O duque da senzala

(excertos)


Mesmo que marcasse um grande avanço científico e industrial, o século XIX seria tão mortífero quanto os antecessores. Mas dessa vez, não se mataria em nome de Deus, e sim em nome da política. Nas próximas guerras se mostraria o quanto o homem está condenado à destruição; e nenhum deus poderá salvá-lo.

No mesmo dia em que enforcaram seu pai, a mãe o venderia a quem buscasse um pardinho obediente e de boa figura. A mulher encontrou e o vendeu. Sem suspiros ou lágrimas. Nada além de um estranho alívio, perceptível nos seus olhos castanhos e profundos como a fonte de uma gruta. O menino não fazia ideia das leis que regiam aquele universo. Um sistema, cujas engrenagens respeitavam uma divisão básica. De um lado as pessoas que vendiam e compravam, do outro as pessoas que eram vendidas e compradas. Assim como não imaginava que a metamorfose desse mesmo sistema agiu nele no momento em que a mãe pegou o dinheiro e o cedeu ao estranho que perguntou a ela:

– Tem batizo?

– Ábedu Lecur.

Se antes Ábedu Lecur e sua mãe vagavam pelas ruas, misturando-se ao cardume de estranhos na região mais fétida de Porto Alegre, agora se achava dentro de um imenso alçapão. Nada mais que um objeto numa residência nobre no centro da capital. Se conhecesse as estórias bíblicas, imaginaria que era Jonas dentro da baleia. Uma baleia de cimento, tijolos e um forte cheiro de gordura queimada. Por um tempo ficou sozinho. Até que o estranho se aproximou, postando-se diante dele. Ábedu Lecur confrontou aquele indivíduo de barba grisalha, de olhos castanhos, estáticos e reluzentes como vidro. Aparentava a clara expressão que iria humilha-lo. Entretanto bastaram alguns segundos de silêncio para que sentisse o cheiro que vinha da roupa desse estranho. Um aroma que despertou nele a lembrança das trouxas que sua mãe lavava, das horas nas águas do riacho e nos espancamentos nas pedras. Foi capaz de senti-las mornas em seu rosto.

(​O duque da senzala , p. 13-14)

****

– Está perdido, negro?

E dessa vez, Ábedu Lecur escutou como se alguém segredasse em seu ouvido. Era a certeza de que era descoberto. Enquanto saía do refúgio, sentia-se um ladrão surpreendido pela gente que o lincharia. Arredou galho por galho como se tivesse receio de quebra-los. Postou-se feito um recruta desengonçado perante o homem que o indagava:

– Está perdido, negro? – repetiu e tirou a cartola da cabeça e segurou ao seu lado num tipo de gesto de educação militar. Mostrou-se o crânio envolto ao lenço cor de cenoura. Alisou a testa e recolocou o chapéu – Entendo o que digo?

Essa voz carregava o cheiro de fumo na cachaça. Sim, entendera. No seu imaginário, bastava uma resposta simples. Mas que poderia ser fatal. Aquelas pessoas não lhe davam referência alguma de quem eram, de que lado eles brigavam e para que. Os ossos de seus maxilares doíam. Era uma rigidez imposta por uma força interna que os impelia a se grudarem cada vez mais. Quando respirou numa lenta sucção do ar para logo soltá-lo aos poucos, percebeu que sua boca amolecia. A brecha o deixou que respondesse, mesmo que fosse em voz trêmula:

– Me perdi na batalha.

(​O duque da senzala, p. 77)

 

Texto para download.