Dança

 

Entrou na padaria. Estava com fome e cansado de andar. Um pão na chapa e um café ajudaria a ganhar um pouco de ânimo para a entrevista marcada para a tarde. Queria mesmo era almoçar, mas o dinheiro vinha rareando no seu bolso, já oito meses sem emprego. Ao vê-lo, indo em direção ao caixa, a atendente fechou de forma brusca a gaveta em que ficava o dinheiro e fixou um olhar que ele já conhecia bem, era uma sequência de medo, desejo e constrangimento. Fez seu pedido, a vontade era de não pagar, tão pouco dinheiro, lutando por um emprego e ainda ser tratado assim, como um assaltante!

Resignação e cansaço acompanhavam Edson desde que foi demitido da loja de bebidas onde trabalhava como segurança. Certo dia, sumiu uma garrafa de uísque, “daqueles bem caros”, sua função não era vigiar o estoque e, sim, as pessoas que entravam na loja para comprar. Mas o patrão o convocou para a reunião com a equipe; caso não dissessem quem furtara a garrafa “todos seriam demitidos!”. Olhares tensos. Do grupo de funcionários, apenas três negros, dois homens, incluindo Edson e uma senhora – que fazia a limpeza do estabelecimento. Nestas situações os corações dos pretos batiam mais forte, sabiam que os olhares sempre se voltavam para eles quando o assunto era desconfiança sobre algum roubo.

Edson tinha uma leve ideia sobre o gosto do uísque. Certa vez namorou uma mina branca, um pouco mais velha, que bebia apenas uísque. Ao beijá-la, sentia um sabor diferente. Quando estava ao lado dela, percebia os olhares admirados dos outros caras pra ele, eram bem tratados nos restaurantes que costumavam frequentar, o táxi sempre parava para eles quando precisavam, e, nas noites quentes de intimidades, a mina branca pedia a ele que batesse com força, mordesse e a xingasse. Ela queria casar, mas ele cansou do papel e sumiu sem deixar recado.

A reunião acontecia justamente na sala que servia de estoque para parte das bebidas da loja, com o dinheiro que tinha ali em garrafas quitaria as prestações do seu apartamento. Por que uns com tanto? Edson olhava para o chão enquanto o patrão esbravejava, dizendo que sabia que muitos que trabalhavam ali eram moradores de favelas, mas que isso não os tornava ladrões. O patrão sempre repetia que tudo que ele tinha era “à base de muito esforço dos seus familiares”, que “vieram pobres para o Brasil e lutaram de sol a sol para conseguir emergir na vida”. E-mer-gir – ele falava separando as sílabas. Dizia que não tolerava vagabundagens. Pela mente de Edson, enquanto ouvia o sermão, passavam as prestações do apartamento que havia comprado recentemente e que levaria muito tempo para pagar, não posso perder este emprego. A senhora negra começou a chorar, dizendo que nunca fora tão humilhada na vida, que queria a demissão, que se esforçou muito para educar os filhos, que jamais tinha se imaginado em uma situação daquelas, de ser acusada. Em um leve levantar de cabeça, Edson pôde perceber que além de chorar ela se tremia toda, e que estava bastante pálida. Se estivesse na sua casa levaria um copo de água com açúcar para ela, mas, ali, só podia esperar que aquele tormento acabasse. Lembrou das recomendações que havia recebido ao ser contratado para a loja, “vigie com mais atenção os mais queimadinhos”, e assim ele fazia.

As vozes da reunião, armada para que algum funcionário dedurasse o outro, ficavam cada vez mais distantes, e Edson, olhando para o chão, lembrava de uma vez que o patrão fez um Preto, que estava todo elegante de terno, abrir a bolsa de couro que carregava, “É isso mesmo, amigo, horas aqui na loja, rodando de um lado para o outro, vai ter que abrir a bolsa sim!” – disse o patrão. A cabeça dele ficava vermelha nestas situações e a voz esganiçava um pouco. “Vai ter que abrir!!!”. Edson, em frente ao suposto ladrão, percebeu o olhar constrangido que mirava nele, buscando cumplicidade e ajuda. Mas não podia ceder, fazer nada, não era por ele ser negro também que daria esse mole, não eram irmãos, e muitos pretos se embecam para poder roubar – sabia de muitos casos contados pelos seus amigos também seguranças. Fez o cara abrir a bolsa de couro, e dentro havia apenas papéis e alguns produtos de higiene pessoal; depois dos pedidos de desculpas do patrão, o cara saiu da loja, murcho, disse com uma voz fragilizada que processaria a loja. Edson e o patrão sabiam que o Preto não processaria, que aquela ferida o Preto de terno carregaria pela vida, cada um com a sua cruz. Ao vê-lo sair, Edson observou que o Preto, de costas, parecia um terno sem corpo se movimentando, um terno oco.

Como o silêncio tomou conta dos funcionários que estavam na reunião, o patrão mandou que todos voltassem aos seus postos, que um dia o rato da loja apareceria e acabaria na cadeia, que é onde os malandros devem apodrecer. Um suor gelado saía do corpo do vigia, que, aliviado por perceber que não havia sobrado pra ele, já conseguia até pensar em outras coisas, como a vontade de voltar a estudar mais e, finalmente, sair daquela vida. A equipe voltou ao trabalho, mas, três dias depois, Edson foi demitido. O patrão pagou todos os diretos e disse que não mais voltasse ali.

Daquele dia em diante, entrou em uma verdadeira saga para conseguir um novo emprego. Um dia, estava no ônibus, indo para uma entrevista, quando foi revistado por alguns policiais; da cena, lembrava apenas do momento em que um policial branco, muito jovem, perguntou: “Faz o quê da vida, parceiro?!” Não ter o que responder, naquele momento, o deixou gelado, e com uma voz titubeante. Inventou que era autônomo e que era professor de dança. Estas situações deixavam Edson mais apreensivo em relação ao seu destino. Quando as pessoas se afastavam dele na rua, quando não queriam sentar ao seu lado no ônibus, quando fechavam os vidros do carro ao vê-lo se aproximar, quando as mães puxavam suas crianças nas vezes em que ele passava perto, isso tudo o atormentava mais estando ele sem emprego. Se pegava pensando coisas que logo em seguida julgava loucas: Quem era esse, que tantos viam nele, mas que ele não encontrava ao se olhar no espelho? Quem era esse outro que se colocava entre ele os outros, fazendo com que o medo em relação a ele fosse tão grande? Se imaginava sendo perseguido por batalhões de seguranças negros como ele.

Controlava o pensamento, sabia que não poderia dar muita vazão às divagações. Comeu o pão, o café, largou quase todo na xícara, “amargo demais”. Seguiu para a última entrevista de emprego daquele dia. A vaga era para trabalhar em uma transportadora, enchendo e esvaziando caminhões. Era negro, alto e forte, isso contaria ao seu favor – pensava. No caminho até a agência de emprego, passou por uma loja para namorar a televisão que tanto queria comprar, caso conseguisse um novo emprego. Era uma televisão enorme, seria ótima para ele assistir ao que mais lhe dava prazer. O atendente da loja se aproximou dele, era um rapazinho franzino com um cabelo atopetado e uma voz feminina “Gostou de qual?”, “Não, estou apenas olhando”, “Nós parcelamos.”, “Não, obrigado mesmo, só olhando mesmo”, enquanto conversava com o atendente, percebia que o segurança da loja, de longe, mantinha a vigilância sobre ele, percebia também como o atendente o olhava, o mesmo olhar da mina branca. Sentiu-se sufocado, resolveu sair da loja.

Sirenes de carros da polícia que passavam em frente à loja o deixaram assustado, procurava não olhar para os policiais, vivia sempre em situação de espera para alguma dura, ou de algum momento em que alguém o apontaria na rua como responsável por algo que não teria cometido e, assim, nesta fantasia que criava e recriava no pensamento, terminaria esquecido, apodrecendo na cadeia; lembrava da fala da professora dos primeiros anos da escola “todos os pretos são iguais”, da mãe “leve sempre o documentos”, do pai “esteja sempre bem vestido”, do avô, “um negro sem trabalho não é ninguém”, lembrava, e adoecia mais.

Chegou ao escritório onde se realizaria a entrevista. “tenho trinta anos, sou formado em administração de empresas, mas nunca exerci a profissão”; a recrutadora usava uma franja loira que quase cobria completamente os olhos, mas dava para perceber, entre os fios de cabelo, que o entrevistava com desinteresse e, em alguns momentos, até desconfiança, “trabalhei já como entregador, faxineiro e vigia de loja…”; enquanto falava, sentiu um tremor em suas pálpebras, “bilingue, em inglês”, as mandíbulas pareciam querer travar, iria perder o apartamento, que dia cansativo, quantos meses de agência em agência, enviando currículos, quantos meses esperando uma ligação, um e-mail, uma convocação; sentia como se a sala tivesse ficado menor e mais gelada, continuou respondendo, “ouvir música, heavy metal, caminhar, ler, assistir a filmes musicais…”.

A docilidade que ele tanto controlava, de forma inesperada ia se tornando raiva e tomando seu corpo; “então, tá certo, Edson, entraremos em contato, caso você seja selecionado”, a recrutadora se levantou e, neste movimento, o cabelo saiu um pouco da face e ele pôde perceber o quanto ela era feia. Olharam-se, finalmente. Os olhos azuis da recrutadora pareciam de uma boneca, sem nada dentro. Edson ficou estático, sentado. Sabia que deveria ir embora, que foi para isso que ela se levantou, que este era o código, mas não conseguia se mover, as solas dos pés doíam, o estômago parecia estar em chamas. O olhar frio e desinteressado da recrutadora logo se transformou em medo e, nesse estado, ela saiu da sala em direção à outra sala, onde ficava um aparelho telefônico.

Na mente de Edson, duas grandes telas abriam-se; em uma, a jovem loira de franjas saía apavorada da sala em que o havia entrevistado e ligava para o segurança do prédio; em outra tela, um pouco maior, um menino negro, trancado no quarto, escondido dos seus pais, imitava passos de balé – que, tendo visto poucas vezes na televisão, tratou de registrar na memória. Sonhava que faria uso deste treino, no que conseguiria construir como o resto da sua vida.

(Eles, 2018, p. 30-39)


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