurar outro exemplo mais falante, com mais charme poético, com maiores sutilezas. Poderia ser mais suave deixar os fatos na voz encantadora e na vivacidade da pretinha inteligente e graciosa. Ela que, a partir dos amigos da escola, se viu sempre bem aceita numa camada de moços ricos. Jamais fora esquecida para uma festa, viagens ou reuniões. Benquista, mas nunca amada. Estranho, mas nunca nenhum dos rapazes da turma foi seu namorado. Todos a queriam bem, mas jamais ganhou um beijo de amor, nem saiu pelos passeios de mãos dadas à procura deste sabor juvenil dos namoricos apaixonados. No entanto, as pessoas têm respostas fáceis à sua inconsciente cegueira. Justificava ela a sua solidão por ser tímida e conservadora, neste setor. Isto afasta os rapazes. No entanto, a repressão da tristeza virou uma pequena neurose de detalhes, um elenco de concessões, um grito silencioso.

Certo é que o grupo ora incorpora, ora se contradiz. Aceita. Entretanto, tem limites. Até os limites da família. Por vezes, além dela. No limite, aí ele manifesta sua verdade e trai a sua concessão individual com ela.

A exceção, que jamais se tornou regra, deixa de ser exceção.

Estamos quase contando o fato comum pela voz forte da nossa menina querida. Ela, como os anteriores, não pode contar essa história tão bem como Paulo Fusquinha. Não pode contar, pois ainda não fez sua autocrítica tão bem e clara como ele.

O fato comum será contado tal qual Paulo Fusquinha nos contou.

 

A história

Um dia estava eu no escritório do Sérgio, vendo alguns detalhes da última reunião de avaliação da participação dos grupos negros nas últimas eleições, quando, para surpresa nossa, entra Paulo Fusquinha.

Admirados dele estar ali nós estávamos. Ficamos mais ainda quando ele disse que queria levar um papo sobre aquelas idéias e aquelas coisas que vínhamos fazendo por aí, há algum tempo. Paulo Fusquinha querendo falar de Movimento Negro? Foi uma enorme interrogação.

Paulo sempre procurou ficar distante de tais coisas, mesmo dizia que não tinha nada a ver, estava noutra, para ele as coisas eram de outra forma. Hoje parece que a terra tremeu. Tremeu forte e ele estava ali, confessando nunca ter entendido nossos pontos de vista, mas hoje e disposto a sentar e discuti-los. Aliás, ele tem uma censura válida, sobre a nossa falta de clareza, sobre a complicação de nossos discurso, a inconstância de nossas ações. Critica também que as divulgações nunca ultrapassaram os cantos de uma dúzia e meia de eleitos, que era difícil de entender.

Paulo Fusquinha, nome e sobrenome da periferia do Rio de Janeiro, nas altas sociedades, do túnel de Copacabana para baixo, conhecido como Negrão, Paulão, Paulo Negrão. Figura popular de dois mundos, tanto na Zona Norte, por ser filho de compositor conhecido, tanto na Zona Sul, pela passagens de braços dados com damas das altas nas altas badalações.

Temos que ver que sociedade no Rio não é como na Bahia, onde o senhor doutor e banqueiro tem pele morena e cabelos ondulados, mas também não é do Rio Grande do Sul, onde os olhos verdes marcam o tipo local. Tem outras peculiaridades, como a da transformação dos fatos que são secretos, nos meios paulistas em atos de proeza e nova forma de “liberalismo” carioca. No Rio, a alta sociedade cultiva o traço marcante do carioquismo urbano. O Rio faz parecer valer tudo, quando não vale nada, nada mais que uma moda, um momento, e mostra por vezes o outro lado do seu pensamento retrógrado e conservador. Temos o exemplo da crítica que o governador sofreu por ter uns pretos no seu secretariado. A Dona Liberal disse: _ Bem aqui, no Rio de Janeiro, que é o cartão de visita do Brasil.

Paulo Fusquinha, filho de funcionário público, que ficou no Rio de Janeiro e não quis transferência para Brasília. Não entrou na tal história de salário dobrado somente para não ficar longe do Rio. Paulo, garoto criado com muito zelo, foi para a faculdade, saiu bem diplomado e mesmo pós-graduado. É doutor não por ter anel no dedo, paletó e gravata, mas porque defendeu tese. Através de concurso, Paulo arranjou um empregão no banco do estado. Aliás, esta história de concurso abriu uma brecha para participação do negro em algumas instâncias. Em certos hospitais, a gente só vê negro trabalhando, não é por nada, não por discriminação, pura casualidade, onde existe concurso como meio de acesso, a coisa muda, a casualidade desaparece e um outro doutor preto a gente encontra. Mas o concurso não é tudo, o diabo ainda é a tal universidade. Ainda 99% dos alunos são brancos, pura casualidade. Um por cento perdido no leite, às vezes se leitifica, mesmo que fique leite azedo. Mas isto é outro papo, tem gente que diz que é reflexo do poder aquisitivo. Eu fico com as minhas dúvidas. As mais esclarecidas não concordam e mesmo que fosse isto, então de onde vem a novela da falta de poder aquisitivo? Mas Paulo, como íamos dizendo, foi o primeiro morador do bairro a ter um fusca e rapidinho o apelido pegou e, logo em seguida, ele foi morar em Botafogo, passando pouco tempo depois para um pequeno apartamento em Copacabana. Pequeno, minúsculo, mas em Copacabana. Até a mãe dele falava bem alto para todo mundo da escola de samba escutar: _ Meu filho Paulo mora em Copacabana, Zona Sul. Era mais um liberto no 13 de maio.

Na Zona Sul, ele tornou-se cartaz e fascinação das aventureiras senhoras da alta roda. Elas se revezavam e rolavam pelas aventuras com Negrão. Era fama contada e recontada em tom de segredo ou fofoca. Por outro lado, toda vez que a “turma” estava a fim de dar uma chegada na escola, a conversa era a mesma: _ Negrão, você nos leva à escola de samba? Negrão era proteção, o sinal aberto para serem recebidos, para estar no camarote. Com gente comum não tinha graça ir ao samba. O negócio era aparecer. Outra razão é que nas idéias preconcebidas, a barra era pesada e precisavam de um guarda-costas autorizado no pedaço. O Negrão.

No escritório do Negrão, virava, mexia, era invadido por uma coroa, soltando plumas, falando alto, dando enormes gargalhadas, batendo forte no peito do cara com assinatura de uma posição aberta. Negrão, trânsito livre num semi-círculo estreito. Apesar de tudo, examinando detalhadamente os fatos, não era de seu cartaz que vinha seu poder, sua autorização de estar ali onde outros pretos e pretas só estavam como garçons, sambista ou prostituta. Seu passe livre vinha a sua relação com homens, homens de negócios, paletó, gravata, dinheiro, muito dinheiro. Lógico que esta relação nunca foi admitida, contada ou contabilizada no seu exato valor.

De Negrão a Paulo Fusquinha eram dois mundos. Num, muito sorriso, muita graça, sempre amável, solícito, pronto para tudo. Negrão sempre foi elogiado e apologizado pela sua cultura, pelo seu talento. Paulo Fusquinha uma história do passado a ser esquecida. Não tinha mais compromisso com os Santos, não vinha mais à casa das tias, raramente visitava a mãe. Aparecia no bairro às vésperas do carnaval, acompanhando gente bem nutrida e brilhante que ofuscava qualquer dos destaques das alas.

Ah, claro, para ele, tudo aquilo era sonho. Nada de errado, nada a ser questionado. Sobretudo as concessões abertas. Fazia delas um modo de vida, era ele seu herói preferido, o homem bonito que de hora em hora se olhava no espelho, repartia o cabelo, consertava o bigode. Guarda-roupa com mais de 30 camisas, duas dúzias de calças, uma de sapatos, tudo o que permitia conservar uma elegância fora de série.

Negrão era, volta e meia, procurado pelos homens de negócios à procura de informações, conselhos econômicos e coisas do gênero. Não pouco comum era entrar em seu escritório o diretor de empresa eufórico, com uma garrafa de uísque debaixo do braço, dizendo: _ Negrão, esta é para comemorar a dica que você me deu sobre aquele negócio. Ou então: _ Negócio da China, rapaz, você me arrumou. Após o mesmo gosto democratizante, a mesma frase: _ Negrão, você é um cara legal, gosto de você. Por vezes, o disco mudava, cara legal era trocado por grande sujeito, boa gente, amigão e outros sinônimos. Estes favorzinhos asseguravam a passagem de Paulo Fusquinha a Negrão entre os homens da alta soçaite.

Movimento Negro, como vocês devem ter percebido, não passava de uma tremenda chatura para Negrão. Identidade racial, identidade, protesto, problema de comunidade era um discurso de neguinho complexado procurando desculpas. O negócio, segundo ele, era todos se mirarem no seu exemplo, estudar e vencer na vida. Ele dizia quando questionado:_ Façam como eu... Em parte ele tem razão, pois muitos são demovidos pelas barreiras e dificuldades, caem no desalento, num meio marasmo e perdem a luta constante pela dignidade do homem, mas não é exatamente isto que Negrão pensava, nem exatamente está no centro da questão.

 

Certo dia, é dia de preto

 

O telefone toca, a secretária anuncia um doutor Carlos etc. e tal. Em seguida, entra o homem.

_ Negrão, tudo azul? Como vai a família? Você precisa aparecer mais lá em casa.

_ Tudo certo, Carlos.

_Olha, Negrão, estou aqui com um probleminha, e logo pensei que você era a pessoa na medida para me ajudar. Afinal, você é a pessoa mais bem informada do Rio de Janeiro.

_ Pois não, Carlos, é só dizer.

_ Acontece que eu perdi meu gerente financeiro e preciso urgentemente que você me sugira um nome certo. Você está bem a par dos meus negócios, conhece o pessoal. Talvez possa me indicar uma pessoa exata. Estou pagando quanto pedir. Você me faz esta gentileza?

_ Carlos, vou dar uma pensada, mais tarde você me liga e eu vejo se consegui alguém.

_ Passo por aqui. É melhor assim. Saímos e tomamos um uísque por aí.

Bom, o dia foi longo, destes dias quentes de ar condicionado do Rio de Janeiro. No fim da tarde, logo após o expediente, como num passe de mágica, entra o Carlos, sem ser anunciado nem nada.

_ Negrão, como é? Encontrou meu gerente?

_ Sim, Carlos, encontrei.

_ Sabia. Tinha falado para o pessoal. Você nunca falha, é o homem mais bem informado do Rio de Janeiro. Pois bem, quem é a fera?

_ Eu, Carlos.

O sorriso se desfez no rosto bem barbeado e a palavra é recomposta meio a solavancos: _ Tá brincando, Negrão!

_ Não, não estou. Eu sou a pessoa no modelo para seus negócios.

_ Negrão, você sabe, aqui entre nós, ninguém duvida dos seus conhecimentos, da sua capacidade, mas você sabe, na diretoria tem gente que não vai aceitar.

_ Não, não sei, você que está dizendo agora.

_ Negrão, você é meu amigo, tenho você como irmão, não gostaria de te magoar. Não é por mim, você sabe, os clientes...

_ Boa noite, Carlos.

_ Boa noite, tia. Vim ver vocês.

Paulinho, mas como você está bonito, meu filho, quanto tempo! Senta aqui, meu filho. Olhe, cuidado, a cadeira. Anita, limpe a cadeira pro Paulinho. Senta aqui, meu querido.

_ Limpando a cadeira com o avental, cobrindo-o de carinho, a tia foi a compreensão de uma vida, na sua filosofia simples, daqueles que não esquecem mesmo quando esquecidos... Fim.

 

Fato comum

 

Fato comum é o preto de elite, ou gente que se considera elite. Aqueles que pensam que são exceções, os primeiros, os mais ou menos aceitos com naturalidade. Têm mesmo certa vaidade em serem considerados diferentes.

_ “Não, mas você é diferente”. Esta é a frase de integração acompanhada de um sorriso e tapinha nas costas.

Na senzala da vida, havia negros na casa grande e os negros de eito, certamente alguns pelos privilégios tomavam ares de elite. Mesmo os capitães do mato também poderiam se considerar melhores e privilegiados. Entre os negros libertos, alguns, por vezes, tornaram-se destaques nacionais. Alguns destes, entre capitães do mato e libertos, se consideram elite. O fato de serem escravos da casa grande iludia alguns, dava prazer ao ego a necessidade de sentirem-se diferentes dos outros, mas no topo, para o branco senhor de escravo, todos eram negros, escravos. Não eram nem seriam elite, pois uma elite tem poder de decisão, de influência na vida de uma sociedade. Possivelmente as únicas elites foram os quilombos, elites de combate, capazes de fazer mudar a vida da colônia, com a força de fazer sentir sua presença nas decisões mesmo da metrópole em Portugal.

Essa história de elite caminha no tempo. Existiam em São Paulo os negros dos Campos Elíseos. Campos Elíseos foi o antigo palácio do governo do Estado. Os negros dos cortiços dos Campos Elíseos se consideravam melhores por habitarem as cercanias do palácio do presidente do Estado. Habitantes do cortiço como outros da Glete ou da São João. A avenida São João era uma rua estreita poviada de grandes casarões onde a massa subdividia o espaço. Mas nos Campos Elíseos, era diferente, ficava perto do palácio.

Negros de elite, os mulatos rosados, o Que Vi e mesmo os aristocráticos, são gente pensando pelo mesmo fascínio, das mesmas ilusões, marcados por mínimos contornos da realidade. Naturalmente a elite daqui não é mais de um assalariado bem pago, um funcionário qualquer ou doutorzinho empregado, não representando nada no geral da sociedade, não tendo poder nem influência decisória. As elites se formam no processo produtivo ou num conjunto no processo cultural. As elites do nosso meio não produzem, apenas consomem. São elites da pobreza, procurando diferenças mínimas, divisórias satisfações do ego para não olhar a realidade mais ampla. Elites da pobreza não só econômica, desprovida de dicionário e bom senso para avaliar o significado do termo.

Entretanto, tem alguns fatores que os diferenciam de nosso geral, o pedantismo, o reacionarismo, o medo constante etc. Medo de abalar sua fantasia. Medo de ser traído pelo bom comportamento e ousar. Medo da ousadia de exigir, de atacar as oportunidades. Mesmo a ousadia pode ser vista como um mau comportamento. Ela, “elite”, fica quieta, escondida.

Certeza tenho, enquanto negro continuar sonhando com elite, aparência e coisas mais, nada vai para frente. Atrás do falso status, cobre-se o sol com a peneira, perde-se tempo precioso, deixa de realizar ações fundamentais, tanto para as vidas individuais como para ações comunitárias.

Essa tal “elite”, ela entra pela cozinha e aí permanece. Não arromba portas, não senta na sala, por isto eu posso rir dela.

(In Negros na noite, p. 9-14)

 

 

O escravizado que tocava piano

 

Para começar, era uma vez uma palavra chamado escravo, com a qual as pessoas brincavam e brincavam e ficavam brincando. Bem, até hoje brincam em mortal irreverência a respeito da natureza humana, como se a mágica da vida produzisse seres acorrentados ou como se na terra dos meus ancestrais alguma coisa anormal tivesse ocorrido com a civilização, e fosse por uma inexplicável falha cultural, produtora de escravos. Era uma vez uma possível palavra chamada escravo, mas a palavra que uma vez existiu, ganhou vida na imaginação da irracionalidade de alguns. Tomou forma, proliferou e tornou-se triste e real irrealidade, na qual mentes ingênuas ou perversas têm credo. Tendo credo, acreditam. Acreditando, agem como se fosse real. Tornando-se real, a irrealidade transforma-se em natural e acetiavel. Uma nova verdade por seculares segundos imutáveis. É difícil olhar em volta e ver que o mundo é uma imensidão, que milhares e milhares de séculos se seguem, dos quais a nossa imaginação em o curto e instantâneo prazer de ousar imaginar diferente.

A história é apenas isto: o escravo, tocando a transitoriedade das forças, deixa de ser escravo para se reconhecer apenas como escravizado. Recupera a realidade primordial que credos irracionais transformam.

Sopra a brisa indiferente às pessoas. Sopra refrescando a si própria na sua indiferença. Sopra sem dar importância às cenas. Sopra pelo simples e singelo ato de soprar. Assiste a tudo e sopra nos nossos ouvidos a história real e sussurra verdades para quem as quer ouvir.

Estamos em finais do século dezoito, em pleno sertão mineiro, nas serras onde a riqueza do ouro e da prata, das terras, das mãos e do conhecimento africano fizeram abundância da distante Portugal.

O frescor do clima produz manhãs de névoas úmidas e calmas e tardes de esplendor do sol dourando a entrada da noite, onde vez ou outra o Batacotô revive a vida. Bate tembor e soa longe para que o povo ouça. Bate e bate mais, até que o som seja ruidoso prazer de harmonia e conte na sua batida uma história.

Estamos diante de uma propriedade dita colonial, no centro de uma sociedade de imigrantes forçados vindos dos solos Mandingas, Vai e Yoruba, aprisionados em seu corpo e livres em sua mente, em difícil diálogo com imigrantes, não menos forçados, vindos das terras de Portugal e Espanha. Os mais recentes, em sua maioria dignos representantes da escória social, às vezes embarcados à força, às vezes fugitivos, quase sempre rejeitados por seu próprio povo, aqui movidos por um mesmo ideal, à procura de fortuna e lugar social que crimes aqui cometidos pudessem conferir. Uma estrada, às vezes ou quase sempre, ignorante massa criminosa que a história nos fez acreditar como elegante corte. Corte de ilustres e educados seres.

Pois é diante da propriedade, um patamar da casa aberto para o espaço livre do campo, discretamente balançando com a brisa que passa, num vaivém elegante, chacoalha deselegante a impaciência de uma senhorinha. Tem os olhos no caminho e a atenção voltada para o que se passa no interior da casa. Aflita, acaba de vir da sala onde alisava o instrumento de som agudo e metálico vindo de Portugal. Vai até a varanda, volta e interroga ríspida:

– Onde está o professor de canto? Quem vai tocar piano para eu cantar?

Na outra sala, alguns viajantes chegados da corte, maltratados pelo tempo e pelas dificuldades do caminho, tratam de negócios. A senhorinha tinha visto na visitante presença platéia para seus dotes aristocráticos.

Nascida na região, conhece o mundo de leituras e conversas repetidas cotidianamente no jantar como preâmbulo para a longa noite de sonha mergulhada na escuridão da noite, interrompida apenas pela lamparina a óleo de banha animal. Filha de imigrantes: a mãe, expulsa pela severidade de um pároco com relação à prostituição. O pai, um mercenário transformado em mercador. Ambos sem nenhuma instrução ou título de nobreza, nem mesmo algum ofício que os fizesse portadores do respeito e futuro assegurados na metrópole. Sonhadores de que, um dia, talvez a filha os pudesse resgatar o passado, derma a ela tudo que não tiveram, certamente após se estabelecerem no interior mineiro e tornarem-se proprietários à custa de diversos crimes, dentro dos quais a escravidão de todos que eram escravizáveis: africanos, oficialmente, índios e europeus não-oficialmente. O poder apoiado pelas armas e por bandoleiros que conseguiam organizar. A menina, um dia, deveria brilhar na corte, portanto, era treinada para a corte. Desta ilusão fazia parte o treino solitário da música sem platéia, sem corte, sem príncipes e nem meso sapos.

Um rapazola fazia o polimento de peças ao longo do caminho e observava a impaciência explosiva da senhorinha. Sem que ela imaginasse que ele fosse mesmo capaz de entender o que se passava. Sim, ela não imaginava entendimento possível. Bem, teremos que explicar antes de concluir ou seguir eu o escravo para ela era um móvel, um ser movente, sem capacidade de compreensão, a menos que o mestre pensasse por ele. Criada repetindo a inteligência do branco português e acreditando na nossa imbecilidade africana, se acercava da verdade em cada inverdade criada naquele miniespaço da propriedade, onde a violência domesticava os espíritos e imbecilizava a inteligência humana, do dominado e do dominador.

Numa das idas e vindas à varanda pragueja e pergunta a senhorinha:

– Quem vai tocar piano para eu cantar? Este imbecil que nunca aparece – referindo-se ao ausente professor.

Repentinamente, um dos imóveis, um dos seres moventes ali presente, impensável para ela ou para alcance possível dela, e para surpresa própria se manifesta.

– Se quiser, eu posso tocar o piano.

De súbito, o relho canta na mão da senhorinha:

– Isto pra aprender a não mentir.

O relho soa novamente:

– Isto pra aprender a não ser insolente e meter as orelhas em assuntos de brancos.

Ela então sai em direção ao mesmo espaço da entrada resmungando:

– Onde já se viu um negro tocando piano. Lá sabe ele o que é piano?

O tempo passa, a impaciência aumenta e a raiva também. Era preciso extravasar, culpar alguém, portanto, o ser movente tornara-se a desculpa mais oportuna.

– Diz saber tocar, como pode? Onde aprendei?

– Antes da nossa cidade ser invadida e destruída, meu pai usava tocar muitos instrumentos. Quando os portugueses chegaram trouxeram um padre com uma caixa de música diferente de todos os nossos instrumentos musicais – tinha corda dentro e os nossos por fora. Meu pai aprendeu a tocar este instrumento musical e ensinou a todos nós.

– Sabe tocar? – um sorriso de desdenho brilhou no rosto da senhorinha.

O relho se aprumou, mandante e reinante na tonalidade de relho ameaçador.

– Pois toque!

O rapaz olha com olhar cruzado, vai ao instrumento, espia em torno, prepara e toca. Mal começa a tocar, um grito interrompe a mal começada audição.

– Diabo! Coisa do Diabo! Somente o diabo pode fazer um negro tocar piano!

A senhorinha sai correndo à procura da ajuda, de crucifixo, e sempre gritando:

– Diabo! Diabo! Diabo! Somente o diabo pode fazer o negro tocar piano. Só pode ser coisa do diabo!

 

Dois dias depois, o Sebastião, que antes se chamava Diolofe, era enviado par outra propriedade, vendido como quem poderia incorporar o diabo. A senhorinha ficava enfiada na sua ilusão de ter visto o diabo.

A depressão e a paranóia aumentavam. Dia a dia a senhorinha parecia mais assustada com a idéia de o negro tocar o piano. Confirmava que o diabo de fato existia. Ela o vira.

Praga, pura praga desses negros. Padres eram trazidos para espantar o diabo e nada. A senhorinha só piorava e a paranóia aumentava.

Dois anos mais tarde, a senhorinha morreu louca, sempre repetindo:

– Um negro não pode tocar piano. Foi o diabo, o diabo.

Dezesseis anos mais tarde, o Dialofe morreu lutando contra os portugueses. Antes de morrer disse:

– Como pode este povo primitivo, cruel e violento pretender ser civilizado, pretender nos escravizar? Nascemos livres, vivemos livres e morremos livres. Como pode gente tão ignorante querer nos dominar?

(In: Tear africano: contos afrodescendentes. p p. 35-40)

 

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