Quando o tempo para

Quatro e meia da manhã. O inverno escurecia as madrugadas sob seu gelado silêncio. A cozinha mal se iluminava com as chamas do fogão à lenha. Catarina, trinta e cinco anos na certidão de compra, cativa desde que nascera, colocou o pó de café para coar enquanto na chaleira preta a água fervia. Os olhos da mulher sentiram-se atraídos pela chama vermelha, suas pálpebras pesavam. Fecharam-se. Abriram-se. Deslocou-se até a sala de jantar, estendeu a toalha branca com bordados verdes e vermelhos. Ela pôs as xícaras, talheres... Estava pronto. Ajeitou tudo de maneira precisa. Pegou outra vez as xícaras. Olhou para o interior de cada uma, recolocou-as em seus lugares. Retornou à cozinha. Pegou os últimos dois pães e o doce de leite. Ouviu uma tosse, depois, um “bom dia” e logo o ringir da porta. O senhor retirou-se do quarto. Catarina entrou no quarto. A sua senhora a esperava para que arrumasse a cama e também a ajudasse a colocar o vestido e prender o cabelo. Cama arrumada, cabelos ajeitados e vestido abotoado.

─ O penico está a transbordar ─ disse a senhora, que logo informou que havia outro na mesma condição.

Catarina saiu pela porta dos fundos. Equilibrava os dois penicos que respingavam urina nos seus pulsos. Despejou-os no fundo do pátio. Voltou acelerando as passadas. Lavou bem as mãos, ensaboou-as voltou à cozinha. Pegou o café, água quente e levou à sala. Serviu o café quando a senhora, após cheirar suas mãos, disse:

─ Vá lavar as mãos direito, sua negra porca! Está a feder!

Na cozinha, Catarina esfregou os pulsos, lavou, passou muito sabão e esfregou outra vez, tanto que se criaram feridas. Outra vez à sala, deixou à mesa o leite fervido. Serviu os senhores. Em pé, estática, de estômago e olhos vazios, observava a refeição.

─ Catarina! ─ o homem limpava os lábios finos junto ao bigode castanho bem aparado. ─ Notei que há pouca lenha. Ao invés de ficares aí, parada, podes estocar algumas achinhas de lenha na cozinha.

Catarina saiu. Dirigiu-se até o pequeno galpão e pegou o machado. Vagou por debaixo das árvores. Encontrou alguns tocos secos e os arrastou, um a um. Cortou-os a lentos golpes de machado. Reuniu mais alguns gravetos. Colocou a lenha ao lado da porta, dentro da cozinha. Lembrou que deveria limpar a mesa das refeições. Lavou as mãos. Viu apenas os destroços da refeição encima da mesa.

Havia recolhido tudo, a mesa estava limpa. Catarina pegou a vassoura de palha e varria os quartos enquanto sussurrava uma canção. Recolheu as roupas sujas, fez uma trouxa. Rumou para o riacho com a trouxa na cabeça e o sabão preso aos dedos.

Ao leve som da água que batia nas pedras, entre sabiás e tico-ticos, Catarina cantava em voz livre. Após estender as roupas sobre os pequenos pés de pitangueiras, ela foi à cacimba buscar água e, tão logo terminava, iniciavam-se os preparativos para o almoço.

Aproximava-se do meio-dia. A cozinha estava quente. Catarina suava na medida em que remexia nas panelas, salgava, punha tempero. Retirou as panelas e as botou sobre a pequena e grossa mesa de madeira. Na sala, arrumou a mesa sob os olhares da senhora que bordava. Pratos arrumados, ela depositou as tigelas no centro da mesa.

Parada, mãos unidas ao ventre, Catarina esperava o término da refeição.

─ Tome Catarina! ─ o senhor lhe estendeu a mão, havia um papel dobrado. ─ Leve até o alfaiate. ─ Logo em seguida, lembrou-a de passar na feira. A comida carecia de melhores temperos e saladas.

Levara meia hora de caminhada. Entregou o papel ao alfaiate. A feira estava cheia. Catarina chegou à casa dos senhores onde a sala encontrava-se deserta.

Havia lavado a louça, decidiu sentar. Sentiu-se tonta, estava com sono. Levantou-se e preparou um pouco de goma. Engomou as roupas.

Ainda naquela tarde, preparou um bolo, bolinhos de polvilho e o chá que a senhora gostava tanto. Serviu. Recolheu o restante das roupas. Aproveitou para pegar mais um pouco de lenha. Deixou o machado ao lado da porta da cozinha. Depois de esticar as roupas, enquanto o ferro de passar aquecia, passou-as.

A noite chegou. As nuvens encobriam as estrelas. Catarina colocava a toalha para o jantar. O senhor fumava o cigarro. A senhora bordava próxima ao candeeiro. O jantar foi servido. Catarina aguardou. Recolheu tudo na mesma presteza.

─ Não esqueça ─ disse a senhora. ─ Deves passar um paninho nas porcelanas.

Na cozinha, havia um saco de farinha, tinha de peneira-lo. Involuntariamente, após algumas peneiradas, seu corpo amoleceu. Cochilou sentada.

─ O que é isso? ─ a senhora gritou. ─ negra preguiçosa! ─ tirou a chinela e deu na face de Catarina. Mandou que peneirasse, noutro dia queria pão na mesa.

Enquanto famílias dormiam, Catarina cumpria os deveres da sua vida. Farinha peneirada, água, sal, fermento, sovou a massa. Botou na forma. O pão dourava num cheiro bom, apetitoso. Ainda noite, pôs a mesa para o café. Voltou à cozinha e pegou o machado. Foi ao quarto dos senhores, sem ruídos, abriu a porta.

(Guerrilha e solidão, p. 37-40)

Texto para download.