Por uma poética do negro e do feminino

Maria do Rosário Alves Pereira*

A poesia de Lia Vieira presente nos Cadernos Negros transita entre a abordagem do tema negro e do feminino. Com relação ao primeiro, há poemas em que a autora também trabalha com o lugar subalterno ocupado historicamente pelos negros, produzindo uma obra de denúncia social ao retratar as mazelas das quais estes ainda são vítimas. É o caso do poema Curió, publicado nos Cadernos Negros 19, em que um negro é abordado por uma blitz policial e torna-se vítima da violência. E, também, do poema Agnus Dei:

Dividem

a socos e pontapés

o respiradouro

o pão dormido

as guimbas de cigarro.

Parce nobis Domine (Perdoai-nos Senhor)

 

AGNUS DEI

 

Disputam:

a cola, o esgoto, o papelão

o último gole

os restos da vida

Exaudi nos Domine (Guiai-nos Senhor)

 

AGNUS DEI

 

Flagelos, mutantes

peregrinos, sonâmbulos

Sociedade do futuro:

MENINOS DA CINELÂNDIA

Miserere nobis (Tende piedade de nós).

(Cadernos Negros 15, p. 61)

A autora problematiza a condição de miséria e indigência em que se encontram os meninos da Cinelândia. Eles dividem a fome, a violência, enfim, compartilham o descaso social. Vivem os “restos da vida” e, ao mesmo tempo, são “a sociedade do futuro”, o que indica uma perspectiva pessimista com relação a esses jovens. Provavelmente continuarão sobrevivendo em condições subumanas, sem o mínimo de dignidade. O eu enunciador do poema pede, então, o auxílio e a misericórdia divinos para uma sociedade que fecha os olhos para os desvalidos.

É interessante ressaltar a intertextualidade que se constrói com o texto bíblico e a idéia de sacrifício presente no texto: o Cordeiro de Deus é aquele imolado para salvar os pecados da humanidade. Os meninos da Cinelândia também o são, todos os dias, em meio à violência e às más condições de vida. Enquanto permanecem na miséria, outros (uma elite branca) se regozijam em meio a uma vida farta e sequer reconhecem a existência dessas criaturas necessitadas do suporte da sociedade.

A temática negra não aparece, contudo, apenas sob a ótica do protesto. Em outros textos há um caráter de valorização da cultura e os heróis do passado são exaltados em toda sua magnitude. No poema a seguir, é perceptível a erotização de Zumbi, que se funde com o eu-lírico e em seu corpo deixa impressa a força dos antepassados, como uma espécie de inscrição, uma tatuagem que está ali para lembrá-lo de suas raízes e de sua cultura. Ambos tornam-se um “uno indivisível”, mostrando que Zumbi dá vida, coragem, inspiração capaz de saciar a “sede de mel” que permeia sua raça:

Meu Zumbi

De corpo suado

De olhos meigos e doces

De boca ardente...

Nenhuma paisagem se iguala

à visão que tenho de você

Explosão de raça em forma de ser

o que mais quero:

Entrelaçar nossas peles retintas

Me animar de vida,

Buscar meu céu em sua terra

Saciar minha sede de mel em seu mistério.

 

Tatuar-te em meu corpo

para ter a certeza de tê-lo

preso-colado-filtrado em mim

na própria pele

rasgando a epiderme

que nem laser apaga

que aos poucos me rasga

e se fixa e me marca

num uno indivisível.

(Cadernos Negros 15, p. 58)

A autora retoma a imagem do herói épico, apropriando-se dele para reconstruí-lo sob o ponto de vista de um eu lírico feminino e desejante, em um movimento de afirmação do ser. Zumbi, nesse contexto, poderia referir-se, por exemplo, a um amante concreto, não necessariamente ao herói negro. O guerreiro virou amante, e o erotismo é uma forma de libertação do prazer feminino e dos valores patriarcais até então instituídos.

Essa abordagem do tema feminino também aparece em textos como Nós voláteis e Ânsia, nos quais a sexualidade da mulher é problematizada e seus desejos mais recalcados vêm à tona da escritura. A mesma perspectiva é encontrada no poema Infinita viagem:

As noites cariocas

Descida de Afoxé

Comida mineira

Vaquejada

Tambor de creoula

As belezas do Pantanal

Pôr-do-sol de Guaíra

Fenômeno das pororocas

O estrondo de Sete Quedas

Canoa quebrada

Arraial D’Ajuda

As eclusas do Tietê

Corrida de búfalos do Marajó

Nada que vi se compara

Com o que sinto ao fazer amor.

(Cadernos Negros 15)

As belezas brasileiras, tais como seus pontos turísticos e suas atrações naturais, não são tão exaltadas pelo eu-lírico do poema como a relação sexual, momento em que o ser feminino liberta-se do servilismo e da posição subalterna assumida ao longo dos séculos. O lugar ocupado pela mulher não é mais o do ser passivo que não assume sua condição feminina e esconde sua sexualidade, ao contrário, vivencia-a em todo o seu potencial.

Já em seus contos, Lia Vieira expõe esse mesmo sentimento de exclusão social/racial através de suas personagens. O conto Por que Nicinha não veio? retrata a história de uma presidiária que recebia constantemente a visita da mãe, sendo muito ligada a ela afetivamente. Nas palavras de Esmeralda Ribeiro: “ (...) o sentimento do Quarto de despejo está presente porque a narradora trabalhou com um dos lugares ‘ditos’ do negro, que é a cadeia; e quem fica lá, numa análise à distância é a escória da sociedade.” (2002, p. 232). A filha havia sido presa por roubo, o que já dá indicações da situação social em que vivia. No entanto, um dia a protagonista é surpreendida pela triste notícia de que Nicinha, sua mãe, havia sido atropelada, e não mais voltaria a vê-la. A narradora resume esse sentimento de perda: “Apodrecera o fio a que estava atada e despencou nas profundezas...” (Cadernos Negros 16, p. 63). Ou seja, o último elo de esperança a que se prendia a personagem havia se desfeito.

Essa mesma perspectiva pessimista, no sentido de retratar o lugar social a que o negro ainda está vinculado, aparece no conto He-Man. Um menino vai assaltar uma casa no Natal a fim de roubar um presente para o irmão que insistia “em não entender que o Natal é coisa para rico” (Cadernos Negros 16, p. 65). Chegando lá, deparou-se com todos os cômodos da casa trancados e como única alternativa levou a espada do He-Man, em um último lampejo de esperança para agradar ao irmão. As personagens de Lia Vieira nestes contos, portanto, encontram-se encurraladas em uma situação tal de alijamento da sociedade que parecem sequer ter forças para vencer as barreiras que lhe são impostas.

Conforme o que foi exposto, percebe-se que tanto a poesia quanto a prosa escritas por Lia Vieira trazem um sentimento de assumir-se sim como negro e como mulher, mas também buscam desvendar as mazelas de uma sociedade que insiste em mantê-los numa posição secundária que colabora para a manutenção do status quo vigente.

Referência

RIBEIRO, Esmeralda. A narrativa feminina publicada nos Cadernos Negros sai do quarto de despejo. In: DUARTE, Eduardo e DUARTE, Constância (org). Gênero e representação na Literatura Brasileira. Vol. II. Belo Horizonte: UFMG, 2002.

* Maria do Rosário Alves Pereira é Doutora em Letras, Estudos Literários, pela UFMG e professora do CEFET-MG, campus Belo Horizonte. É coautora, entre outros, de Linhas Cruzadas: literatura, arte, gênero e etnicidade (2011) e coorganizadora dos volumes críticos A escritura no feminino: aproximações (2011) e Escrevivências: identidade, gênero e violência na obra de Conceição Evaristo (2016).

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