Pão da inocência

O menino veio até a porta dos fundos do casebre e tentou identificar o pai, ao longe, escavando a terra res­secada. Cedo, madrugada ainda.

A mãe estava na cama. Aliás, passava quase todo o dia deitada.

Ficou indeciso. Se chegava ou não perto do pai. A fome aproximou-se vagamente, caminhou para a barriga e instalou-se por todo o corpo. Permaneceu parado. Algo lhe dizia que seria novamente um dia de fome. Caminhou até a cozinha. Destampou a lata, talvez encontrasse algum pedacinho de pão. Não tinha. Só uns farelos no fundo. Revirou na palma da mão. Foi ao bule em cima do fogão. Tinha umas gotas de café. Bem ralinho, amarelado. E uma barata, morta. Retirou-a. Deve estar com gosto de café, refletiu.

Guardou-a para o irmão mais novo. Era um ritual.

Julgava que cabia-lhe alimentá-lo e o fazia com tudo que lhe aparecesse às mãos: gafanhotos, minhocas, broto de assa-peixe. Sentia-se interditado de comer estas porcarias, porém, crianças menores e animais – pensava – ­podem viver do que conseguirem botar para dentro. Revi­rou o café sobre os farelos e meteu tudo na boca, voltando ao umbral da porta. Mastigava vagarosamente. A fome parece que aumentou. b pai veio, a enxada arrastada pelo corpo magro. Viu-o ruminando. Deu-lhe um tapa na boca, "comendo o quê, seu safado?". Acabou de engolir tudo.

O menino assentou-se à soleira da cozinha. Ficou riscando o chão com um pauzinho. Sem virar-se, sabia que o pai estava entornando a cachaça no copo. De uma garrafa de cana no pé do armário. Reis, a marca.

Foi ao terreiro ver se tinha uma espiga de milho granada.

Talvez a refeição do dia fosse mingau de milho verde. Nem uma espiga boa. Resolveu comer assim mesmo. Uma lá dos fundos, escondido do pai. O estômago pedia alguma coisa sólida.

Ficou olhando os meninos na rua. Alguns passa­vam com a roupa arrumadinha. Sentiu que era domingo.

Antigamente iam à missa. Ele e o irmãozinho mais novo. Sabia como eram os santos da igreja. Mas não tinha nenhum parecido com ele. Eram todos brancos. Os anjinhos também. Mas diziam que todo mundo podia en­trar no céu. Era só morrer que, se não tivesse pecado, ia pro céu.

O menino escondeu um pedaço de sabão. E numa noite clara de lua cheia lavou a roupinha. E foi à missa. Lá o padre assustou-se, ao ver num confessionário uma crian­ça que não sabia nem a ave-maria. Recomendou-lhe ir ao catecismo. O menino perguntou-lhe se tinha muito pecado. O padre confirmou. Disse que quem nunca confessou nem comungou tem pecado. Comparecesse ao catecismo.

O menino não foi ao catecismo, nem mais à igreja, pois apanhou a maior surra da mãe por ter sumido de casa no domingo. E quem ia esvaziar o penico cheio de urina e cuspe? E acender o fogo, mesmo com a lenha úmida, para o jantar nem sempre constante?

O menino não voltou à igreja. Mas perguntou mais um pouco para as outras crianças sobre o céu...

Chamava-se Adônis. Nunca vira um coleguinha com este nome. Também isso lhe parecia um particular destino. O irmão mais novo chama-se Zé.

Viviam segregados dos vizinhos. Ninguém ali saía de casa. Um dia perguntaram-lhe a profissão do pai. Re­petia o que ouvira: "Posentado da Central"- mesmo sem saber o que era.

As pessoas davam-se por satisfeitas.

E viviam de quê? Aquele tiquinho de milho não dava nem prum mês.

Também não sabia.

O menino sentado à porta da rua. Passou uma dona, olhar sereno, suave. Sorriu para ela. As pessoas sempre paravam quando ele sorria. Ela veio e pegou-lhe nas mãos. Parecia a Nossa Senhora. Perguntou a ela se um menino, cujo pai bebia o dia inteiro, a mãe sempre na cama recla­mando, um menino tão sozinho, se um menino tão bem mandado, se tinha pecado este menino.

A dona acariciou-lhe o rosto negro, magro, e disse que não. O menino pediu-lhe, ansioso, que confirmasse. Não tinha mesmo pecado? Certeza isto?

A dona confirmou. Com toda certeza não tinha. Ti­nha até crédito no céu. Quando morresse, alguém que ti­vera tudo na vida ia se afastar pra lhe dar um lugar.

O menino saltou por cima do pai deitado na cozi­nha, abraçado à garrafa de Reis. Pela altura do ronco sa­bia que ficaria na mesma posição pelo resto do dia.

Foi ao armarinho e pegou a lata: "Formicida Tatu"; abaixo os dois ossos cruzando uma caveira. Abriu-a, en­cheu a caneca grande de água e misturou lentamente a porção. Foi para trás da casa, receoso de ter interrompida a cerimônia libertadora.

Os vizinhos acudiram ao ver a polícia chegando. "Adônis morreu!". "O Adônis se suicidou!" Mas por que foi?

Ninguém sabia. "Mas que coisa... Uma criança...”

O pai não sabia o que dizer, a mãe explicava: não podia nem sair da cama, quanto mais saber o que o filho andava fazendo.

O mais novo aproximou-se do caixãozinho. O ros­to contorcido do irmão não lhe sugeria dor.

Estava era com fome. Quem à sua volta poderia preencher o buraco que se avolumava, vindo pelas per­nas, passando pela barriga e chegando à cabeça?

(Cadernos Negros: os melhores contos, p. 73.)

 

Travessia

Negros, goianos e nordestinos apresentam em comum intrigante característica: famílias numerosas. Acredita-se que isso se deva à necessidade de braços pra domar a terra e a uma forma de driblar as altas taxas de mortalidade infantil a que estão sujeitos. Segundo Bergson, há, subjacente ao ... mas por que estou me estendendo sobre este assunto? O que me proponho a relatar nada tem a ver com tais questões. Ou tem? Bem, que o julgue a leitora­ou leitor.

Cuidarei aqui do como e quando uma criança passa do devaneio irrefletido à percepção crítica das condições existenciais do seu grupo social. Do momento em que o viver situações se abre para o compreender.

Cansada de pagar aluguel pro turco da venda, minha mãe, um dia, comprou um lote no extremo leste de Belo Horizonte e botou os onze filhos pra construir uma casinha de dois cômodos e banheiro do lado de fora. Os únicos vizinhos em situação pior que a nossa eram dona Gercina, marido e escadinha de nove filhos à beira da morte por inanição num barraco caindo aos pedaços, separado da gente por tênue cerca de arame farpado.

Família estranha aquela. Dona Gercina - pernam­bucana miúda - era casada com Sô Manoel, cor amarelada, gordura suspeita e persistente mudez, vindo de Unaí, Minas, já perto dos Goias. Só geravam filhas e, diz que, tentando um varão, só foram desistir na nona. Passavam estas o dia inteiro assentadas num banco comprido de tábua, saias abertas nos joelhos, catando feijão, penteando cabelo e ajudando a mãe a lavar roupa: no fundo, nenhuma atividade que agregasse valor ou consumisse alta energia. As três mais velhas, Parecida, Madalena e 'Xiliadora, até que de vez cm quando saltavam a cerca pra vir brincar comigo e minhas irmãs. Mas nunca passavam de uma brincadeira de roda ou passar anel. Futebol (minhas irmãs eram craques), pegador, maré, pular corda (lembram? Sal, pimenta, querosene, bota fogo! Shlept! Shlept!), tudo junto, era muito pra elas. Havia um desânimo atávico, uma tristeza endêmica, um impaludismo crônico e familiar que lhes destruía o viver, corroía-lhes o alento.

Tinham um agregado, Alcides, sujeito meio abobado, que falava mascado, com o canto da boca. Usava chapéu velho, de feltro, com furos do lado, e umas roupas largas, também em estado crítico. Parente não devia ser porque os outros, a despeito da ampla gama de cores, do amarelo-­angelim ao marrom-canela, não chegavam ao peroba-rosa que era o Alcides. Apesar de semi-idiota - e também desa­nimado -, cortava lenha, cuidava da horta e, de vez em quando, era visto arrumando o telhado do barraco.

Minha mãe era comadre de dona Gercina. Não sei bem como, já que eu era o caçula, tinha meus nove pra dez anos quando a conheci e, depois que mudamos prali perto, ela não tinha tido mais nenhum filho. De qualquer forma, ciente de suas obrigações - compulsórias ou assumidas ­estava a menos pobre sempre ajudando a vizinha, com roupas usadas, macarrão. Arroz, feijão ... Quando Natal, Ano Novo ou algum outro evento de peso, aparecia até um bacalhauzinho ou uma galinha. Com minha mãe por coma­dre, podiam morrer de qualquer coisa, menos de fome.

Enfim, aos fatos.

A Belo Horizonte da segunda metade dos anos 50 sofreu profundas mudanças sob os efeitos da industria­lização nacional que se consolidava. Os novos agentes econômicos iam empurrando para a periferia as famílias da falida nobreza rural moradoras do centro da cidade. Por consequência, começaram a deslocar os pobres do subúrbio para bairros mais afastados, quando não para as cidades próximas.

Dessa forma, a expansão da cidade passou a não se dar mais em congruência com o planejamento original. À medida que os novos ricos construíam mansões nas encostas próximas à Serra do Curral, os lumpens e os operários com baixa qualificação que gravitavam em tomo das áreas urbanas estabeleciam-se em favelas ou em bairros de saneamento precário, ainda à distância de tiro de canhão da urbe. Enquanto isso, o pessoal sem renda nenhuma passava a morar mais longe, naquelas áreas que poucas décadas depois se tornariam outros municípios ou a chamada Região Metropolitana de Belo Horizonte. Dominadas por grandes árvores, caça rasteira, grandes mananciais e possibilidades de uma agricultura de sobrevivência, essas terras davam a seus moradores o status das grandes famílias reais européias, inclusive sem problemas de IPTU, ICMS, ISS e outros inconvenientes do Estado leviatã. Em compensação, também não tinham escolas, hospitais, renda para adquirir sal, pólvora, roupa e outros que tais, o que lhes emprestava uma existência semelhante à das tribos indígenas.

Tal se deu com dona Gercina e Sô Manoel. Re­ceberam um dinheirinho pela venda do lote com a casa velha e se mudaram prum bairro desse tipo, na zona oeste, chamado Serrano. A vida deles mudou um pouco e, como verifiquei depois, pra pior, se é que era possível.

Minha mãe continuou ajudando a comadre. Numa periodicidade que não sei como fora acordada, em torno de cada dois meses, partia eu pro Serrano com sacolas a tiracolo cheias de roupas, arroz, feijão, sal, gordura de coco ... Pruma criança representava um certo peso, mas não tanto, já que a gente também não tinha tanta grana assim pra comprar coisas.

Pegava um ônibus até o centro da cidade, outro até um bairro intermediário, Jardim Eldorado, descia, caminhava uns cinco quilômetros e chegava ao Lar dos Meninos Dom Orione. Essa instituição era um orfanato católico, bem organizado, para o qual minha mãe fazia pequenas contribuições em dinheiro, em selos usados recolhidos entre pessoas amigas - não me perguntem o que faziam com esses selos - e orações (também não sei como contabilizavam isso). Saía de casa aí pelas seis horas da manhã e lá pras oito e meia estava no Lar dos Meninos. Morto de fome. Não tomava café em casa (mas já era de propósito, hehehe...). Os padres deviam achar que eu era uma criança cumprindo missão de guerra, porque eu era super bem preparado. Punham mesa com pão de todos os tipos, rosquinhas, manteiga, geleia, sucos, café com leite, mel, frutas... Comia igual a um paxá. Me emprestavam um boné de soldado - mais capa de chuva e galochas, se estivesse chovendo – , e me convidavam a descansar um pouco. Mas não demorava lá. Saía batido, pegava a estrada assoalhada de folhas, entre árvores altas, frondosas, e daí a uma hora, hora e meia, chegava à casa de dona Gercina. A família toda já estava me esperando. De banho tomado, as roupas velhas limpinhas (provavelmente havia um dia certo, eles nunca estavam assim quando moravam perto da gente!), cabelos amarfanhados, carinhas ansiosas.

As meninas não conversavam comigo. Olhos baixos, ariscas. Não sei por quê. Naquela época eu não representava grande risco. Daí, abraçava todo mundo, entregava as bolsas pra dona Gercina, dava os recados que mamãe mandava dar - de boca, eles não sabiam ler ~ e saía pra passear com Alcides. À sua maneira abobada, me mostrava os trilhos de animais, dava uns tiros com sua cartucheira sem acertar nada, falava das virtudes medicinais de algumas ervas - plantadas e naturais - e eu voltava pra casa deles.

Então botavam a mesa: sonhos fritos, água de rapadura e farinha. De vez em quando apareciam castanhas-de-macaco assadas e uns cocos cozidos, que, hoje, pensando bem, suponho que eram pupunha. Eu caía em cima arrasando. Na volta, tinha que passar de novo no Lar dos Meninos. Só pra mostrar a cara. Acho que eles tinham medo que eu me perdesse, fosse sequestrado, sei lá o quê. Chegava em casa de tardinha; Sacolas vazias, dava os informes pra minha mãe e caía duro na cama. Cansado e satisfeito. Estranho, mas todo mundo ficava feliz comigo.

Um dia, num desses retornos, minha mãe resolveu fazer umas perguntas. Achava esquisito que eu não voltasse com fome, já que a única refeição garantida era o café da manhã do Lar. Comia na dona Gercina, expliquei. Disse que tinha um lanchinho lá. Me perguntou se a família toda participava do lanche. Eu disse que não, que ficavam todos em volta olhando. Ficou pensativa. Recomendou pra dali em diante só me sentar à mesa se todo mundo fosse comer. "Tudo bem", respondi.

Na outra ida, segui sua determinação. Na volta, informei: "Ninguém quis se sentar comigo." E acrescentei, descuidadamente: "Acho que a comida não dava pra todo mundo, não".

Minha mãe foi pra beirada do fogão e, de maneira disfarçada (não pra mim, que tinha ido atrás ver o que ia ter pro jantar), tentou enxugar as lágrimas no avental.

Tinha dez para onze anos. Foi a partir desse dia que apreendi o sentido daquelas peregrinações.

 

(Cadernos Negros 26: contos afro-brasileiros, p. 57.)

 

BALADA EM OURO E AZUL

 

 

Morreu D'Angola. D'Angola morreu. Sol. Ao fundo, céu sem nuvens. Fiquei ali, perdido, sem acreditar que D'Angola morreu. D' Angola, o da faca na meia, os olhos rajados de sangue, a boca vermelha.

 

Nas manhãs de domingo voltando da missa deitávamos na pedra eu e Ana olhando a favela lá embaixo. Pensava gozado isso uma favela num buraco. Pobre e igreja vivem nas Alturas reflito o calor gostoso da pedra no peito. Gravuras infantis. Ana me mostra a casinha de D'Angola longe ao fundo do buracão. Não enxergo ela me engana. Daí pensar que todo mundo me engana até hoje. Em criança não sabia que era míope pensei vou ter que descer pra ver a casa do D'Angola Aquele que Jogava com a Faca na Meia. O que Bebia Cachaça Até cair. Mas não chamava D'Angola pra todo mundo pra mãe era César: Que nome gozado. César não me parecia César que pra mim todo César era branco. A mãe era magrinha magrinha assim tristinha não parecia mãe do D'Angola que pra ela não era D'Angola era o César. Ele não está aqui agora digo assustado que não vim para vê-lo que um ídolo não pode se mostrar aos mortais ainda mais que era César pra mim D'Angola as pernas compridas driblando no meio saltando no centro marcando gol sem vibrar o silêncio no ar a torcida gritando eu apertando o olhar pra ver o D'Angola que volta correndo pro meio do campo arrumando a meia perto do joelho amarrado com fita com fita vermelha o lábio vermelho os olhos vermelhos gazela correndo a cabeça redonda morreu D' Angola O da Faca na Meia procuro o espanto a dor coletiva e saber como foi se foi morte morrida se morte matada polícia ou mulher ladrão ou bandido acidente na estrada na rua na vida não sabem não ligam morreu D'Angola chorei escondido.

 

Eu ainda era criança.

 

Esse aglomerado de casas que hoje se vê aí, neste buraco, nem sempre foi assim. Dizem que nos tempos antigos era um grande lago. Profundo. Misterioso. Com árvores centenárias nas margens. Difícil acreditar, não? A primeira vez que o vimos, eu e Ana, éramos então pequenos. Na volta da missa, sozinhos, vínhamos por dentro da pedreira, que não sei se vocês sabem, depois aquilo ali se transformou em pedreira. Primeiro lago, depois pedreira e, no tempo de D'Angola, campo de futebol e vila residencial, que eles chamam de favela. Podíamos escolher, passar por dentro ou por fora. Vínhamos por dentro, que criança não tem mesmo muito tino, procura o prazer, o sorriso ao passar, a guloseima repentina, a quermesse permanente, a festa dos bares, a magia: do futebol, da queimada, do café com leite e da pipoca.

Tinha tudo isto, por dentro da pedreira.

Hoje em dia chamaríamos o que ali existia de favela que na época não era um buraco com um monte de casas construídas de acordo com o bom senso das pessoas nada de Prefeitura para atrapalhar nem título de propriedade que ninguém quer ser proprietário de um buraco cheio de pedras ou de coisa nenhuma.

Olhando bem é possível que aquilo tivesse sido mesmo um lago. Haja vista as pedras espalhadas no alto, às bordas, sem nenhuma ordem, semibalouçantes, onde eu e Ana parávamos para descansar, que era uma longa caminhada e uma festa constante, essa ida aos domingos, ao mundo e à igreja.

Lá dentro tinha um time de futebol, camisa ouro-azul, o Planalto - mais adequado seria Planície, ou Vale, pensava eu, criança com lógica de adulto, a olhá-los, manhã de sol, a trocar de roupa, colocar calção, ajustar as meias -, que sempre vencia, o pior que acontecia era empatar.

Ficava ela lá, a taça de prata (não era, mas parecia muito), pendendo no nicho de pedra, disputada ferozmente pelos nossos heróis, cá embaixo.

Ficava eu aqui, a olhar D'Angola, ajustando cuidadosamente a dobra da meia, amarrando a parte superior com a fitinha vermelha. Eu no meio deles, inocente, conivente, só muito depois sabendo que ali, ao longo da canela, estava a faca, longa e pontuda.

Ficava cá o time visitante - ganhador pelo empate -, a olhar a taça lá no alto, no nicho de pedra, suada, mas sem coragem de ir buscá-Ia. Quem subiria, o inimigo do lado, calado, de sobreolho. Ainda mais contra um time, que tinha um cara, um ponta de lança, de nome D'Angola, ou César, não sei, que jogava armado, com uma faca na meia ...

Às vezes, olhando de cima, imaginava que aquilo podia virar de novo um lago, se chovesse muito, e afogar os times todos, e todas as pessoas. Até o D'Angola? Não. O prazer de pensá-las se afogando e pedindo socorro foi substituído pelo medo - de saber que D'Angola também poderia morrer. E quem marcaria os gols? Quem?

Falaram que fora um lago aquilo. Até da existência de um monstro. Então eu perguntava e tinha peixe? Pergunta sutil, que já naquele tempo eu era astuto, que se não tem peixe de que o monstro se alimentaria? E ninguém me soube responder. Ficava meio a meio: uns diziam que tinha peixe, outros que não; mas uma coisa era igual: ninguém havia lá pescado 'algo. O que me fazia suspeitar que era um lago sem peixe e sem monstro, e como tal, desnecessário; e fizera muito bem de ter desaparecido e dado lugar para o Planalto e pra D'Angola.

E falavam muitas coisas interessantes.

Naquele tempo as pessoas adultas ainda conversavam bastante com as crianças.

Quando fui pegando mais idade deixei de passar por dentro da pedreira. Acabaram com o campo, o Planalto desapareceu, findou a magia. E também não mais vi D'Angola que, dizem, passara a jogar em vários outros times espalhados pela cidade. Tempos depois soube que fora assassinado lá pelos lados do Santo André, bairro distante do nosso, e que tinha uma certa má fama, naquele tempo. Quando se queria falar de algo ruim e fascinante, dizia-se que ocorrera no Santo André.

Por isso, para mim, não foi surpresa saber que o final se dera no Santo André.

Nem que violenta a morte de D'Angola. D'Angola, O da Faca na Meia.

Pois que, podem notar, os muitos humanos costumam sempre ter morte violenta.

(Cauterizai o meu umbigo, 1986.)

 

 

 

Canto das três raças

 

Ninguém ouviu

um soluçar de dor

 

No canto do Brasil

um lamento triste sempre ecoou desde que o índio guerreiro

foi pro cativeiro

e de lá cantou

 

Negro entoou

um canto de revolta pelos ares

do Quilombo dos Palmares

onde se refugiou

 

Fora a luta dos Inconfidentes

pela quebra das correntes

nada adiantou

 

E de guerra em paz, de paz em guerra

todo povo desta terra

quando pode cantar,

canta de dor- ô ô ô ô ô...

 

E ecoa noite e dia

é ensurdecedor

Ai, mas que agonia

o canto do trabalhador

 

Esse canto que devia

ser um canto de alegria

soa apenas como um soluçar

de dor

 

 

(Mauro Duarte - Paulo César Pinheiro)

 

 

 

” É, mas a vida é um troço muito gozado. Pensa bem, eu tinha vergonha do pai, vê se pode. Ele sempre foi muito envolvido com música, com pagode, e minha mãe, às vezes, achava até bom que me levasse com ele – dava folga no serviço de casa -, e onde quer que fosse, eu tava junto, me deixava num canto e começava a beber com os amigos, a tocar, e eu, no começo, até que gostava, mas depois aquilo ali ia me enchendo o saco, vinha um guaraná, eu bebia até deixar pelo meio, e aqueles tira-gostos de boteco.. você vê, uma criança, virando dia e noite ...

E não tocava nada, tinha uns meninos que até tiravam alguma coisa no violão, eu nada. De vez em quando me empolgava, pegava um pandeiro que tivesse sobrando ou um surdo. Mas o normal não era fazer isso não, era ficar por lá, invocado. E se pressentia alguém me olhando bater, balançando a cabeça - positivo -, aí mesmo é que eu parava de vez... "

 

".. na volta é que era o problema. A turma voltava bêbada – bêbada mesmo não, meio alegre, com os instrumentos no ombro, cantarolando alguma composição que tinham feito no pagode, ou alguma outra conhecida ... menos eu, que chegava até a atravessar para a outra calçada, fingindo que não estava com eles. E se alguém perguntava, curioso - de noite, um menino andando sozinho de mão no bolso -, eu dizia que não, não sabia quem eram.

 

Agora vê, como é que pode ... "

 

“.... o pessoal diz que sou revoltado. É, quando eu saio do serviço no horário de expediente e venho tomar minhas cervejinhas, de vez em quando, bater um lero com a rapaziada do boteco. Fico danado. Lá no Processamento do BNH sou o cara que mais quebra galhos, é, se tem um programa novo para desenvolver, eles vêm é me procurar. Aí o cara fala comigo no telefone, quando chega e vê um crioulo com os outros brancos vai logo no branco, ele é que é o analista. Pois é, o analista só pode ser branco. Isso já me invoca. Ai, trabalho em cima, faço o troço - porque sou bom nestas coisas, de descobrir, sempre fui -, depois deixo de lado. Vem um cara, desenvolve – porque nesse negócio de computação o difícil é começar - e em pouco tempo já é chefe de Divisão, de Departamento ... Por isso que eu falo com a Lilian, ela diz que não, que sou paranóico ... Paranóico nada ... É, paranóicos são eles...”

 

”... lembro na minha época de guri, estudava naquela escola pública ali no Largo do Machado. Naquele tempo, depois da terceira série eles dividiam os meninos, tinha os adiantados, em que o ensino era melhor, depois podia até fazer prova pros colégios do Estado, que eram bons, eram bons, e a turma dos atrasados. Pois quando fizeram a lista, eu fiquei de fora. Aí um garoto - branco ele – branco, agora vê, pois é – também, quase não tinha garoto preto nesta turma dos adiantados -, que tinha sido meu coleguinha do ano anterior, me encontrava sempre na saída –, perguntou porque eu tinha ficado nos atrasados. Não vira meu nome na lista, eu que sempre tivera notas melhores que ele. Falei que não sabia. Aí, logo nos primeiros meses de aula, ele veio de novo - olha só o que é uma criança, hein! -, 'porra, Mauro, você que tem um garoto na minha turma que nunca aparece?, e o nome dele é o mesmo seu - Mauro Duarte Filho'. Aí eu fui falar com minha professora e ela disse que ia ver. Mas não viu nada. Um dia contei o caso em casa. Minha mãe foi lá e meu nome estava mesmo na caderneta de presença. Passei pra turma dos adiantados já quase no meio do ano. Pois é, mas não é porque eu era preto? Esse garoto até hoje é meu amigo, ele mora ali na Jorge Rudge, essa rua aqui atrás -, e a gente se encontra muito. Agora é médico, mas peça 'muito fina."

 

“. . . estou treinando cavaquinho. Violão eu sempre toquei, teve um tempo que deixei de lado, mas volto sempre. Aliás, conheci a Lilian num samba, ela gosta muito, mas com este negócio de criança recém-nascida, atrapalha, sabe? Tenho ido sozinho. Qualquer dia boto ele no pagode também. Mas esse negócio de cavaquinho, descobri que é mais fácil de tocar até do que violão, é afinado em mi, e pra solar fica mais fácil, tem o braço menor. Mas eu não queria não, é que nestas rodas de samba todo mundo toca a violão mas cavaquinho, banjo, sempre só tem um. Aí, vem um cara, começa a tocar, e quando o negócio tá ficando bom, ele vai embora. Ficam dois que tocam violão e ninguém pro cavaquinho. Foi por isso que resolvi aprender. É fácil, é, é fácil. Estou até desenvolvendo um método, baseado, em cifras, você vai ver, o cara não precisa saber música nem nada. É só saber tocar violão que passa pro cavaquinho rapidinho, rapidinho ... "

 

“... meu pai sempre quis que eu aprendesse música. Mas não forçava: eu falava pra ele, como é que vou aprender música, o senhor não quer que eu estude na escola? Estou estudando. Pra tirar notas boas não posso ficar na rua até tarde da noite, indo lá pra Deus me livre todo sábado. Olha, outra coisa, tô cansado de ficar bebendo guaraná - faz mal pros dentes – e cigarro me incomoda. Todos os seus amigos fumam pra cacete! ... "

 

“... aí ele desistiu. Viu que eu não era mesmo do ramo.” Agora vê, né? Tô pagando a língua."

 

Esse negócio de ser casado com mulher branca é a maior complicação que pode ter. A Lilian diz que é impressão minha, mas não é. Sou muito observador. O branco, quando vê a gente junto, já olha com raiva. E o preto também não olha muito satisfeito. E se for um preto destes linha dura, de Movimento, já quer logo uma explicação, saber se você é rico e ela tesa ... é foda!”

 

“... dizem que o problema é social. Mas não é, pega dois mendigos, um preto e um branco. Bota nos dois uma roupa boa, barbeia, e leva eles para ser garçom na Zona Sul. Se nenhum dos dois souber fazer nada e só tiver uma vaga. Advinha quem entra. O preto vai ser mendigo de novo. Devia de ter uma lei que...”

 

"Não, índio é outra história: Índio é inteligente, ele saca logo que este negócio de civilização é besteira. Então prefere morrer logo. Eu entendo assim, cara, índio já viu que isto aqui não dá. Que se não pode viver como sempre viveu - sei, telefone, rádio, televisão, geladeira, é muito bom, mas nem todo mundo curte isso. Gosta de ver futebol? Gosta? mas o que você quer mesmo é jogar, não é não? Ver na televisão só em último caso. Então, o índio prefere é estar dentro do campo ... "

 

"Sabe que aprendi a tocar contrabaixo?... é porque falta sempre um contrabaixo...? Não, he, he, é porque acho que o contrabaixo dá uma marcação forte, é assim como o coração da música...

 

 

Por isso que já notei, em toda orquestra africana o contrabaixo vem na frente. Ele substitui o surdo. Quando a gente escuta dá pra ver logo. E, música africana tem muito disto . . .

 

Outro dia eu estava ouvindo um samba, que por sinal é do meu pai, veja a coincidência... é, eu sou filho do Mauro Duarte, todo mundo sabe - todo mundo do samba -, quando passo na rua um amigo dele antigo lembra de mim e quer logo que a gente tome uma cerveja ... mas aí, eu tava notando a cadência: tum, tum, tum, porque é um samba mais cadenciado, mais triste ... você sabe que o samba pode ter mais de mil batidas diferentes?, é, não é brincadeira não, e meu pai sabia todas. Mas nesse dia eu tava com meu filho no braço, apertado no peito, e o coraçãozinho dele batia daquele jeito, na mesma cadência do contrabaixo. . . tum, tum, tum ... Parece até que tá no sangue...

 

Eu vou esperar mais um pouco, quando ele estiver mais grandinho já começo a levar pro pagode. Sei que ele vai se amarrar... "

 

 

(Flor de sangue, 1990.)

 

Cauterizai o meu umbigo, Oh, mãe!

 

 

"Vejo ao longe um dragão. As narinas em fogo, a bocarra aberta; o rabo longo, coriáceo, como fosse um jacaré. Logo abaixo uma larga lesma branca. Encimada pelos mastros carbonizados das caravelas lusitanas...

Meu navio se aproxima da praia-lesma.

Sim, era uma praia, as altas dunas espalhando sua claridade brilhante sobre o oceano, espelho azul. Coqueiros e cajueiros, eis os mastros e velas entrevistos. Ao alto o dragão-nuvem se esfumaçara... Algumas miragens, creiamos; podem se tomar estranhamente reais ... “

 

 

Foi quando Limpunda chamou-me para comer em sua casa. Afirmou que sua mulher gostaria de conhecer-me, que há muitos dias todos aguardavam minha visita ... Tanto falou que resolvi ir.

Era ele extremamente alto, e quando lhe falei que sua figura destoava dali, daquela região, respondeu-me que era mongo, e todos os bamongos eram altos e fortes. Lembrei-lhe que Wyombo também era mongo e, no entanto, bem pequenininho. Deu uma resposta qualquer, que não convenceu.

Viemos à sua casa.

A mulher não estava, e nem havia almoço preparado.

Procurou uma garrafa de uísque que, dizia, deixara sobre a cômoda. Não a encontrou. Ficou ali a remexer as gavetas. Pouco à vontade, meio deslocado. Pareceu-me que há semanas não entrava naquele lugar. Soube depois que aquela casa era da concubina, que nem sabia da minha existência e nem fora informada da visita.

Singular indivíduo, esse Limpunda.

Falava alto, lançando perdigotos, literalmente cuspindo sobre o interlocutor. Estava sempre excitado, permanentemente com um problema familiar grave. As pernas longas se mexendo inquietas, mal cabendo nos sofás e cadeiras.

Nem sinal da comida E a bebida não vinha. Nada de movimento de panelas na cozinha. Em pouco chegou Wyombo, também convidado de limpunda. Terminamos os dois por nos cotizarmos e mandamos um garoto à venda comprar cerveja.

Limpunda apontou para uma arma pendurada na parede.

Algo como se fosse uma espada, o cabo de madeira. Possuía na ponta da lâmina, cuja maior porção era serrilhada, um grande dente pontudo, oposto às serras, à feição de uma machadinha de folha estreita. Perguntei-lhe de quem era aquilo. "Pertenceu aos meus ancestrais" - respondeu. "Nas guerras que fizemos, há vários séculos, vencemos muitas tribos, fizemos numerosos escravos e expulsamos vários inimigos para o litoral. Só restamos aqui nós, os mais fortes, os mais bravos, os mais inteligentes."

Olhei-o curioso, a ver se realmente acreditava no que estava dizendo. Meu pensamento, em volutas irrefreadas, retornou no tempo. Fiquei pensando de onde poderia ter vindo aqueIa poderosa maça de guerra ...

Dizem que já no século XV os grandes fornos do Mali produziam aço que rivalizavam, em dutibilidade e dureza, com aqueles fabricados, na mesma época, em Toledo e Milão.

Por esse tempo Diogo Cão subia o Oceano Atlântico, dobrava o Cabo das Tormentas, e fincava a bandeira portuguesa na foz do rio ao qual chamou Nzadi em suas anotações. Quatro séculos depois, o belga Stanley, aportando no mesmo local, arrancou a bandeira portuguesa e rebatizou o rio de Rio Congo. Iludido, dizem, pela resposta nativa à sua pergunta: "qual é o nome deste rio'!" Responderam: "Nzadi Ne Kongo" (este rio pertence ao rei do Kongo).

Mais um século se passou até que o rio e o país correspondente recebessem de volta uma variação de nome primitivos: Zaire

Stanley subiu até Kissangani que, na época, denominou Thysville e, próximo ao "Lac Edouard" (hoje lago Idi Amim Dada), encontrou Livingstone, o célebre pesquisador inglês, que chegava de cima, vindo pelo Egito.

É uma história simples e recente, esta do Zaire, mas dentro dela repousam todos os enigmas da humanidade.

 

"Sim, lembro-me bem, Limpunda. Éramos felizes. Éramos um povo guerreiro, e também de artistas, na paz. Nossas guerras eram ferozes, sangrentas, e faziam muitos prisioneiros, que se tornavam escravos. Sim, Limpunda! Vários de vocês, bamongos, foram nossos servos. E quando o potentado, nosso sábio e bravo chefe morria; de velhice, e sempre muito velho, que muitas vezes fomos vencedores; seus servos eram também enterrados - vivos - junto a ele e a toda sua fortuna. Também costumávamos fazê-Io partir acompanhado de suas mulheres. Mas a estas dávamos morte digna antes de serem recolhidas à tumba. Pois eram de nossa própria raça e, como vocês, também nos julgávamos superiores, os Homens, os Ndombe. Mas as próprias mulheres recusavam a indulgência da morte. Caminhavam serenas para debaixo da terra. Enquanto vocês, Limpunda, lembro-me, choramingavam, pediam clemência, apegavam-se às suas vidas fracas, sem valor. Às vezes os perdoávamos. E não os enterrávamos, e ninguém mais os queria como servos que, sabíamos, a fraqueza se transmite de pessoa a pessoa. Quando perdemos a guerra, Limpunda, lembro-me ainda - Diogo Cão já era um velho, e se arrastava em Lisbona, esmolando em nome de glórias passadas -, pensei que seríamos tratados da mesma forma. Escolhi um amo jovem, pois pensei, quando ele morrer eu também serei já um velho, e tudo farei para que não adoeça. Então, ajoelhei-me, quebrei minha lança, entreguei-lhe minha maça de guerra; sim!; ESTA, LIMPUNDA, QUE AGORA ME ESFREGAS À FACE COMO TUA! E não pude compreender quando amarraram-nos cangas ao pescoço, e ajojados como bois fomos sendo tangidos através da floresta, em direção ao litoral. Pensávamos que era porque vocês nunca tinham ganho uma guerra. E não nos davam comida. E não podíamos caçar, pois estávamos presos. E, Limpunda, sempre fomos melhores caçadores que teu povo. Olhávamos, orgulhosos, o que era tua comida. Preás, macacos; boa, a lerda serpente do rio. Onde estavam as carnes nobres? das gazelas, da deliciosa barriga de Gimla, O jacaré?, O tutano das patas dos elefantes? Tangeram-nos até a praia. Escutavam o grito irado dos brancos, mantendo a cabeça baixa. Ficamos estarrecidos. Então os brancos te gritavam aos ouvidos? Na tua terra? Compreendemos.Compreendemos quando vocês passaram a nos dar a melhor comida, a água decantada, a mais pura. Compreendemos quando o branco lhes deu miçangas e adereços. E por que estávamos no cercado. Éramos como porcos. Sim, como porcos, e como porcos tínhamos que ser engordados. Pois é, Limpunda, compreendemos: estávamos sendo vendidos. Muitos começaram a se lamentar, a bater com a cabeça na paliçada; as mulheres a escavar o chão, procurando enfiar a cabeça, se sufocarem e aos filhos pequenos.

Olhei-te nos olhos. O tempo todo olhei-te nos olhos. Bamongo, hein? Eu voltarei, bamongo!"

 

 

Wyombo desistiu da comida. Preparava-se já para ir embora quando chegou Séia. Exatamente, o simpático Séia.

Ao ser informado de que discutíamos sobre a maça de guerra dos mongo abriu um sorriso sardônico:

Ih!, precisa ver na minha terra; na minha terra a gente tem na parede é pedaço de gente, é, pedaço de gente; mão, dedos qual é minha tribo? - Sou Malele, Ma-Ie-Ie. Vê estas duas marcas na minha testa? Todos na minha tribo a têm; é, Rodrigues, "je suis malele". Ah! Ah! Ah! Limpunda, conheço vocês, os mongo. Sabe o que fazemos na nossa tribo? Quando um chefe começa a dar mole pros brancos, a gente deixa. Dá um tempo. Vai ano entra ano. O branco roubando da gente; a gente quieto. O branco bate na gente; tudo bem. A gente foge, o chefe manda buscar de volta e dá porrada. A coisa vai. Até que a vingança amadurece:

A tarde caindo, dois caras, ar inocente, vêm convidar o chefe para a festa rio abaixo, no Village. Então, pela noite morta, a lua brilhando pálida, descendo próximo à margem ladeada de árvores grossas e cipós, lá vem o barco.

O chefe gordo, barrigudo, cabeceando, olhos semicerrados a antegozar a festa que vem.

Os dois ali, remando para o chefe na noite clara: plaf, pIaf. .. plaf, plaf ...

Aí, chega no Village. Todo mundo reunido, baixam a cabeça cumprimentando' o chefe. Vamos todos para o salão. As moças dançando, o chefe assentado ao centro da sala. Bêbado e comendo, aguardando o clímax da festa.

Súbito se levanta um, pede licença, avança, tira a camisa e diz para o chefe:

- Tá vendo estas marcas ,em minhas costas? Está? Que o seu amigo branco me fez com sua autorização?

- Bem ...

Outro:

- Sabe por que estou mancando? Olha o meu tornozelo.

Me cortaram o tendão para que eu não fugisse. Trabalho mancando, imagina como sofro, o retorno à cubata para mim é mais longo. À noite sonho que estou a correr pelos campos. E acordo, o tornozelo doendo, doendo. Acha certo isso, Ó Aquele Que Nunca Teve Compaixão?

O chefe entende, enfim, o objetivo da festa. Às vezes reclamam, choram, pedem pela vida. Prometem regenerar-se. Outras vezes pedem apenas mais um copo de vinho de palmeira.

O resultado é sempre o mesmo.

Um ou dois homens se levantam. Quase sempre os da sua guarda, os mais leais: aqueles nos quais depositou toda a sua confiança. Puxam o facão e avançam. As mulheres começam a gritar, a bater com os punhos no chão. As crianças a cantar e pular.

Decepam-lhe a cabeça, os membros ... Os cozinheiros se adiantam.

É, é, Rodrigues. Preparam-no igual a um leitão. Com azeite de dendê, pimentão, tomate. E cada um come um pedacinho, por menor que seja. As crianças recebem os dedos dos pés, para brincar; ninguém gosta de comer os dedos, muito osso e pouca carne.

Costumam fazer isto com o branco também, quando este se mostra arrogante, metido a bravo, a chamar todo mundo de ignorante e preguiçoso. A gente fica ali, olhando, pensando: "vai, continua assim que nós vamos, ó! te comer!. .. ".

Finalmente, o que matou, o que deu a traulitada inicial, tem direito de ficar com a mão direita do chefe. Embalsama ela e pendura em casa, no meio da parede da sala.

Até hoje, na minha cidade, Kissangani, quando vem um branco na casa da gente propor negócio - que eles vêm mansos no princípio, depois é que acham que são donos, da terra e das pessoas -, levamos ele para a sala e mostramos a mão na parede; que depois de um tempo ninguém sabe se é de branco ou se é de preto. Faz-se o negócio, leva-se adiante, mas antes mostramos pra ele: "olha aí, Ó, se fizer sacanagem sua mão vai pra parede".

Eles fingem que não sabem, sorriem contrafeitos, mas lá em Kissangani, Limpunda, não tem desse negócio não. Cadê a cerveja? Traz mais aí para a gente. E o uísque que você ganhou dos americanos? O quê? Já acabou? Olha, Limpunda (e sorri candidamente, um sorriso branca, branco. Este Séia é um doce), cuidado com esta sua mão direita ...

 

"Sim, Limpunda. Eu não conseguia compreender o código dos Brancos. Alguns deles havia que também trabalhavam como escravos. Mas mesmo assim não se sentiam iguais a nós. Tratavam-nos como se fôssemos animais. E os outros brancos também não os tratavam como se fossem gente. Tinham oportunidade de fugir e não fugiam. Nas paradas, nos vários portos do litoral, onde novas levas de escravos africanos entravam, eles podiam se internar na floresta e não o faziam. Auto-escravos, é o que eram. Ficavam na escravidão por própria escolha.

O mar nos amedronta. Tanto tempo sobre as águas, os monstros marinhos, o final do mundo, onde estariam? Muitos dos nossos pularam no mar, ou esfacelaram as cabeças contra as paredes; mulheres estrangulavam os próprios filhos ao temor de um sofrimento maior: O Desconhecido.

Eu não compreendia. E ainda hoje perscruto-lhes os' olhos e as faces. Por que precisam de alguém que lhes adestre e leve o cão para as caçadas, se o limpar e conduzir a arma também fazem parte do disparo [mal? Por que seus olhos nos olhavam sempre com ódio, se nada lhes fizéramos a não ser perder uma guerra, que nem contra eles fora? E por que seu sono era cheio de remorsos, se vencera uma guerra em nome de Deus e do seu Rei? que, diziam, era justo e bom? E cheguei do outro lado da terra cheio de confusões.

Por que não podia um homem sustentar várias mulheres, e, ao contrário, tinham elas que rolar pelas ruas vendendo seus corpos e sendo humilhadas, tendo chamado de sórdido o comércio do amor? E o pão e o teto davam para todos. E a maioria dormia ao relento e com fome.

Ah!, Limpunda, para que mundo me enviaste!"

 

 

Após a narrativa da Séia permanecemos, eu e Wyombo, na esperança de que Limpunda se mancasse e algo de sólido pintasse para comer.

Perguntei-Ihes sobre os malês, que região habitavam. No meu país, disse-lhes, deixaram sólida tradição histórica e cultural. Excelentes artesãos, muitos deles se notabilizaram Como ferreiros, seleiros, alfaiates e, mais tarde, até como advogados. E tenazes guerreiros. Após a rebelião de 1835, na Bahia, quase um terço da população malê do estado foi dizimada. A política chegava num reduto de negros que, apesar dos massacres que estavam ocorrendo, ainda se julgava vitorioso: as mulheres, homens e crianças lá estavam cantando e dançando, comemorando a liberdade recém-conquistada. Quando começavam a prender os cabeças o pau quebrava; todos, indistintamente, entravam numa luta de morte. Houve choques em que morreram mais de mil pessoas, a maioria mulheres e crianças, batalhas de uma guerra obscura, de parâmetros indefinidos, de parte a parte. Um massacre selvagem, sem lei, sem crônica.

- Não sabiam, Wyombo, Séia ou Limpunda, onde estaria hoje o povo malê?

Não sabiam.

- Talvez no Kivu - aventava Séia -, lá estiveram os mulçumanos.

- Não - era Wyombo -. Lá estão também os Rutu, que são de origem Bantu. Pois não fazem no Brasil esculturas de madeira? Escultores, trabalhadores em madeira, são os Angola e os Rutu. E não têm vocês uma dança de saltar e bater com um porrete no chão e no do adversário, cantando e pulando? Isso não é do Leste, é do Sudeste africano, deve ser Bantu _ refletia judiciosamente.

 

Ah! Limpunda, -quanta dificuldade tive para sobreviver. ver. Baixei a cabeça, olhei de soslaio. Comi os restos do porco, com o feijão que nascia entre os cafezais. Plantei o milho escondido, vivi de saka-saka, a folha da mandioca brava.

Quantas vezes eu divertia o seu amigo branco, cantando histórias, contando sons e toadas.

Anos e anos se passaram, Limpunda, até que consegui descobrir quem eram vocês; você e o seu amigo branco. Centenas de anos se passaram, Limpunda. Centenas de braços, centenas de ventres se abriram, e eu surgi, afinal. Cruzei livros e máquinas, ventos e pensamentos, mares e ódios, amores e covardias. Mas aqui estou, Limpunda, a ouvir suas baboseiras. Agora eu a quero, Limpunda. Quero de volta minha maça de guerra, roubada ao tempo de Diogo Cão!'"

 

Passou um garoto, filho de Limpunda, Séia puxou-o pelos ombros, arrastou-o para si, através dos sofás: "Vem cá, guri! Cadê a garrafa de uísque? Onde seu pai a escondeu?" O menino se escafedeu. Voltou com a garrafa aberta, segura com cuidado pelas duas mãos. Séia pegou-a satisfeito, "traga os copos!", e pra mim, num meio sorriso, "viu só? He!, He! ".

- Guri! - ainda Séia.

- Sim senhor.

- Vai lá e diz pra sua mãe que Rodrigues, o "Noir Americain", chegou. Que pode tirar a comida do forno, esquentar e servir. E manda ela trazer mulheres para cá, que isto aqui está muito triste.

Limpunda sorriu, contrafeito. Não reclamou, porém.

A mulher veio, perguntou se era para trazer também as cervejas da geladeira.

"Ah! Limpunda, continuas o mesmo."

Só para provocar, engrenei com Séia nosso plano de comer o capataz americano, amigo de Limpunda, que lhe fizera presente da garrafa de uísque.

Limpunda começou a babar, nervoso. Ficava assim, quando preocupado. Parece que perdia o controle da saliva.

- É melhor nem brincar com isso - ponderou. - Depois o cara aparece morto e vão dizer que foi a gente.

- Não vai aparecer - interveio Séia, com ar sério. Nós vamos comer ele todinho.

Fomos para a mesa. Perguntei a Limpunda se queria vender-me aquela maça de guerra, herança guerreira dos seus antepassados. Ficou de pensar.

Ao fim do almoço perguntou-me: quanto? - Três mil zaires.

- Cinco mil!

- Quatro mil.

- Ok.

 

Saí meio bêbado da sua casa, sobraçando a espada. Agora, olhando-a melhor, parecia-me mais uma foice.

Afixá-Ia-ia na sala do meu apartamento, no Rio.

Porém, à medida que os dias foram-se passando, cada vez que eu olhava para aquela tramôndega sentia-me, mais e mais, distanciado da pulsão inicial.

Na véspera da minha volta ao Brasil, chegando meio de porre, tropecei e caí com o joelho na parte aguda da machadinha. A lesão foi pequena, que a ponta já estava um pouco rombuda. Ainda meio puto da vida tentei colocá-Ia na mala. Não cabia. Parecia-me agora um troféu sem tanto valor quanto o que eu lhe atribuíra até a compra.

Expliquei então a mim mesmo que um porrete na parede não é fundamental que se mantenha acesa uma chama. Não deve ser. Não pode ser:

E esqueci-a no quarto do alojamento, ao partir apressado para pegar o avião que me conduziria a Bruxelas.

(Sepetiba 24.11.84.

Cauterizai o meu umbigo, 1986.)

 

O tradutor de poesia

 

"E eu desci e fui ao boteco. Que hora é essa, que meu coração enfraquece, a cabeça zune, o pé arde, a frieira fica mole? Vou em busca de Cavaco. E de Belinho.

Joga pra lá, joga pra cá, joga pra lá, que sobe sem cair e vem a embaixada, vai cair, não caiu, e se cair eu envergonho, solta a bola, Belinho. Tá amarrada, ah! ah! ah!, eu vou é beber. Esse Belinho...

O barco atracado balança pra lá, balança pra cá, as vasilhas estão no bidê, pergunto ou não a Belinho, se posso mijar no bidê. Se Cavaco vier vai beber esta água, que é água do mar, mas Cavaco não vai saber, que ele gosta de beber de tudo. Se pergunto a Belinho ele não vai responder, que para Belinho toda água é água. Mas sujou as vasilha. Não sujou, que toda a água é água, vai Belinho dizer, quando Cavaco vier beber a água das vasilha e notar que tá salgada ... Ah, mas vou mijar que tou apertado e o mar é grande, o burrico Chiquinho eu me vejo, me olhando pela janela do catamarã. Ah! a Baía é grande, a Bahia é grande.

Foi Belinho que mandou eu desdizer o mandado, e eu desdigo se não agora a barriga de Sara vai inchar, vai inchar. Eu estava no mato, a roer minha grama, quando veio roçando no pé da moita, quando veio chegando Bugíu, e Sara. Bugíu tocando como quem não quer nada, a anca de Sara, de cara amarra, bem sonsa essa Sara, e bem sossegada. Ousado!, pensei, fingi que roía mas fiquei assuntando, quando ela encostou no barranco da cepa vi logo a sujeirada que tava pra vir. Rinchei precavido, Bugíu não ligou - amanhã eu conto tudo pra Belinho -, e continuou abraçado com a anca de Sara, encostado no barranco. Aí, sua manga de guapa saiu dos guardados e olhei para Sara que azougava quietinha, abanando o rabinho, os olho rastero, fingindo roer, que ela bem que me via, e teve vergonha, mas não regougou, que pra não espantar a manjuba, de Paco Bugíu, que encostava azeitava na gruta manrola, já com a gota serena, castanha de Sara. Vi que Sara ganhou primeiro, não adianta esconder, dizer que não é dessas, não. Vi, vi sim. A pata da frente tremeu um pouquinho, encurvou no joelho, e aí ela andou toda pra trás, devagar, arriscando derrubar Bugíu, encarapitado na sua anca, já suado e tremelicante. Parecia que ia sair a banana fora da casca, mas Sara apertou todos contra o barranco, que não ia sair, a hora era dela. Depois veio Bugíu, começou a tremer como quem tá de mal maior, fez depressa como quem tá com pressa e descarregou. Ficou ali um tempão, a descansar, espremido no barranco. Antes de ir beijou Sara no pescoço, e ela correspondeu, sonsa. Me olhando de soslaio. Pensa que não vou contar. Mas amanhã, de manhã, Belinho vai saber de tudo."

 

A primeira vez que o vi morava num barco, num catamarã. E estava sempre no boteco do Valdeque, em frente. Uma cachaça, uma cerveja, uma cachaça, uma cerveja, o corpo magro e alto, dente de ouro. Branco, branco, mesmo anos e anos de sol nas costas nuas. Perguntei-lhe se pescava. Disse que não. As mãos grossas, a corrente no pescoço, o ar franco e sadio. E perguntei-lhe o nome. E o que fazia. Eu tudo faço, respondeu. Eu sou Belinho, e por ofício Tradutor de Poesia.

 

– He! He!, Tradutor de Poesia?

– E dá dinheiro isso?

– Dá, dá o suficiente, principalmente pelas poesias que não traduzo.

 

“Senti o Braço de Adamastor no meu ombro. Nunca tinha sentido antes a pele de Adamastor. Lisa e amiga, o carinho da Adamastor. Fechei os olhos e deixei-me ficar a sentir o calor de Adamastor. Vamo a pesca, Anilzo? Hoje não, que tô derreado. Que derreo que nada, vamo sair por aí, cavar umas minhoca. O braço de Adamastor permanecia. Passado no ombro, agora o antebraço me vem ao cangote. E eu derreado, esfraquejado, aquela canseira nas pernas, vontade de dormir e não mais acordar. Parecia maleita, o principinho dela. Mas foi. Que Mastor era mais forte. A pescar mandi, que engole as minhoca. Foi aí, doutor, foi assim que começaram os meus sonhos.

Então, quando eu acordei não acordei. Estava tudo escuro em volta. E um calor danado. Tentei abrir os olhos mas não dava. Parecia que tinha um visgo cobrindo. Fiz força para pular da cama, os movimentos ficaram parados, as pernas presas, não mexiam, amarradas no corpo. E os braços: o mesmo das pernas. Tentei rolar para o lado, a ver se caindo acordava, e acordando está resolvido o problema. Não rolava. Um suor quente molhava-me o corpo. Gritei: Belinho!, me salva, me acorda. Aguardei. Gritei de novo: Belinho! Belinho! Nada. Sentia-me sufocar. O ar me faltava. Forcejei para sair do poço escuro em que me encontrava. Forcei com os ombros, com as pernas - lisas - que não existiam. Com o pescoço, que pensava estar no mesmo lugar. Com o nariz. Ah! Com o nariz. Aí consegui. Meu nariz me puxava, me empurrava. Furava o caminho, coleava, arrastando o que me cobria, que me apertava, me confrangia: terra, terra úmida. Rodei o nariz para reconhecer meu corpo. Na sua ponta meus olhos viscosos se voltaram e viram. Meu corpo era agora todo liso, sem braços, nem pernas. Marrom acastanhado, anéis brancos nas duas pontas. Vi, atemorizado, em que me tomara: numa minhoca. Numa minhoca. Daquelas grandes, de pescar. Meu estômago se revirou de nojo. Vomitei tudo o que comera na noite anterior: escorreu um monte de lama. Uma torrente tão grande que meu corpo, agoniado, coleou, e os dois Iados se encontraram contorcentes."

O caminhar rastejante, a roer torrões de terra, a escorrer senovente, sinuoso, persistia. Pelos meandros da terra, já sem braços e sem pernas, Anilzo sofria o seu sofrer. E todas as noites o mesmo suplício. Passou a olhar a cama com temor. E o cobertor, qual túnica de Nesso, o fitava, já insone, tentadoramente. Teve medo da loucura. E decidiu não pagar a Belinho o dízimo do mês, pois, sabia, seu sonho seria o traduzido no Tablado de Misericórdia.

 

 

O Tablado de Misericórdia fora resto da campanha de Teófilo, Filó, o Deputado. Mandara·o construir. Falara bastante. Se elegera. Fora·se. Sabia-se então que estava abandonado

 

 

A tradução de poesia era algo que não se dava. Vinha Belinho. Subia no Tablado. E se calava. E todo mundo reunido. Final de mês. Dinheirinho vasqueiro. Esperavam a Tradução que não vinha. Narizes ao alto. Tudo mudo. Belinho e a multidão.

 

 

Começava então Belinho a chamar os nomes. E encostado ao moirão. O Tablado já velho. Chamou Zezé de Sá Joana. Que veio, de cabeça baixa, por entre o povaréu, e pagou. As notas sujas, encardidas, mochas, passaram para o bolso implacável de Belinho. E veio Nunuca, e Luiz Gatolaim. E Nemésio. Balduína fingia que não era com ela. A multidão prendeu o hálito. Vai ler, vai ler. Belinho vai ler a poesia que Duína cometeu esse mês. Que seria?, tão novinha ela! Mas Duína não quis, foi em casa, desamarrou a fronha e trouxe o dinheiro, economizado há anos. Devia ser poesia grossa, a de Duína. Belinho guardou. E desceu do Tablado. A multidão se dispersou, decepcionada. Nunca pudera Belinho traduzir a poesia que ouvia: da boca do vento, do cheiro das flores, da água do rio, da pedra, da carne sofrida, do povo que era seu.

O mar jogava, para um lado e para outro, frio o pau do saveiro. O pau-guia. De proa.

Nezinho, enregelado, via se desvanecer em medo o orgulho de ter saído com o pai, para a pesca. Que nunca lhe dera trela, o pai. A olhar de soslaio, a fazer judiação por qualquer tunada. Chegou a pensar que o painho não lhe gostava. Por muito branco?, como a mãe? Ou pelas sem-graceza dos da rua, que lhe dizia ter nascido das liberdades do vizinho quando o pai em alto-mar? Que eu não tenho culpa. Se não é meu pai, que me dê um, que em tendo dois eu passo a ter nada? E o frio já lhe roía os ossos. Painho, a terra envem? Sim, meu filho, vem perto. Tem blusa não, painho? Tem não, que você não trouxe a sua, onde se viu vir pro mar sem agasalho? Que esse frio mata homem, quanto mais pirralho.

Sabia não, painho, que é a primeira vez que venho ao mar, para ver o espada, o braço forte do pai, o balanço das ondas, as mulhé na praia, esperando os peixe, esperando seus home, tá frio, painho, tem gasalho não?

– Não.

 

 

O corpo mirrado de Nezinho foi ficando cada vez mais mirrado. De tosse, tosse, tosse, escarro, carro, rro, ro... E Tuíca a olhar, a desejar que o menino desapareça, o estigma da desconfiança. A cara de Neca, a lhe olhar desaforada, dia após dia, ano após ano.

O dinheiro que Belinho extorquia só dava pro mês. Era pouco de cada, gente pobre, sedenta de medo de poesia. E seu trabalho era árduo. A Tradução de Poesia. Ficava ali, Belinho, à boca do catamarã, a tomar seu parati, a engolir seu traçado, ima lambreta cozida, o sururu da sobra dos outros. E a trabalhar duro, de manhã à noite. A ouvir o vento. A escutar as flores. A ler o que os animais traziam no rosto. A perscrutar as pedras. Acariciando as águas. Trabalho duro o de Belinho: o Tradutor de Poesia.

Foi ali que o burrico Chiquinho se chegou. Como à procura de Cavaco, seu amo. Era sempre ali, que vinha Chiquinho, ao cair da tarde. Esperar que Cavaco, já bem trolado, lhe caísse ao lombo. Voltavam para casa, cabeceando ambos. Burrico e dono. Gostava Belinho de prosar com Chiquinho. Com suas orelhas espetas, com o muxoxo de suas narinas, com o soquear das suas patas.

Naquela tarde ficou sabendo das estrepolias da jega Sara com o sacripanta do Bugíu.

Foi mesmo lá, no catamarã, que o mar lhe trouxe o gemer de Nezinho. E a terra, fendida pela sua tosse seca, chovia para cima, a chorar a chorar. A chorar o choro dos incompreendidos. Dos abandonados. Os elementos vinham repousar sobre o braço veioso de Belinho.

O sonhar de Nilzo era um sonho pesado. Que empurrava as nuvens do céu e as folhas das árvores. Todos os pássaros sabiam. Porque Nilzo virava minhoca de noite. Belinho soube sem querer saber. E entristeceu, que Belinho não queria Nilzo transsformado em minhoca. A ser comido pelos peixes que costumava sempre fisgar. Mas Belinho tinha que cobrar. Era seu ofício, sua profissão: Tradutor de Poesia. E cada um tem a sua sina.

A praça estava superlotada naquela manhã. Belinho estava cansado de não poder traduzir sua poesia. Era seu ofício. E cada um tem o seu destino. E tem que ser seguido. Não queria morrer sem fazer uma tradução. E por isso anunciara. A poesia deste mês não teria paga. Seria traduzida. Que era seu ofício e profissão. Pelo menos uma vez: o tradutor ia traduzir.

Por isso o Tablado de Misericórdia regurgitava. Estavam todos lá, ansiosos: Nunuca, Alício, Pedra, Aniceto de Amora, Anunciata, Bugíu, o jovem mecânico, Zequita, do papo inchado - dizem que de cachaça -, todos, todos lá, que hoje ia ter fuzuê. Não adiantava dinheiro, não tinha paga: a poesia ia ser contada

Belinho chegou, a cara lavada. Andou no Tablado, prum lado e pro outro. Pegou num dos paus do suporte, abaixou-se, pegou mais uma talagada do copo de Eufrasto, que lho deu solícito, ansioso da tradução.

 

 

A coisa saiu de repente, num jato: Nilzo é xibungo! É, Nilzo de Tia Josina.

A multidão esperou muda.

 

E Belinho dizendo: quando a tarde era cinzenta depois do oitavo mandi trunfado, Adamastor se chegou pra Nilzo e lhe pôs a mão no ombro como amigo e camarada Nilzo velho pescador sem vergonha sem mais nada, após a vara tirada se deixou se derreteu. E a pensar só que trem bão este braço esta mão me arrebento de tesão vem cá meu Adamastor meu amigo e meu amor me deixa ver seu minhocão. Minhocão, minhocão.

 

 

 

E o Nilzo foi pra casa que de macho e fudelão se mudou em peça fresca quis pensar e não pensou, quis parar mas só corrreu disse agora eu sou cabrão. Mas não disse para si nem pro filho ou pra Tonica disse ao vento ao pensamento e foi dormir só a pensar. Pensar pensou pisou pegou na minhoca do Adamastor e aí ficou e aí virou e revirou que a minhoca que ele é a minhoca que ele quer se apaixonou pelo que não pode pelo próprio pelo home pelo amigo Adamastor. Não foi ele, nem o sonho, foi o ar que me contou.

 

 

A praça ficou em silêncio. Num canto do Tablado de Misericórdia, agarrado ao pau de soca, lá ficou Anilzo, o Anilzo de Tia Josina, a chorar, a chorar bem baixinho.

 

... e na esteira do corisco, na ressoca do cuitelo, se chegando de mansinho, a jega Sara sexou. Sexou com Bugíu que não sabia que era isso que a jega Sara só queria, se roçando se melando e zurziu para Bugíu, garoto novo sem sabença e Bugíu foi atrás entrou pelo mato com Sarinha, ela vem, vem mansinho, só com a bunda que falava, que uma jega não tem fala, mas Bugíu que já queria entendeu o querer de Sara.

 

Quando a pança de Sarinha começou a reinchar, o reincho que Sara procurava esconder e Jacó apadrinhar mas nasceu corpo de Sara com cabeça de Bugíu, Bugíu sabe, mais Jacó, menos Sara que é jega mas tem culpa que foi ela que trouxe Bugíu pro mato e já começa a amamentar.

 

A multidão correu, foi à casa de Jacó e trouxe a aberração pro Tablado. Que foi mamar, no peito de Sara, com cabeça de Bugíu, dente, olho, cabeça certa, mas o corpo de equada, pata, rabo, coisa errada.

Mas Belinho não contou, que aprendeu da coisa feita pela orelha de' Chiquinho, que estava lá no mato, na noite desta transada.

 

E Sara a espantar moscas, muito sorna, o estrupício a lhe mamar. Ela quieta, mas todos sabendo que ela sabia, e tinha feito porque queria.

 

 

Quero acusar Tuíca, de matar sem dó nem pena, seu filho único, tiquinho, pobre, fraco, coitadinho, que todos chamam Nezinho. Naquela manhã de julho, muito frio, muito gelo, que ninguém vai para amar, escolheu pois este dia, que o filho nasceu fraquinho, com o pulmão já furadinho a olhar o pai com amor, a querer ser forte e grande para um dia enfim pescar. Pois Tuíca home de Neca, por vizinho Sezefredo, sempre achou que seu Netinho, era filho de outro ninho.

Quero deixar bem claro que isso é crime formal, pois de frio e sem comida hoje o anjinho Manoel, por todos chamado Netinho, não morreu foi de bronquite, foi o pai, que é o culpado, de levá-lo no saveiro, sem roupa sem agasalho pra fazer de mal pensado.

 

Trago aqui por testemunha o céu, o mar, o risquinho, da asinha da morena gaivota tão sozinha, que foi que viu, e veio e que me contou. Com todos os efes e erres, desta malinha ação.

A primeira pedra pegou Belinho na fronte. Mas não o derrubou. Nem ele demonstrou qualquer ar de surpresa. E contam - uns dos naquele dia presentes, e sem muitos detalhes, que todos que estiveram no Tablado na tarde fatídica não gostavam de falar no assunto, preferiam sepultá-lo no silêncio comum - que Belinho caiu sorrindo. À pedra seguiram-se as terceiras, uma quarta, em saraivada. E dizem que já sabia, antes do dito ocorrer, não fosse ele Belinho, ledor da natureza, dito por ele tradutor de poesia.

O sangue que escorria dos seus olhos, cabeça, pescoço, vinha pela borda do Tablado, debruçava-se na quina e ficava ali, pingando, pingando. E vieram todos a pisá-lo, a chutar a si e a ele, à carcaça que sorria estrebuchante e maldita.

A última imagem do dia mostrava o sol morrendo, vermelho, a bola amarelada ao fundo do Tablado de Misericórdia. Próximo ao pau de suporte, ao corpo desconjuntado de Belinho, o rabinho balangante de Sara aflorava. Sua cabeça baixou e deu uma longa lambida, o beijo final em Belinho. Belinho: o Tradutor de Poesia.

Adiante a multidão se afastava, compacta, convicta, enchente agônica da justiça justiçada.

Botafogo - 13.02.85

(Flor de sangue, 1990.)

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