Consciência feminina, étnica e cultural na Obra de Alzira Rufino

Zélia Maria de N. Neves Vaz*

Sou negra ponto final

devolvo-me a identidade

rasgo minha certidão

sou negra

sem reticências

sem vírgulas sem ausências

Alzira Rufino

A legitimação de um papel mais representativo para mulher negra na sociedade brasileira, bem como sua valorização, são fatores primordiais na obra de Alzira Rufino. Num país fortemente marcado pelo patriarcalismo e pelo preconceito da cor, a escritora reconhece ser ínfimo o espaço social atribuído à figura feminina pertencente ao seu grupo étnico. A partir do discurso da autora, em alguns de seus livros, notamos que para ela uma das maneiras de superar este obstáculo é estimular a conscientização destas mulheres, de forma que elas não se sujeitem aos estereótipos e preconceitos que as condenam à exclusão.

Marcadas pelos estigmas do gênero e da etnicidade, as mulheres negras acabam por não usufruir os mesmos direitos conquistados pelas brancas, que, segundo a escritora, alcançaram mudanças significativas nas últimas décadas, ocupando cargos na área de medicina, direito, engenharia, no poder judiciário, dentre outros. Embasada neste argumento, Alzira Rufino aponta em seu livro O poder muda de mãos, não de cor a desvantagem daquelas que fazem parte da camada feminina negra que, devido ao preconceito, ficam confinadas a um mercado de trabalho extremamente restrito. E, mesmo as mulheres que possuem acesso a um nível intelectual superior, não conseguem muitas vezes alcançar melhores resultados na sociedade. Este último fator sinaliza para um ponto crucial do problema: a cor é a principal causa da não inclusão da mulher negra e determina qual será o espaço social que esta deve ocupar, nas palavras da autora:

A mobilidade profissional é tão restrita para a mulher negra que, mesmo aquela que consegue um grau maior de escolaridade, é obrigada a continuar a trabalhar como doméstica por ver limitado seu acesso a outras atividades. O que predomina é o item cor, não a escolaridade que a mulher negra já (a duras penas) alcançou.

(Rufino, 1997: 20)

Ainda neste mesmo livro, percebemos que a questão étnica é pungente na sociedade, de tal forma que as mulheres brancas chegam a obter maiores oportunidades, quando tomamos como referência os homens negros. Assim, o país assentado em valores patriarcais cede lugar ao sexo feminino no momento em que o assunto é a cor da pele. Do mesmo modo, a mulher branca passa a ter um papel mais representativo em relação ao afro-descendente e, obviamente à negra. Por meio destas constatações, Alzira Rufino mostra que as afro-brasileiras encontram-se no último patamar da pirâmide social. Desta forma, ficam sujeitas a todo tipo de exclusão, à violência, ao assédio sexual, dentre outras situações humilhantes. Reverter toda essa realidade é o objetivo desta escritora, pois busca incentivar seu grupo a romper barreiras, promovendo mudanças e acreditando em seu potencial: “Na medida em que se libertam dos estereótipos de mulata-tipo-exportação, acreditando no seu potencial intelectual e na sua própria força, as mulheres negras fortalecem sua autoestima, apoiadas em sua história de resistência.” (RUFINO, 1997: 23)

A história de mulheres resistentes é uma recorrência na obra, de forma que pode ser observada em seu livro de poesia Eu, mulher negra, resisto. Os versos de Alzira Rufino resgatam o papel histórico de importantes figuras femininas, as quais mereceram destaque devido a suas trajetórias de força e luta contra a subjugação dos pertencentes à etnia negra. Neste contexto enquadra-se Luiza Mahin, a quem a autora faz uma homenagem no poema de mesmo nome:

Filha de gêge

na escravidão

Luiza Mahin

sofria os negros

 

Luiza de gêge

mulher em luta

todo dia toda noite

em espadas

 

Mahin dos Malês

posição ao sol couraça

 

Luiza revolta a noite

vermelho o chão da Bahia

(Rufino,1988: 17)

Luiza Mahin, mãe do poeta Luís Gama, participou e articulou a Revolta dos Malês, na Bahia, no ano de 1835 e estava sempre envolvida nos levantes que procuravam modificar as situações humilhantes na qual os escravos viviam. Segundo consta no site Casa da Cultura da Mulher Negra, se os planos dos rebeldes não tivessem sido revelados e consequentemente a vitória fosse concretizada, Luiza Mahin teria sido entronizada Rainha da Bahia Rebelde. É latente na obra de Alzira Rufino a necessidade de buscar no passado personalidades que se tornaram símbolo de força e resistência. Assim, além de valorizá-las a escritora acaba por incentivar as mulheres de hoje, como ela mesma afirmou, a vencer novos obstáculos apoiando-se na história de vida destas figuras femininas. Não é difícil compreender porque encontramos um outro nome que mereceu destaque em Eu, mulher negra, resisto. Refiro-me a Winnie Mandela, conhecida também por envolver-se na mobilização das mulheres sul-africanas contra as leis segregacionistas do apartheid:

Winnie,não perca a garra

porque Mandela resiste

Winnie, se o câncer mata

mais que a luta não maltrata

 

Winnie, a luta é neblina

noite também amanhece

e o negro mostra pingos

não o olhar de mendigo

 

com o seu toso teça

a chegada da manhã

Winnie, mulher, seja

seja

(Rufino, 1988: 21)

O poema “Winnie” deixa florescer palavras de encorajamento e de crença na garra da heroína africana. O eu lírico sente-se confiante e, ainda que a luta seja comparada à dor de um câncer, este segue acreditando em uma nova perspectiva para o futuro e na chegada de um amanhã mais justo. Podemos perceber o grande caráter de importância de Luiza Mahin e Winnie Mandela, que buscaram uma mudança de postura em diferentes épocas e não se sujeitaram a papéis apagados na história, tentando eliminar os preconceitos do sistema opressor ao qual estavam submetidas.

Alzira Rufino acredita nas heroínas do passado, mas também nas do presente, porém muitas delas ainda não tomaram consciência de suas virtudes e de seu poder modificador. Em “boletim de ocorrência”, o eu enunciador mostra-se positivo e clama para que a mulher negra enfrente o obstáculo da discriminação, o qual se torna insignificante perante sua força interna: “mulher negra, / não pára / por essa coisa bruta / por essa discriminação morna, / tua força ainda é segredo, / (...) / tua negritude incomoda / teu redemoinho de forças afoga” (Rufino, 1988: 19). Dessa forma estimulante e resistente, a escritora segue tecendo seus versos reafirmando sempre a dignidade da mulher negra na grande parte dos poemas que irá discutir esta temática. Mas, Alzira Rufino não se prende apenas a ela e se atém a outros aspectos concernentes a sua raça. Detém-se também na história coletiva que faz parte do passado de todos os irmãos de sua cor. É o caso do poema “outro jardim”, no qual há a emergência de fatos vivenciados na escravidão os quais causam desgosto e o desejo de buscar um ambiente isento de tamanha amargura:

vi negro sofrer

chibata batendo

bata batendo

iá iá

ai ai ai

uma coisa velada

magoada

nó na garganta

vou m`imbora

iaiá

florescer noutro jardim

(Rufino, 1988: 29)

Neste trecho, o sujeito de enunciação desvela o sofrimento vivenciado pelo escravo submetido ao castigo do açoite. Por meio da musicalidade e do jogo de palavras é possível vislumbrar o movimento do chicote no momento da tortura. Em seguida, os recursos poéticos nos fazem ouvir o som da chibata misturando-se aos gritos de dor do negro: “iá iá / ai ai ai”. Através do paralelo entre passado e presente encontramos outro poema que comprova a existência de torturas distintas daquelas vivenciadas no período escravocrata, porém não menos dolorosas:

é na arte do negro

de viver

melhor dizendo

sobreviver

com essa coisa que arrasta

o tronco que tentam esconder

mas esses troncos existem

no conviver

os troncos estão nas favelas

vejo troncos nas vielas

nas moradias fedidas

nas peles sem esperança

nas enxurradas de não

(Rufino, 1988: 16)

O tronco no qual eram amarrados os escravos para que assim fossem castigados transforma-se em metáfora neste poema e relata como a tortura ainda existe, não mais por meio da chibata, mas sim através das privações de direitos e da condenação à exclusão social. Esta mesma vertente é seguida em “sufoco”, ao denunciar a realidade de muitos negros sujeitos a condições mínimas de sobrevivência: “eu tenho de ir / prá viela / do trabalho, do sufoco / do medo sem liberdade / do salário que não dá / nem mesmo pra ver Piaf / (...) / sem lazer e sem perdão, / mas o patrão diz não,” (Rufino, 1988: 50). Embora esteja em primeira pessoa, podemos tomar o “eu” do poema como um eu coletivo, uma vez que a rotina do sufoco retratada faz parte do cotidiano da maioria dos afro-descendentes. Os versos explicitam ainda como os negros encontram-se encurralados nesta “viela”, interpretada aqui como um beco sem saída quando pensamos em seus salários de fome, em seu “medo sem liberdade” e em todas as privações pelas quais vivem na sociedade.

O preconceito em suas várias facetas é tema recorrente nos versos de Alzira Rufino. No poema “rota”, o eu enunciador relata o quanto o racismo impera na sociedade brasileira e acaba por determinar o destino daqueles que carregam o estigma da cor: “depois da morte / um negro morto / sem mandato / modismo brasileiro / tapas no rosto / revólver na boca / episódio na noite / ontem” (Rufino, 1988: 30). Outro elemento do poema que devemos ressaltar é a retratação irônica do espaço social habitado pelos negros. Ao introduzir os versos “modismo brasileiro” e “episódio na noite / ontem” a autora faz menção ao tratamento dado aos negros pela instituição policial, mostrando que a prática do abuso de poder é recorrente.

Num país onde a segregação racial é latente, nota-se um forte desejo, por parte de muitos escritores afro-descendentes, de construir um lugar mais justo onde não existam impunidades, onde o olhar lançado ao negro não seja o da discriminação e onde a cultura afro-brasileira possa ser valorizada. Em “telúrica”, o continente africano irá suprir este anseio e surgir como a representação de um ambiente idealizado enquanto espaço de liberdade, sendo identificado como a “terra-mãe”, “paraíso perdido” para onde os negros desejam retornar: “talvez, quem sabe, talvez / eu volte prá terra roxa / coberta de matagais / talvez, quem sabe, talvez / eu volte pro barro em molde / eu volte prá terra negra / África tribo imortal” (Rufino, 1988: 28). A semântica do poema caracteriza a “terra mãe” como um ambiente marcado pela simplicidade, fato que pode ser constatado nas palavras “matagais”, “barro em molde” e “tribo”. É para este espaço, considerado pelo mundo ocidental como selvagem, que o eu lírico sente desejo de voltar, pois paradoxalmente foi neste ambiente “primitivo” que os negros conheceram o verdadeiro significado de palavras como liberdade e onde estavam abrigados sentimentos mais humanos.

Seguindo um outro viés da poesia de Alzira Rufino, não poderíamos deixar de notar a presença da cultura africana em sua obra. Esta muitas vezes se apresenta por meio dos ritmos e nas referências aos orixás. Em “para um afoxé” as rimas formam musicalidade semelhante à batida do tambor e a disposição dos versos na folha remete ao movimento de uma dança:

bate bumbo

bate tambor

 

bate bumbo

bate tambor

 

nêgo qué falá

nêgo qué falá

 

fale nêgo fale

fale sua dor

fale da senzala

mostre seu valor

 

navalha no pé

ginga no cordão

 

joga capoeira

levanta do chão

(Rufino, 1988: 37)

Assim, dança e música aparecem como forma de exorcizar as amarguras vividas pelo negro, e sua voz, antes silenciada, emerge nesse ritual permitindo-lhe desatar o nó preso na garganta ao retratar o que representou a senzala e o sistema escravista causadores de tanta dor.

No que concerne aos orixás, estes representam uma das maneiras de resgatar a cultura herdada dos africanos e obviamente de valorizá-la. Sendo assim, encontramos a presença de alguns deles como Oxum, Ogun, Exu, mas em especial destacaremos Iansã, pois suas virtudes confundem-se com a trajetória engajada de Alzira Rufino e marcada por intensa luta: “Iansã – Oyá mulher / dona de vento e relâmpago / tua beleza é o fogo / o teu raio decisão / animas o que é vida / lá onde o amor é sentido / zarpando do teu olhar / rota de estrela e paixão” (Rufino, 1988: 40). O orixá, cultuado na África como Oyá, deve ser sempre saudada após os trovões, e é caracterizada como guerreira por buscar caminhos de grandes lutas. Dessa forma, Iansã torna-se ícone na batalha de Alzira Rufino contra o preconceito e a exclusão da mulher negra, servindo-lhe também como exemplo e encorajamento nesta meta pela igualdade de direitos.

Os comentários expostos até o momento mostraram uma face da obra de Alzira Rufino vinculada a uma literatura engajada, que objetiva principalmente tratar de questões que dizem respeito à mulher pertencente a seu grupo étnico. Percebemos também que, embora seu alvo primordial seja a figura feminina, a escritora discute ainda, tanto questões do gênero, quanto situações que abrangem toda a etnia negra. Assim, como uma autora que busca problematizar questões concernentes a toda sua raça, ela não poderia se abster do público infantil, para o qual foi escrito um livro intitulado Muriquinho Piquininho.

A história, direcionada para as crianças negras, relata episódios da diáspora africana sob a perspectiva de Muriquinho, um menino nascido na África que, sem ter consciência do que lhe acontecia, se viu vítima do tráfico negreiro e da separação de sua família. O caráter ingênuo do personagem não lhe permite compreender porque ele e seus pais estavam sendo “arrancados” de sua terra por “aqueles homens” responsáveis pelo tráfico negreiro. Estes, que aos olhos de Muriquinho eram estranhos e feios, concediam um tratamento aos negros semelhante ao que seu pai dava à caça, na verdade inferior: “o pai, o tio, amarraram. Será que eles acharam que nós somos caça? ...e quando o pai disse que não ia, eles bateram nas costas do pai. Saiu sangue, mãe. O pai não faz isso na caça.” (Rufino, 1989: 20-23). O discurso do dominado prevalece e segue relatando a forma desumana com que eram tratados os negros, dessa forma a história da diáspora africana passa a ser contada a partir de um outro olhar, o do negro, na grande parte das vezes ignorado. A narrativa prossegue expondo os fatos, sempre através da ótica da criança, arrolados no navio negreiro até sua chegada ao Brasil. Ao final, Muriquinho se apropria do discurso do dominante, ao repetir o que sempre ouvia: “negrinho também se aproveita”. Porém, o ponto de vista adotado pelo menino ao utilizar a frase se diferencia e muito da maneira do branco, pois Muriquinho comprova que o negrinho não se aproveita só como força de trabalho, mas antes, como força intelectual, política e cultural. E para comprovar essa ideia, a autora lista nomes como os de Machado de Assis, Zumbi, Bob Marley, Martin Luther King e tantos outros que se diferenciaram por seus talentos e virtudes. O intuito de Alzira Rufino neste livro está vinculado ao resgate da ancestralidade africana por um outro viés, ambientando a criança a um universo desconhecido da história dos negros, desfazendo da visão preconceituosa atribuída a eles e deste modo, reforçando e valorizando a identidade do jovem afro-descendente.

Consciente de seu papel social enquanto escritora, Alzira Rufino edifica uma obra assentada no engajamento com a causa negra. Seus versos instigam mudanças, uma vez que neles emergem consciência, resistência e valorização da raça e cultura afro-descendente. Literatura feminina, infantil, social, mas acima de qualquer aspecto negra, fundem-se para formar uma obra questionadora que anseia a extinção do preconceito e a afirmação de um lugar mais justo para os negros.

 

*Graduanda em Letras pela UFMG

Referências:

Rufino, Alzira. Eu, mulher negra, resisto. Santos: edição da autora, 1988.

Rufino, Alzira. Muriquinho Piquinhinho. Santos: edição da autora, s/d.

Rufino, Alzira. O poder muda de mãos, não de cor. Santos: s./I, 1997.

http://www.casadeculturadamulhernegra.org.br/mn_mn_t_histo01.htm

http://www.casadeculturadamulhernegra.org.br/mn_mn_t_histo02.htm

http://www.umbandaracional.com.br/iansa.html

 

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