Cuti - Textos selecionados

 

Quebranto 

às vezes sou o policial que me suspeito
me peço documentos
e mesmo de posse deles
me prendo
e me dou porrada
 
às vezes sou o porteiro
não me deixando entrar em mim mesmo
a não ser
pela porta de serviço
 
às vezes sou o meu próprio delito
o corpo de jurados
a punição que vem com o veredicto
 
às vezes sou o amor que me viro o rosto
o quebranto
o encosto
a solidão primitiva
que me envolvo no vazio
 
às vezes as migalhas do que sonhei e não comi
outras o bem-te-vi com olhos vidrados
trinando tristezas
 
um dia fui abolição que me lancei de supetão no
                                                         espanto
depois um imperador deposto
a república de conchavos no coração
e em seguida uma constituição
que me promulgo a cada instante
 
também a violência dum impulso
que me ponho do avesso
com acessos de cal e gesso
chego a ser
 
às vezes faço questão de não me ver
e entupido com a visão deles
me sinto a miséria concebida como um eterno
                                                           começo
 
fecho-me o cerco
sendo o gesto que me nego
a pinga que me bebo e me embebedo
o dedo que me aponto
e denuncio
o ponto em que me entrego.
 
às vezes!...

(In: Negroesia, p. 53-54)

 

Lembrança das lições

Sou na infância.

A palavra escravidão vem como um tapa e os olhos de quase todos os moleques da classe estilingam um não sei o quê muito estranho em cima de mim. A professora nem ao menos finge não perceber. Olha-me também. Tento segurar a investida, franzindo a testa e petrificando o olhar. Mas não dá. Um calor me esquenta o rosto e umas lágrimas abaixam-me a cabeça para que ninguém as veja.

A aula continua. E eu detectando risos e fazendo um grande esforço para não lhes dar crédito. Enquanto a professora verifica umas fichas amarelecidas, a sala enche-se de gargalhadas surdas. Ela prossegue. A cada palavra de seu discurso, pressinto uma nova avalanche de insultos contra mim e contra um “eu” mais amplo, que abraça meus iguais na escola e estende-se pelas ruas, envolvendo muitas pessoas, sobretudo meus pais. Ela, após tomar fôlego, recomeça, sempre do mesmo jeito acentuado:

Os negros escravos eram chicoteados... – e dá mais peso à palavra negro e mais peso à palavra escravo! Parece ter um martelo na língua e um pé-de-cabra abrindo-lhe um sarcasmo de canto de boca, de onde me faz caretas um pequeno diabo cariado. Novos suplícios são narrados junto com argumentos entrelaçando-se em grades. Vou mordendo meu lápis, triturando-o.

O clima pegajoso estende-se na sala. O outro garoto negro da classe permanece de cabeça baixa o tempo todo. Nenhuma reação. Uma caverninha humana. Imóvel.

A minha respiração sinto dificultada.

É você, macaco. Você é escravo – cochicha-me um aluno branco.

Sussurro uma vingança para depois e sinto, pela primeira vez, um ódio grande e repentino, metálico, um ódio branco. A professora, em face da minha reação explodindo nas contrações do rosto, pede atenção com forte autoridade. Manuseia outra vez as fichinhas velhas e prossegue:

Os NEGROS ESCRAVOS eram vendidos como CARNE VERDE, peças, desprovidos de qualquer humanidade. Eram humildes e não conheciam a civilização. Vinham porque o Brasil precisava de...? Vejamos quem é que vai responder...

Tremo, encolhido, dolorido diante da possibilidade de ser chamado. Meu coração bate na vertical e meus intestinos se revoltam. Saio apressado da sala, sem pedir licença. Chego à privada em tempo.

Defeco o desespero das entranhas.

Olho as paredes e a porta do cubículo. Estão todas rabiscadas. Procuro espaço. Contenho, com bastante esforço, um choro que me vem insistente para afogar o mundo. Limpo-me com um pedaço de jornal não sujo de todo e fico sentado sobre o vaso branco, pensando, vagando como um prisioneiro perpétuo. A cor do vaso sanitário desperta-me tramas. Primeiro levanto-me e chuto-o com a sola do sapato, depois sou levado pelo vento das imagens, das ideias: “... ponho fogo na escola... veada filha da puta... papel de caderno debaixo da mesa dela... como a bunda de todo branquinho... acendo fósforo... quem me xingar de neguinho... são tudo veado... vou comprar um canivete... dou porrada mesmo!...” E a porta passa a me servir de lousa: “... branco caga no meio...”. Acho graça das coisas que escrevo e continuo.

A agressividade estridente da campainha surpreende-me, então, com meu lápis sem ponta. É o término do período.

Saio. Perambulo sozinho pelas ruas, carregando um mal-estar no meio dos cadernos e um nó de silêncio no peito. No dia seguinte, nada de escola. Vou comer bananas nos vagões da Sorocabana e Joel vem comigo. É meu vizinho, negro também, de outra turma na escola. Entre sutilezas de nosso diálogo, percebo que a “história” da escravidão já espancou mais um por dentro. A gente conversa muito, mas, nesse particular, fica só um silêncio cúmplice, uma bronca em comum, uma solidariedade de quem divide a dor. Não tocamos no assunto, contudo o protesto vem do nosso jeito: falta em cima de falta e nota vermelha, e a gente falsificando os boletins; cartinhas da diretora para os nossos pais, e a gente fazendo assinaturas falsas. As mentiras sempre ao lado da verdade de nosso sentimento de revolta.

Nosso empenho contra os compromissos da escola não dura muito. Alguém vai a nossas casas e dá com a língua nos dentes. Eu e Joel, na volta de um belo passeio, começamos a apanhar no meio da rua. É uma grande surra, de cinta. Fico com vergões nas costas e Joel com uma marca de fivela no rosto para todo o sempre.

A escola de novo. A vigilância aguçada dos nossos pais. Eu e Joel, cada vez mais, com fama de valentes.

Chegamos ao quarto ano com a malandragem bem burilada. Já não damos importância ao fato de nos chamarem pela cor. Entre a molecada, quase sempre fazem isso com medo, medo do Neguinho-eu e do Neguinho-Joel. O medo deles é que nos importa, nos dá alento, ilusão de respeito.

É o dia da festa. O dia do diploma. Nossos pais comparecem, sorriem às professoras, e vamos todos cantar o hino debaixo da bandeira verde, amarela, azul e branca. Verde... Meu pai e minha mãe verdes por um instante... CARNE VERDE. E as gargalhadas surdas balançam o pendão da esperança. Com a mão direita sobre o lado esquerdo do peito, não dou importância ao Joel, que faz piadas.

Ouviram do Ipiranga...

Todos cantam. Fico mudo e triste, até sentir dentro do peito um batuque que me vem de longe, do que não sei de mim. Euforia inexplicável. Descubro o Coração.

O tempo não tem tréguas e as lembranças servem de alerta e lamento. Não é todo dia que se é lançado ao passado como uma flecha, em busca de um alvo que sempre nos é obscuro. 

Depois do grupo escolar, cada um para seu lado. Um namoro entre uma irmã de Joel e um primo meu, que mora lá em casa, faz com que as duas famílias entrem em choque por causa da virgindade perdida e a gravidez da moça. Nas discussões não falta, nem de um lado nem de outro, o adendo “nego (a)” à frente das pedradas de palavrões. O atrito fica forte, com tira-limpo aos socos e polícia. A família de Joel muda-se para longe.

Nessa época as dificuldades sobem na mesa de casa. Arroz e feijão sem mistura durante meses, com certos dias de nem isso ter. Meu pai se consumindo em uma cama. Eu e o primo à cata de emprego, aturando nãos e fazendo todo “bico” que aparece. Nasce o filho de meu primo com a irmã de Joel. Ela e a criança acabam permanecendo com a gente. Dão o nome de meu companheiro. Fico contente, embora a referência tenha sido a um nosso parente distante.

Depois de tempos – Joel já em um empoeirado das lembranças –, venho saber de seu destino.

É a primeira comunhão de meu sobrinho. Na porta da igreja tenho a notícia de sua prisão. Um conhecido branco, dos tempos daquela amizade, narra com tal ênfase as peripécias de Joel pelo mundo do crime que me faz lembrar dona Isabel, a professora. Desconverso. Tento afogar Joel no esquecimento. Em vão.

Hoje, mais uma entre tantas prisões: Preso o marginal Neguinho Joel – foto em primeira página. A marca da raça e a marca do golpe da fivela no rosto.

As máquinas lá fora não dão folga pra gente. O banheiro dessa fábrica torna-se o único refúgio, apesar do cheiro. Aqui venho ler jornal quando o chefe não está por perto.

Nesta manchete de hoje, no rosto de meu amigo, aquela marca aponta um grito aparafusado com jeito na minha garganta. Mais um aperto: Preso o marginal Neguinho Joel.

Porta e paredes rabiscadas já não adiantam nada. Já nem servem mais ao desabafo!

(In: Contos crespos, p. 160-164)

 

Conluio das Perdas 

Gotas de chuva unidas serpenteiam brilhantes na vidra­ça. O frio da tarde começa a manipular suas agulhas de arrepio. É um frio fora de hora. É só a noite enxugar as lágrimas, o ca­lor volta com toda a sua potência. Mais que nunca, preciso de tempo aberto, de perspectiva espacial, de horizonte, de estrelas ao longe. Fico aqui curtindo saudade, saudade de quem retorna às minhas próprias raízes e, ao mesmo tempo, me abandona nesta São Paulo de tantos sonhos e decepções.

Não fosse aquela história de "hora errada em lugar erra­do", talvez eu tivesse a sua companhia, ainda por muitos anos, a meu lado.

Feito o exame de corpo de delito e tomadas as providên­cias médicas, quando retornávamos para casa, eu disse, entre outras coisas: Vamos vencer isso. Não desanima. Eu já passei por isso também.

Falei, mas era mentira. Havia, sim, vivido alguns vexames do tipo: pai da namorada, ao me conhecer, impede o namoro; ser barrado em porta de prédio ou me indicarem o elevador de serviço quando eu era visita; não ser servido em restauran­te ou tomar chá-de-cadeira; ser preso por vadiagem, mesmo com a Carteira de Trabalho assinada... Enfim, eram fatos que me haviam feito sofrer, mas nada daquilo se igualava ao que acontecera.

Depois de desabafar comigo, imensa muralha ergueu-se entre nós. Em minhas investidas de aproximação, ele apenas sorria como quem diz: "Preciso ficar em paz." Até que, um dia:

Vou embora – disse, com o olhar perdido.

Uma incisão profunda em meu ser. Desde Helena eu não perdia ninguém. Haviam se passado treze anos daquele adeus que ainda está aqui, como uma cicatriz em minha memória.

Ela perdera a cor. O brilho dos olhos havia sumido sob uma névoa de desencanto. Sete anos de um casamento cheio de alegria e realizações iam chegando ao fim. O futuro vinha como densa neblina cobrindo o rio por onde eu deslizava len­tamente para grandes interrogações de minha vida. A maior dúvida era como explicar tudo aquilo a uma criança que estava ali sem entender o meu cismar e o definhar de Helena. Foram inúmeros malabarismos verbais e gestuais para impedir que ele sofresse e eu perdesse por completo uma miséria qualquer de possibilidade de reverter o quadro. Em um daqueles dias, ele me assustou ao fazer a pergunta envolvendo a zona que eu ainda recusava encarar: Papai, o que é morrer? Minha memória bloqueou, durante esses anos, a resposta que eu dei. A ideia do fim me aterrorizava. A única lembrança que me ficou da­quele momento foi que eu o abracei muito, como se alguém o ameaçasse sequestrar e eu tivesse de reunir todas as forças para protegê-lo.

Depois, tudo veio como se fosse uma enxurrada de pesa­delos. Naquele dia em que, ao chegar do trabalho para render a enfermeira contratada, ao dar banho no meu filho e colocá-lo diante da televisão, sentar-me na cama e perceber que o grande amor de minha vida punha sangue pelo canto da boca, não me contive. Assim que o médico – que fora chamado às pressas – se foi, meu filho e Helena adormeceram, esvaziei meia garrafa de uísque, chorei muito e decidi que seria melhor lançar a realidade nua e crua sobre a inocência de Malcolm, no dia seguinte, antes de irmos para a escola. Foi então que me surpreendi. Ao me ouvir falar sobre a futura morte (eu usara a palavra exata) de sua mãe, ele retirou do bolso da calça do uniforme escolar um papel muito enrolado que dizia assim: "Querido filho, não posso mais falar, por isso escrevi este bilhete. Guarde-o com muito carinho. Adoro você, mas a doença ficou muito forte e logo eu tenho de ir embora igual o seu gato Leleco foi. Vou deixar você e não vou voltar mais. Todo mundo é assim, um dia vai embora sem poder retornar. Agora, você e seu pai vão viver sem mim. Estude e trabalhe muito para ser feliz. Eu te amo para sempre. Sua mãe."

Depois do féretro, ele, sentado no meu colo, tirou do bolso novamente aquele papel e me deu, dizendo: Guarda ele pra mim, papai. Guardo até hoje.

Com o fato que o fez ir embora, aquelas palavras de Helena voltaram-me com novos sentidos, como se endereçadas a mim e não a meu filho. A sensação de perda veio como uma sombra que estava apenas escondida.

Aos 18 anos, prestando vestibular para Engenharia entusiasmado com o seu sonho profissional, era um filho que muito me auxiliava desde que passamos a viver juntos só os dois. As dificuldades raciais – tema recorrente em nossas conversas sobretudo quando ele sofria alguma discriminação, arranjava uma namoradinha branca ou queria discutir suas tranças – jamais impediram nossos passos. Eu aprendera a enfrentá-las. Sabia que, se tivesse dinheiro, tudo ficaria mais fácil. Assim, sempre busquei superar barreiras para alcançá-lo e ensinei isso a ele. Depois da morte de Helena, Malcolm tornou-se a minha mais importante motivação de viver. E como ele correspondia aos meus incentivos, nossos laços se estreitaram muito. Meu filho tornara-se meu companheiro. Bastava haver qualquer coisa que me aborrecia em alguma de suas atitudes, ou vice-versa, ele me dava alguns leves socos, como quem chama para a briga, e ia me dizendo suas desculpas ou permitia que eu desse as minhas. Eu ensaiava aquela luta com ele e, assim, íamos conversando até, por fim, nos abraçarmos e todo aborrecimento se afastar completamente. Foi dessa forma que ele conseguira me livrar do álcool.

Contudo, às vezes, nós, seres humanos, perdemos a noção de que debaixo de nossos pés existe areia movediça.

Helena, próximo ao ocorrido com nosso filho, do fundo de minha memória parecia reivindicar seu antigo posto de mãe. Esse meu drama íntimo ocorria em sonhos. Sua imagem surgia muito nítida e, repetidamente, para me repreender quanto à educação de Malcolm, coisa que, em vida, raras vezes ela fizera. Após um desses entrechoques oníricos, acordei sobressaltado, com o pressentimento de que algo aconteceria. No sonho, ela, vestida de policial – algo estranho para alguém que fora modista –, brandia um cassetete em minha direção e gritava. Aflitivamente, eu não podia ouvir uma palavra sequer. A cena da noite foi, como de costume, sobreposta pelas atividades diárias, até que, no final de meu expediente de trabalho, o celular tocasse e uma voz autoritária anunciasse a prisão de meu filho ocorrida horas atrás.

Pagar nossas contas era uma tarefa de Malcolm. Durante o intervalo do cursinho, ele foi ao banco. Como de outras tantas vezes, a porta automática travou seguidamente, mesmo quando nenhuma moeda havia em seu bolso. Certa vez, conversando sobre um desses incidentes, meu filho me dissera ser o "automático" da porta giratória um controle remoto nas mãos do segurança que ficava em uma guarita interna da agência e, dali, escolhia as pessoas para realizar uma maior investigação sobre metais. Naquela ocasião, como nas outras por fim, Malcolm conseguiu entrar. Entretanto, antes que ele pegasse a senha e se sentasse para aguardar o atendimento, dois indivíduos muito bem trajados adentraram o banco sem que a porta travasse, renderam o segurança e atingiram com um tiro o colega deste, que estava ao fundo e tentara reagir. Um dos invasores deu o grito, depois de ambos se encapuzarem: Isso é um assalto! Todo mundo deitado no chão com a mão na cabeça! Cerca de dez pessoas, incluindo funcionários, ouviram, durante cinco minutos, ameaças de morte de outros dois ladrões que também haviam invadido o local, já com os rostos cobertos e portando cada qual uma metralhadora, enquanto os dois primeiros, com pistolas em punho, faziam a coleta nos três caixas. Um bandido, fora da agência, trajando uniforme de segurança, afastava os clientes alegando estar o sistema em manutenção e haver falta de energia. Alguém desconfiou e logo a viatura em serviço na região foi acionada.

Quando a quadrilha encetava a sua fuga, foi surpreendida, na saída. Houve tiroteio, os assaltantes retornaram para o interior do banco, ficando um deles de bruços após ter sido baleado.

Pai – Malcolm relatou-me – eu vi tudo. Eles me pularam três vezes. Uma, quando entraram. Outra, quando tentaram sair e, depois, quando retomaram. Eu estava com a cabeça debaixo de uma cadeira, o rosto voltado para a porta e o resto do corpo para fora. Um deles, quando estavam tentando fugir, pisou nas minhas costas. Quando tiveram de voltar, um outro caiu em cima das minhas pernas e a arma dele – uma metralhadora pequena – veio parar próximo do meu cotovelo, depois de bater no meu ombro esquerdo. O cara agonizava. Foram muitos tiros, vidros estilhaçados e uma gritaria geral. Os policiais nem consideraram que havia reféns dentro do banco. Tentei me encolher, mas o peso do homem em cima das minhas pernas travou meus movimentos. De repente a artilharia parou. O que se ouviu naquele instante foi o som de multas sirenes, choros e gritos histéricos. Eu tremia e suava frio. Aí, houve mais dois tiros. Acho que devem ter sido esses que mataram o segurança, aquele que tinha me barrado. Ele tentou reagir mesmo tendo sido algemado pelos ladrões. Então, eu consegui, num impulso, me encolher e fiquei na posição fetal. Só que, quando eu fiz isso, a arma caída ficou mais perto de mim. Fechei os olhos. Foi, então, que me deu uma crise de choro e a minha tremedeira aumentou. Houve, a partir daí, muitos outros tiros. Depois parou tudo, só ficando gemidos. Demorou um tempo assim. Aí, os policiais entraram falando alto, até que senti passos perto e escutei: "Esse daí não mata não! Esse a gente leva." Recebi um forte chute na coxa e agarram minhas mãos que cobriam a cabeça e me algemaram.

Quando Malcolm me contou, chorei abundante e silenciosamente, arquitetando cruéis vinganças. Ele havia sido preso como sendo o único bandido que restara vivo e, por isso, fora maltratado por um dos policiais, até que se pudesse explicar e um funcionário da agência, que fora depor, o reconhecesse como cliente.

Depois de, com a ajuda de amigos, eu conseguir a punição do PM, só me restava continuar insistindo para meu filho se recuperar. Eu o queria de volta aos estudos e Junto a mim. Ele ficou muito tempo sem sair, curou seus ferimentos, mas se recusou a fazer tratamento psicológico e não pegou mais em livros ou apostilas. Por fim, se foi para Salvador, onde eu nasci, mas não tinha parente algum, nem amigos.

O e-mail que ele me enviou no dia de hoje alivia bastante a sua ausência, que deixou imenso o apartamento em que moramos desde o seu nascimento.

"Pai, hoje eu colei lá no Curuzu. Fui para a saída do Ilê Ayê! Rolou um axé, senti maior firmeza. Mesmo com a miséria que tem aqui, os caras representam mesmo o nosso pessoal. Levantam o moral da galera. Trombei uma mina firmeza que você vai gostar. É daqui. Elinalva. Meu coração tá bombando. Ela tem uns esquemas com umas pessoas do bloco e vai rolar um lance de eu desfilar. Se der, vai ser massa. Com essa gata no meu caminho, acho que começo a desencanar daquela treta do banco, do vestibular e de todo aquele estresse. Vou pedir mais uma vez para você me desculpar pelo jeito como eu saí de casa. Foi mal. Você sabe. Você sabe... O importante é que eu estou ficando de boa. Você tá ligado que é o melhor pai do mundo. Quando puder, cola aqui em casa. Um beijo do teu filhão. Malcolm."

Agora eu sei: apesar da areia movediça sob nossos pés, a determinação é que não nos deixa afundar. Quando terminei a leitura do e-mail, com uma preocupação a respeito das decepções amorosas, saltou à minha mente algo que há anos eu havia perdido em mim mesmo. À pergunta de Malcolm, ainda menino, sobre a morte, eu havia respondido: Morrer é ir morar somente dentro dos outros.

Na última noite, minha hóspede maior sorriu-me no sonho e eu senti em meus dedos as delícias do toque em seu cabelo crespo.

A chuva passou. Estrelas lantejoulam o céu. O calor vai voltar. 

(In: Contos crespos, p. 196-202)

 

Proteção
 
pela estrada conturbada
a poesia nos defende
do assalto à mão amada.

(In: Kizomba de vento e nuvem, p. 110)

 

Crespa Cantiga
 
meus cabelos condensam vivências que nenhuma
chapinha alisa
sabem segurar os mistérios da ventania
e segredos miúdos
que o tempo encrespou e encaracolou com esmero
 
não há chapéu que abafe
o axé plantado
por cafunés
 
minha mãe
sabedora de histórias antigas
pôs um véu de paz na cabeça
para enganar o turista
 
do coração da gente
varreu a guerra
mas segredou já no útero:
“a luta continua
e a vitória está na serra
da barriga das mulheres”.

(Quizomba de vento e nuvem, p. 32).
 
 
Verdade
 
não minto
omito
a dor demasiada da chaga
perdida no labirinto
 
– oh, mito! vômito tinto?!
– desculpe o sangue com absinto!
 
não minto
nem omito
que sinto e sou
retinto

(Quizomba de vento e nuvem, p. 70).
 
 
Gota Do Que Não Se Esgota
 
cota é só a gota
a derramar o copo
não a mágoa do corpo
mas energia represada
que agora se permite e voa
em secular esforço
de superar-se coisa e se fazer pessoa
 
cota é só a gota
apenas nota de longa pauta
a ser tocada
com o fino arco
em mãos calosas
 
cota é só a gota
a explodir o espanto
de se enxugar no riso
a imensidão do pranto
 
ela é só a gota
ruindo pela base
a torre de narciso
 
é só a gota
entusiasmo na rota
afirmativa
que ameniza as dores da saga
suas chagas de desigualdade amarga
 
cota é só a gota
meta de quem pagou e paga
desmedido preço de viver imposto
e agora exige
seu direito a voto
na partição do bolo
 
é só a gota
de um mar de dívidas
contraídas
pelos que sempre tornaram gorda a sua cota
 
cota é só a gota afrouxando botas
de um exército
para o exercício da equidade
 
cota não reforça derrota
equilibra
entre ponto de partida
e ponto de chegada
a vitória coletiva
reinventada.

(Negroesia, p.73-74)
 ****
 
Muitos cortaram careca
escorregaram na gosma de inúmeros alisantes
ou se acariciaram com ferro em brasas sobre o couro
cabeludo
 
outros até à nuca
desesperados se cobriram
OPERAÇÃO PENTE FINO                                                                                                                                                  com as cavalares
perucas
 
e não adiantou nada
por mais lucro havido
na indústria de cosmético
 
jamais o racismo
mesmo com seu riso químico
será ético
 
neste comércio
nutre-se
da inferiorização constante e seu complexo.
 
(In: Sanga, p. 43).

  

quando o escravo
surrupiou a escrita
disse o senhor:
– precisão, síntese, regra Estética e boas maneiras!
ESTÉTICA
enxurrada se riu demais em chuva
do conta-gotas e sua bota de borracha rota
na maior despercebida enchente daqueles tempos
adjetivos
escorrendo ainda hoje
em negrito.

(In: Sanga, p. 77).

 

 

 Madrugada me Proteja!
(Monólogo em um ato)
 
 
Personagem
 
CELSO
 
Rapaz negro. Idade entre 30 e 40 anos. Usa terno e gravata.
 
Cenário
 
Uma rua de bairro grã-fino. Um muro alto guarnecido com grades.
 
QUADRO ÚNICO
 
É madrugada.
 
CELSO
(Em off)
 
Não se preocupa não, rapaz!... Eu tomo um táxi. Vai dormir... Não, não estou de porre, poxa! Tchau! Até segunda. Vai descansar que você bebeu demais... Isso!... Tá bem... Não se preocupa com isso... Não, não precisa chamar... Vou indo. Toma um café amargo que passa... Bom descanso! Tchau, tchau, tchau...
 
Pausa. Celso surge, o paletó sobre o ombro, tentando, com
dificuldade, afrouxar a gravata. Ouve-se o barulho de um
automóvel que se aproxima. Celso dando sinal.
 
Táxi! . . . Táxi! . . . Táxi! . . .
 
O som do veículo se afasta.
Merda! Vaziozinho... Esse aí tem a mãe na zona. Corno do cacete! Só pode ser um chifrudo um cara desse. Porra! Vê uma pessoa na rua a uma hora dessa... (Olha no relógio) Três e meia! É um canalha. Eu não estou mal arrumado nem nada?! Pô, quando o cara tá todo esculachado, aí vá lá... Dá pra pensar que é marginal, de noite, rua deserta... Mas, um crioulo na maior estica...? Terno em cima, cabelo cortado, barba feita, desodorante do mais caro, grana no bolso... Vem um safado com uma lata velha caindo aos pedaços – que o meu vale 100 daquela porcaria – vem, precisando ganhar o leite das crianças, eu dou sinal, a figura não para!? (Indignado) E deve ser um fodido... Porque um cara pra pegar um carro e ficar à noite toda atrás de freguesia só pode estar na pior. Ou então é ganancioso. Trabalha num emprego de dia, dá uma cochilada à noitinha e sai à luta de novo pra ver se enriquece. Enriquece porra nenhuma! Tá mais fácil dormir no volante, dar uma porrada com o carro e pronto... Era uma vez! (Pausa) Esses caras... Vai ver que aquele viado não gosta de preto. Será que não me viu? Viu!... Olhou pra minha cara e virou o rosto, como quem diz: "Te vira, negrão!" É... Viu sim. Acho que... É, ele passou debaixo da luz do poste. Sou capaz de adivinhar: tem trauma de infância. Vai ver que algum crioulinho enrabou ele quando era pequeno. (Pausa. Resignado, mas com certa mágoa) Não tem nada... (Descontraído) Mas que vai furar o pneu na próxima esquina, vai!... (Ri)
 
Barulho de outro automóvel se aproximando. Celso dando
sinal.
 
Táxi! Táxi!...
 
O barulho se afasta.
 
Ocupado!... Por que não apaga a luz, pô?!... Deixa rolar... Fazer o quê? (Dá uns tapinhas sobre a própria cabeça) Você também, viu, Celso!... Ir na onda do Osmar dá nisso. (Imitando) "Deixa teu carro, Celsão. Te levo em casa depois..." O cara toma todas, dá vexame na festa, você ainda traz ele em casa... Babá de bêbado. O cara não pode ver garrafa de uísque, pô! Parece criança em mamadeira. Bebe até babar. Hum!... Ficou bebinho da Silva. Silva nada! Bebinho pra Matarazzo! Tem grana. Só não sabe aproveitar. Trabalha na fábrica porque quer. O pai mesmo nem obriga. Fica lá inventando moda, querendo dar uma de gerente... Nem sei porque saio com um cara desses... (Pausa. Tenta avistar um táxi) Ah, o Osmar que se foda! Lei de Murici, cada um cuida de si.
 
Som de passos apressados. Celso assusta-se. Barulho de arma
sendo engatilhada. Celso encosta-se no muro com as mãos para
cima. Expressa muito medo.
 
Certo... Certo... Eu já entendi... Não precisa atirar... Tá certo... Grana?... Tem, tem grana sim. Fica frio, meu irmão!... Eu... Eu vou te dar a carteira sim... Mas, pode baixar a arma, meu irmão. Eu tô descoberto e não sou de briga... (Mais nervoso) Certo, certo... Eu vou pegar... Eu vou pegar... Fica frio...
 
Celso, com dificuldade, retira do bolso de trás das calças a
carteira e estende-a.
 
Toma aí... Pode pegar... Eu sou de boa paz, meu chapa. Ahn?... Certo, certo... Vou jogar, mas não precisa atirar, hein!...
 
Com muito jeito lança a carteira.
 
Certo? Tá até meia forrada; legal?... Pode pegar, sem susto... Não sou de briga não? (Pausa) Não... Quê isso?!... Eu sou crioulo, mas não sou manhoso não... Já pensou?... Eu, aqui de mão vazia, vou dar uma de valente, você com um trabuco desse? Ahn? Certo, certo, eu encosto.
 
Celso encosta-se no muro com as mãos para cima. Tentando
relaxar um pouco, descendo os braços.
 
Já valeu a noite, certo companheiro? Meu pagamento. Hein?... Pô, meu?! Mais grana? Se eu tiver mais algum são uns pichulé no bolso. Dinheiro de cigarro... Nem vale a pena!
 
Assustado, recuando como se fosse subir de costas no muro.
 
Certo, certo!
 
Levanta as mãos de novo.
 
Não leva a mal. Tô só trocando uma idéia com você... Vou pegar. Mas... (Apelativo) Dá pra abaixar a arma, meu irmão? Eu sou de paz.
 
Celso coloca a mão no bolso direito – mantendo o braço
esquerdo levantado – retira umas notas amassadas e joga.
Depois – levantado o braço direito – retira uns papéis do bolso
esquerdo e joga também em direção ao "ladrão", o público.
Em seguida retira do bolso traseiro um lenço e lança-o na
mesma direção.
 
É... Eu te falei... Agora não tenho mais nada... Joguei o lenço porque tá limpinho... Se quiser aproveitar... Ahn?... Não, não tenho. Pode ver, ó...
 
Celso tira a gravata e exibe o peito e o pescoço.
 
Não uso... Aliás nunca gostei de correntinha... (Tenta ganhar confiança do ladrão) Minha mulher me deu uma, mas... Nem usei, acho até que perdi.
 
Intimidado, mas sem pavor, volta a levantar os braços.
 
Que isso!? Você acha que eu vou rebentar correntinha diante dum trinta e oito desse?... Tá certo, tá certo!...
 
Até este momento, Celso está se ajeitando com o paletó nas
mãos. Vai tirar a camisa social pra fora da calça,
o paletó cai. Ele termina
de tirar a camisa fora da calça e sacode-a bem.
 
Olha aí, não te falei? Não tô escondendo jogo não... Ahn? Ah, sim, o paletó, você quer o paletó... Tá, tá certo... Posso chutar?
 
Celso chuta o paletó. Não consegue deslocá-lo muito.
Assustado.
 
Tá, tá, tá... Calma, calma, calma... Eu vou jogar, legal?... Fica tranquilo... Não tô armando treta não...
 
Celso vai, com muito receio em direção ao paletó. Agacha-se,
sempre olhando em direção à suposta arma, dobra o paletó,
bem dobrado e atira-o, com cuidado, mas com força, em dire-
ção ao ladrão. Relaxando um pouco.
 
É, o que tem aí é só documento... Tá certo, mas se você tivesse falado em cheque eu tinha entregado o talão... Você tá no seu direito... Não é papo furado, não. Mas eu entendo... Eu também já tive dificuldade na vida e eu sei como é que é... Essa recessão... (Procurando relaxar) Na falta de emprego, cada um tem que se virar como pode, certo? (Intimidado) Ah, claro, claro... Se você não gosta... Bem, aí tem mais é que não trabalhar mesmo... (Pausa) É, eu ponho algum documento na carteira. (Queixoso) É difícil, né, rapaz, tirar documento, não é?... Hein? Ah, essa daí... Bem, é... é a minha noiva... Ah, sim, quer dizer, é a minha mulher... (Encabulado) É... Não, que isso?... É que deu certo. Sabe como é que é, gostou do crioulo, a família não pôs areia, a gente chegou junto... Não, não, também não é assim... Eu acho que não tem nada a ver. Ela é uma branca decente... Mas você também é loiro e eu não posso dizer... (Assustado) Não, não, não quis te ofender... Só falei que não tem nada a ver. Pra mim todo mundo é igual. Preto, branco, amarelo... Como? Eu? Não, não acho não... Eu não sou melhor que você. É que... Bem, eu dei mais sorte no emprego... Isso não tem nada a ver. Cor não tem nada a ver. (Ri tentando descarregar tensão) Ah, isso aí eu não sei... É, é isso mesmo: Celso Branco de Souza. Meu nome é esse mesmo. Sei lá o que meu pai arrumou... Bem, tem cara por aí que tem sobrenome "Negrão," vai ver tem olho azul, é branco... Esse negócio de nome é um rolo... (Ri amarelo) Tem Coelho, Carneiro, Leitão... É... (Pausa) Como? Não. Eu, racista? Não, que isso!? Meu melhor amigo é um branco. Só que não tem o cabelo loiro igual o teu. O cabelo dele é preto, liso... Acabei de deixar ele em casa... Pra mim não tem diferença. (Acuado) Ahn?... Ah, sim... O "bobo". Ah, certo. Tudo bem, tudo bem...
 
Retira o relógio com certo tremor nas mãos.
 
Posso jogar? Não vai quebrar não? Ah, pô, assim...! Se você não segurar você me dá um tiro, pô!?... À toa... Eu não tô nem aí com relógio. É teu, meu chapa! (Pausa) Tá legal!... Tá legal... Mas, pô, segura... Não vai deixar cair... Você vê, eu entrego tudo, na manha, sem reagir... Aí, segura, hein!...
 
Celso lança o relógio com muita cautela. Não há barulho de queda.
Celso respira aliviado. Descontrai-se.
 
É, é bom sim. Comprei de contrabando... Não, não sou entendido do assunto, mas a gente... Podendo, a gente faz um negócio bom, é ou não é?... Um amigo lá do serviço que faz uns trambiques. Chega lá na Baixada Santista e "descola" uma muambazinha... Não, eu não sou chegado... Só comprei dele esse "bobo" e uma caneta que eu dei de presente pro meu filho... Você viu a foto dele aí na carteira... E taí... Um garotão!... Oito anos... (Pausa) Mas... E aí, tô liberado?
 
Sem jeito. Desapontado. Indignação profunda.
 
Pô, meu irmão, aqui na rua?... (Tenta ganhar tempo) Sabe como é que é... Iiii, rapaz, vem vindo um carro aí... Certo, certo...
 
Som de automóvel num crescendo. Celso deita e se encolhe.
O ruído de motor se distancia. Ainda no chão, expressa seu
temor.
 
Certo... Certo... Certo... Mas não atira... Não atira...
 
Levanta-se. Prensado contra o muro, como se quisesse
escalá-lo de costas mais uma vez, vai despindo-se.
Atrapalha-se para tirar a gravata, camisa e os sapatos. Toda
esta operação vai sendo realizada de pé.
 
Tudo bem! Eu vou tirar... Dá só um tempo... Tá, tá, tá... Tô terminando...
 
Enrola, por fim, toda a roupa e joga para o "assaltante". Está
preocupado em não ser visto seminu, apenas de cueca. Olha
para os lados. Treme. Humilhado.
 
Pô, mano, vai me deixar na pior, pô!... Vou ficar pelado, aqui?... O que que tu vai fazer com uma cueca, pô?... (Intimidado) Tá certo, tá certo... Mas, pô, não vai atirar, né?... Eu tô fazendo tudo direitinho... Pô!...
 
Assustado, vai tirando a cueca, olhando para os lados e para
o ladrão.
 
Tudo bem... Tudo bem...
 
Amassa a cueca e lança-a. Cobre a genitália com as mãos.
 
Tá tudo O.K!... Não vai atirar, hein, pô... (Implora) Abaixa a arma aí, vai... Eu não tenho mais nada, poxa!... Não vou caguetar pra ninguém...
 
Encosta-se no muro.
 
Certo, certo...
 
Vai agachando-se, encolhendo-se. Relaxa um pouco. Passos se
afastando. Celso vai se levantando. Entre os dentes.
 
Filho da puta...
 
Ouve-se um estampido e os passos de alguém correndo. Celso
cai e fica imóvel. Pausa. Som de sirene de rádio patrulha.
Celso levanta-se em pânico. Tenta se cobrir com as mãos, mas
termina optando pela fuga. Corre pelo palco. Um foco de luz
agita-se na perseguição. Ouvem-se mais tiros. Quando o som
da sirene aproxima-se ao máximo, Celso já está acuado, sob o
foco de luz.
 
VOZ
(Off)
Documento!...
 
Celso, derrotado, cobre a genitália. Expressa profunda
indignação. Por fim, começa a rir, num crescendo. Traduz
indignação e graça. Chega à gargalhada de pura gozação,
mantendo sempre as mãos sobre a genitália. Súbito,
petrifica-se. Vira estátua. A luz vai amortecendo.
Simultaneamente, ouve-se um hino cívico assobiado.
 
Fim desta peça.
 
(In: Dois nós na noite e outras peças de teatro negro-brasileiro, p. 103-112)

 

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