A utopia de Aline França

 

Aline Alves Arruda*

“OXUM, OXUM,.
Amenize a fúria de Ogum
Deixe Xangô, suas mulheres amar
Obá obá

Deixem de guerrear...”

Aline França
A mulher de Aleduma

 

 Dos escritores afro-brasileiros “esquecidos” pela literatura canônica, certamente Aline França está entre eles. Tão “esquecida” que, pouco sabemos sobre esta ex-telefonista baiana autora de A mulher de Aleduma. Tentando, pois, trazer ao conhecimento público sua escrita negra e feminina é que propomos a análise dessa obra.

O romance da autora baiana narra a história de uma ilha desconhecida onde vivem os negros descendentes do velho Aleduma,1 vindo do planeta IGNUM, que é governado pela deusa Salópia. Lá, os negros vivem em perfeita harmonia e simplicidade até que ambiciosos brancos tentam transformar o lugar em um paraíso turístico.

O início da narrativa já nos chama atenção pela paródia que a autora faz da criação do mundo na Bíblia. Nas primeiras páginas, o narrador nos explica o nascimento da ilha de Aleduma semelhante ao que diz o Gênesis. O criador da ilha, entretanto, é um Deus negro, de inteligência superior, que sai de IGNUM a mando da Deus Salópia para povoar “certo continente da Terra”. Aleduma, o deus negro, estaria encarregado de escolher o local onde se desenvolveria a raça negra. À semelhança de Adão e Eva, um casal vencedor de uma prova em IGNUM viria com o velho deus negro ao nosso planeta com a missão de povoar o continente escolhido. Assim como o primeiro casal bíblico, eles também andavam nus. Assim, a raça negra se desenvolve e ocupa o planeta, mas logo os filhos de Salópia se veem escravizados e pisoteados pelos brancos. Aleduma, então, retorna à Terra e cria um refúgio para os irmãos negros numa ilha, o chefe Preto Velho dá ao lugar o nome em homenagem ao deus negro que a criou.

Nessa interessante paródia percebemos a alusão do narrador ao nosso passado escravocrata e ao sofrimento que ele provocou. E ao reconstruir a criação do mundo, a autora desconstrói a história branca, coloca seu ponto de vista afrodescendente criando os deuses negros e de inteligência superior. Além disso, Salópia, a deusa que governa IGNUM, o planeta onde a raça negra se originou no romance, representa a superioridade feminina que se confirmará ao longo da obra com outras personagens: Maria Vitória e Irisan são as mulheres escolhidas como intercessoras entre IGNUM e a ilha de Aleduma. A elas, os habitantes respeitam e obedecem.

Os nomes de sons africanos estão presentes em todo o romance, mostrando as marcas da literatura afro-brasileira: Mucujaí, Ogadi, Catilê, Datigum, entre outros.

A ilha criada por Aline França faz intertexto, ainda, com a ilha de Tomas More, “Utopia”, palavra que, em grego, significa “em lugar nenhum”. A ilha de More é um lugar em que a sabedoria e a felicidade do povo decorrem de um sistema social perfeito. Assim como esta, a ilha de Aleduma também é imaginária e carrega a característica de ser uma ilha do sonho, do imaginário, onde tudo é belo e perfeito. Segundo o filósofo Karl Mannheim, “um estado de espírito é utópico quando está em incongruência com o estado de realidade dentro do qual ocorre” (1986, p.216). É o caso de Aleduma em que, ao contrário da nossa realidade, não havia problemas nem crimes. Lá, reinava a harmonia, até a chegada do homem branco, que, no livro, é representado por Hermano, ambicioso empresário que almeja explorar a ilha. Aliás, a ambição é uma marca do branco nesta obra. Com exceção da personagem Bibiana, sobrinha de Hermano, todos são cruéis e sem caráter.

Essa personagem é porta-voz de denúncias contra o racismo. Em certo momento da narrativa, diz Bibiana: “Vocês criaram o mito negro, sensual, rico e dotado de grande virilidade. Mas saibam que Tadeu é um homem inteligente, enxerga muito bem a verdade” (França, 1985, p. 60). Tadeu é o negro por quem Maria Vitória é apaixonada. Ele é filho adotivo de um empresário ambicioso que assassinou seus pais verdadeiros. Tadeu, como os outros negros da narrativa, tem bom coração e bom caráter e se mostra consciente da memória coletiva que carrega. Ao descobrir o assassinato dos pais verdadeiros pelo pai adotivo, diz a este que vive em uma “senzala sofisticada” (p. 76), referindo-se à vida de conforto que levara até então como filho adotivo sobre o qual o pai projetava todos os desejos, obrigando-o a segui-lo em nome do patrimônio familiar que deveria ser zelado.

Os brancos, como já dito, são exemplos de ambição e arrogância. São eles os porta-vozes do preconceito na obra, como na fala de Hermano a Tadeu: “Qual a razão de proteger esses negros primitivos? É por que é negro também? Mas você é diferente deles, tem outra formação” (p. 65). Nessa fala do personagem percebemos a denúncia da escritora ao pensamento branco racista que considera os negros “primitivos” e que, se há exceção, são aqueles criados como brancos, como é o caso de Tadeu na narrativa. Eleonora é outra personagem branca que vocifera contra os negros durante toda o enredo. Interessada na riqueza de Tadeu, ela não admite perdê-lo para uma negra como Maria Vitória. E, por isso, considera os habitantes de Aleduma “imbecis”, “bandos de feiticeiros”, etc. Ao conhecer Bernado, irmão de Maria Vitória, Eleonora se recusa a apertar a mão do negro dizendo: “Sou uma mulher de fino trato, não iria apertar a mão desse negro que só tem água salgada misturada com merda na cabeça, tenho nojo dos negros” (p. 56). Outra denúncia é feita pela autora através de Hermano quando este estupra Maria Vitória, a filha de Aleduma. A resistência afrodescendente é maior e, apesar de grávida, Maria Vitória não se sucumbe. Entretanto, repetindo a história que acontece com muitas personagens negras da literatura brasileira, o fruto desse amor inter-racial não sobrevive. Apenas Datigum, filho de Maria Vitória e Tadeu, nasce.

Ao final da narrativa, Aleduma é invadida pelos turistas e transformada em ilha de nudismo. O velho Aleduma destrói a ilha e salva os habitantes. Nesse momento, a narrativa se transfere para os dias atuais e a deusa Salópia vem à Terra convidar pessoas para um congresso em IGNUM. Aqui, outra referência à cultura afro-brasileira: numa quadra de afoxé, os participantes de um ensaio, cantam a Oxum e Ijexá, texto transcrito aqui, em nossa epígrafe. Xangô também é mencionado.

O último parágrafo do romance, em letras maiúsculas, diz: “A ILHA DE ALEDUMA SE FOI, MAS A RAÇA NEGRA ESTÁ REPRESENTADA...” (1985, p. 95). Essas palavras finais nos fazem crer que apesar de a ilha utópica ter sido destruída, a etnia negra está representada, tanto por personagens da ficção de Aline França, como por autores que, como ela, devem ser conhecidos e respeitados por imprimirem em nossa literatura sua marca afrodescendente.

Nota

1 O nome da ilha, provavelmente, vem da junção das iniciais do nome do escritor Alexandre Dumas, que a autora dizia guardar na memória devido às estórias dele contadas pela mãe na sua infância.

Referências

FRANÇA, Aline. A mulher de Aleduma. Salvador: Ianama,1985. Ilustrações de Douglaz Ge.

MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.

MORE, Thomas. A Utopia. São Paulo: Editora Martin Claret, 2004.

 

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* Aline Alves Arruda é Doutora em Letras, Literatura Brasileira, pela UFMG e Mestre em Teoria da Literatura pela mesma Instituição. É Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais – IFMG, Campus Betim, e coautora de Literatura afro-brasileira - 100 autores do século XVIII ao XXI  (2.ed, 2019) e de Literatura afro-brasileira - abordagens na sala de aula (2.ed, 2019).

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