Na cartografia do romance afro-brasileiro, Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves*

 

Eduardo de Assis Duarte**
UFMG

A história é uma seleção natural. Versões mutantes do passado lutam pelo domínio; surgem novas espécies de fato, e as verdades antigas, antediluvianas, ficam contra a parede, com os olhos vendados, fumando o último cigarro. Só sobrevivem as mutações dos fortes. Os fracos, os anônimos, os derrotados deixam poucas marcas. (...) A história só ama aqueles que a dominam: é uma relação de escravidão mútua.

Salman Rushdie

  

As reflexões que se seguem tiveram como ponto de partida o projeto integrado "Afrodescendências: raça/etnia na cultura brasileira", que empreendeu o mapeamento da produção de duzentos e cinquenta escritores afro-brasileiros. Os resultados iniciais do levantamento estão num banco de dados disponível para consulta no NEIA – Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade, da FALE-UFMG. Desse conjunto, foram escolhidos cerca de cento e vinte escritores com obra individual publicada, cujos perfis – notícia biográfica, bibliografia, fontes de consulta, inclusive digitais, estudo crítico e seleta de textos –, estão sendo disponibilizados para consulta no literafro – Portal da Literatura Afro-brasileira, através do endereço www.letras.ufmg.br/literafro. Além disso, encontra-se em fase de conclusão uma antologia crítica com estudos dos autores selecionados, trazendo ao final depoimentos de escritores e de estudiosos voltados para o resgate dessa escrita, bem como de artigos abordando sua especificidade e o lugar por ela ocupado em nossa produção letrada.

Num pequeno retrospecto histórico, pode-se afirmar que, partir de fins dos anos 1970, a produção de escritores que assumem seu pertencimento étnico cresce em volume e começa a ocupar espaço na cena cultural, ao mesmo tempo em que as demandas do movimento negro ampliam sua visibilidade. Desde então, cresce da mesma forma, mas não na mesma intensidade, a reflexão acadêmica voltada para esses escritos, que, ao longo do século XX, fora privilégio quase exclusivo de pesquisadores estrangeiros como Bastide, Sayers, Rabassa e Brookshaw.

Para tanto, contribuiu enormemente o trabalho seminal de poetas e prosadores em organizações como o Quilombhoje, de São Paulo, a que se somaram grupos de escritores de Salvador, Rio de Janeiro, Porto Alegre e outras capitais. E, passadas três décadas de intensa busca pela ampliação de seu horizonte recepcional, a literatura afro-brasileira adquire legitimidade crescente, tanto nos cursos de graduação e pós-graduação e nas listas dos vestibulares de universidades públicas e privadas, quanto no meio editorial. A série Cadernos Negros completou em 2008 trinta e um anos de publicação ininterrupta, e um romance voltado para a história não-oficial dos afrodescendentes como Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, objeto dessas reflexões, foi acolhido por uma editora de grande porte.

Não há dúvida de que, por um lado, a ampliação da chamada “classe média negra”, com um número crescente de profissionais com formação superior buscando lugar no mercado de trabalho e no universo do consumo e, por outro, a instituição de mecanismos como a Lei 10.639 ou as Ações Afirmativas, vem contribuindo para a construção de um ambiente favorável a uma presença mais significativa das artes marcadas pelo pertencimento étnico. Tais constatações escapam aos propósitos de uma crítica literária stricto sensu e, também, aos objetivos desse texto. Funcionam, todavia, como pano de fundo para lembrar que, ampliados o público e a demanda por estudos abordando tais escritos, ampliam-se igualmente as responsabilidades dos agentes que atuam nos espaços voltados para a pesquisa e a historiografia literárias, em especial nas Instituições de Ensino Superior.

A questão conceitual

O momento é, pois, propício à construção de operadores teóricos com eficácia suficiente para ampliar a reflexão crítica e dotá-la de instrumentos mais precisos de atuação. Nesse sentido, cabe avaliar o “estado da arte” de dois desses instrumentos, a saber, os conceitos de literatura negra e de literatura afro-brasileira.

A publicação dos Cadernos contribuiu significativamente para a consolidação de um conceito de literatura negra empenhada, a partir de um perfil editorial marcado predominantemente pelo protesto contra o racismo, tanto na prosa quanto na poesia, na linha da tradição militante vinculada ao movimento negro, como demonstra Florentina da Silva Souza (2005, 2006). Para Zilá Bernd (1987), tais textos destacam a presença de um “eu enunciador” que se quer e se proclama descendente de africanos. Ao posicionamento da voz autoral, acrescenta-se o tema do negro, enquanto individualidade e coletividade, inserção social e memória cultural. E, também, a busca de um público afrodescendente, a partir da formalização de uma linguagem que denuncia o estereótipo como agente discursivo da discriminação. A propósito, Ironides Rodrigues, um dos mais destacados intelectuais da geração anterior ao Quilombhoje declara em depoimento a Luiza Lobo:

A literatura negra é aquela desenvolvida por autor negro ou mulato que escreva sobre sua raça dentro do significado do que é ser negro, da cor negra, de forma assumida, discutindo os problemas que a concernem: religião, sociedade, racismo. Ele tem que se assumir como negro. (2007: 266)

Ao longo das três últimas décadas, os Cadernos pouco se distanciam desta postura incisiva – que se transformou em marca registrada –, e que termina por afastá-los de posicionamentos menos empenhados em termos de militância, como, por exemplo, o do poeta Edimilson de Almeida Pereira, dos ficcionistas Muniz Sodré, Nei Lopes, Joel Rufino dos Santos ou, no campo da escrita infanto-juvenil, Júlio Emílio Braz e Heloisa Pires, para citarmos apenas alguns contemporâneos.

Por outro lado, se retrocedermos nossas observações à primeira metade do século XX, não poderemos descartar a tradição do negrismo modernista, na qual se destacam, entre outros, Jorge de Lima e Raul Bopp ou os escritores do grupo mineiro “Leite Criôlo”. E, nesse caso, não teremos como compará-los à literatura de Luís Silva (Cuti), Oswaldo de Camargo ou Eustáquio José Rodrigues: o que existiria de semelhante, sob qualquer ângulo de abordagem, entre a Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo e a "Nega Fulô", de Jorge de Lima? O ponto de vista que conduz a perspectiva dos Poemas negros, deste último, é bem outro, externo e folclórico, na linha do que Oswald de Andrade cognominou de “macumba para turistas”. E, por mais que Urucungo, de Raul Bopp se aproprie de ritmos e entonações oriundas de uma oralidade de raiz africana, não há como negar que a literatura negra desses autores é outra.

Na esteira do legado modernista, críticos como Benedita Gouveia Damasceno (1988) e Domício Proença Filho (1988) também conferem ao conceito um sentido distinto daquele assumido pelos escritores vinculados ao espírito do Quilombhoje, caracterizando-se nitidamente pelo reducionismo temático, que não leva em conta o pertencimento étnico e a perspectiva autoral. Assim, por tais peculiaridades, já se podem vislumbrar as limitações operacionais do conceito. Há ainda outra vertente, de natureza mercadológica, que diz respeito ao texto “negro” como sinônimo de narrativa de terror, violência e suspense, no estilo do romance e do filme noir da indústria cultural. Portanto, da militância e celebração identitária ao negrismo folclorizador, passando por escritos distantes tanto de um extremo como de outro, vemos que a “literatura negra” são muitas, o que, no mínimo, enfraquece e limita sua eficácia enquanto operador teórico, a par do inegável simbolismo político.

Já o termo afro-brasileiro, por sua própria configuração semântica, remete ao tenso processo de mescla cultural em curso no Brasil desde a chegada dos primeiros escravos. Processo de hibridação étnica e linguística, religiosa e cultural. Poder-se-ia dizer, com Antonio Candido, que, afro-brasileiros são também todos os que provêm ou pertencem a famílias mais antigas, cuja genealogia remonta ao período anterior aos grandes fluxos migratórios do século XIX. E, como este, outros reparos poderiam ser arrolados, dado o caráter não-essencialista do termo. Para Luís Silva (Cuti), ele funciona como elemento atenuador que diluiria o sentido político contido na palavra “negro”. É certo que, por abraçarem toda a gama de variações fenotípicas inerentes à mestiçagem, termos como afro-brasileiro ou afrodescendente trazem em si o risco de assumirem sentido análogo ao do signo “pardo”, tão presente nas estatísticas do IBGE, quanto execrado pelos fundamentalistas do orgulho racial traduzido no slogan “100% negro”.

Deixando de lado polêmicas de fundo sociológico, antropológico e político, também é certo que não há, sobretudo no Brasil, uma literatura 100% negra, tomada aqui a palavra como sinônimo de africana. Nem a África é uma só, como nos demonstra Apiah (1997), nem o romance, o conto ou o poema afro-brasileiros são construções provindas integral e unicamente do Atlântico Negro (Gilroy, 2001). Num universo cultural como o nosso, onde verdadeiras constelações discursivas – localizadas tanto regionalmente, quanto no que Nora denomina “lugares de memória” –, se dispõem ao constante reprocessamento, insistir num viés essencialista pode gerar mais polêmicas do que ferramentas teóricas e críticas eficientes para o trabalho pedagógico de formar leitores.

A afro-brasilidade, uma vez aplicada à configuração da literatura que se deseja pertencente à etnicidade afrodescendente, configura-se, por outro lado, como perturbador suplemento de sentido ao conceito de literatura brasileira, sobretudo àquele que a coloca como “ramo” da portuguesa. Além disso, inscreve-se como um operador capacitado a abarcar melhor, por sua amplitude necessariamente compósita, as várias tendências existentes na demarcação discursiva desse campo identitário em sua expressão literária.

Um bom exemplo pode estar na produção de autores do século XIX remanescentes de africanos, submetidos à hegemonia do branqueamento como passaporte para a aceitação social. E, ainda, submetidos a um pensamento científico que praticamente os proibia de se considerarem negros ou mulatos, a exemplo de Maria Firmina dos Reis, Machado de Assis e tantos outros. Autores impelidos a uma negrícia ou negrura abafadas, e tendo na literatura uma forma consciente ou inconsciente de expressão de uma espécie de retorno do recalcado.1 Em ambos, não há um sujeito de enunciação que se quer e se assume negro, como o “Orfeu de Carapinha” Luiz Gama. Daí a dificuldade de enquadrar “Pai contra mãe” ou Úrsula como “literatura negra”, e não apenas devido à sobrecarga de sentidos folclorizantes ou políticos agregados ao conceito.

Nesse contexto, vemos o conceito de “literatura afro-brasileira” como uma formulação mais elástica e mais produtiva. Ele abarca tanto a assunção explícita de um sujeito étnico – que se faz presente numa série que vai de Luís Gama a Cuti, passando pelo “negro ou mulato, como queiram”, de Lima Barreto –, quanto abarca o dissimulado lugar de enunciação que abriga Machado, Firmina, Cruz e Sousa, além de Patrocínio, Paula Brito, Gonçalves Crespo e tantos mais. Acreditamos, pois, na maior pertinência do conceito de “literatura afro-brasileira”, presente em nossos estudos literários desde o livro pioneiro de Roger Bastide (1943), com os equívocos, é certo, que aquele momento histórico não permitia a ele superar, em especial no tocante a Cruz e Sousa. E também presente nas reflexões de Maria Nazareth Fonseca (2000, 2002, 2006), Moema Augel (2007) e, mais enfaticamente, de Luiza Lobo (2007). Adotado, enfim, por praticamente todos os que lidam com a questão nos dias de hoje. E, também, encampado pelos próprios autores do Quilombhoje, seja nos subtítulos dos Cadernos Negros, seja no próprio volume teórico-crítico lançado pelo grupo, em 1985, com o título de Reflexões sobre a literatura afro-brasileira.

Mas, juntamente com a configuração terminológica, que elementos distinguiriam tal produção? Apesar do caráter polêmico inerente a qualquer inscrição identitária ou política nos estudos literários, e de ser ainda um conceito em construção, algumas marcas discursivas podem ser destacadas: temas afro-brasileiros; construções linguísticas marcadas por uma afro-brasilidade de tom, de ritmo, sintaxe ou sentido; uma voz autoral afro-brasileira, explícita ou não no discurso; um projeto de transitividade discursiva, explícito ou não, com vistas ao universo recepcional; mas, sobretudo, um lugar de enunciação que conforma um ponto de vista política e culturalmente identificado à afrodescendência, como fim e começo.2

O Romance afro-brasileiro

Assim, ao longo da pesquisa vem se confirmando a existência de um veio afro em nossas letras, a partir de dois marcos referenciais, ambos datados da década de 1850, momento em que a literatura do novo país dava seus primeiros passos: as publicações das Trovas burlescas, de Luiz Gama, e do romance Úrsula, de Maria Firmina dos Reis. Luiz Gama, homem de letras abolicionista, baiano nascido livre e vendido como escravo pelo próprio pai, fez história no auge do período escravista ao posicionar seus escritos “nas abas do Parnaso”, declarando-se “Orfeu de Carapinha”, sempre em busca da musa negra, sua “musa de azeviche”. Já Firmina, ao colocar o escravo Túlio como referência moral da narrativa, inverte em seu romance a ordem axiológica que rebaixava o negro e a mulher. E, pela voz da preta Suzana, faz a África surgir pela primeira vez em nossas letras como lugar de liberdade. Já o tráfico, tem suas entranhas expostas nas inéditas cenas em que se narra em detalhes o porão do navio negreiro, cenas que, quase um século e meio depois, vão estar também na narrativa de Ana Maria Gonçalves.

A partir desses dois marcos iniciais, vai sendo cartografada uma vertente afro na literatura brasileira. No entanto, desde as últimas décadas do século XIX e, ao longo de todo o século XX, é visível a predominância da poesia na literatura dos autores pesquisados. De Luiz Gama a Cuti, passando por Lino Guedes, Solano Trindade, Oswaldo de Camargo, Adão Ventura, ou Oliveira Silveira, o poema torna-se o modo de expressão preferido. Já a prosa de ficção tem no conto sua forma mais expressiva e volumosa, abarcando o trabalho de inúmeros autores, entre eles, os citados Cuti e Oswaldo de Camargo, mas também Miriam Alves, Henrique Cunha Jr., Esmeralda Ribeiro, Márcio Barbosa, Geni Guimarães, Conceição Evaristo, Nei Lopes, Muniz Sodré, entre outros.

Ao lado do conto, porém, narrativas como a já citada Úrsula, que, diga-se de passagem, amargou longas décadas no esquecimento, ou Mota Coqueiro, que José do Patrocínio traz à luz em 1877, além do Isaías Caminha (1909), de Lima Barreto ou os praticamente desconhecidos Água funda (1946), de Ruth Guimarães e A maldição de Canaã (1951), de Romeu Cruzoé, assumem a forma do romance para inscrever os múltiplos aspectos da condição afrodescendente em nosso país. E o fazem a partir de um importante ponto de vista interno, que expressa um lugar de enunciação distinto daquele consagrado majoritariamente pelo cânone. Tais textos, postos em diálogo com a produção mais recente, como A noite dos cristais (1996), de Luiz Carlos de Santana, Ponciá Vicêncio (2003) ou Becos da memória (2006), de Conceição Evaristo, e Um defeito de cor (2006), de Ana Maria Gonçalves, compõem um instigante painel social e humano do negro no Brasil e propiciam a releitura da trajetória do romance brasileiro a partir de um viés étnico e cultural. Através dela é possível a tessitura de um fio condutor, com seus pontos de confluência e de descontinuidade, que leva ao desvelamento – e, ao mesmo tempo, à construção, de uma linhagem ainda não de todo estabelecida em nossas letras – a do romance afro-brasileiro.

É nesse contexto que situamos Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves. Publicado em 2006 e vencedor do “Prémio Casa de las Américas”, o romance de 950 páginas se destaca nessa vertente visualizada até agora. E isto, não apenas por inscrever o cotidiano de horrores da escravidão (tantas vezes recalcado) a partir de uma perspectiva feminina e afrodescendente. Só esse fato já seria suficiente para lê-lo com redobrada atenção. O romance brasileiro ostenta, via de regra, uma considerável hegemonia masculina, tanto na autoria, quanto no protagonismo ou no universo representado. A tônica tem sido o predomínio de narrativas exemplares de homens de relevo, sempre que se trata de representar o passado e de construir uma imagem gloriosa de nação a partir dos feitos dos heróis fundadores.

Vinculado à descrença pós-moderna que interpreta o discurso da História como narrativa, (White, 1992, LaCapra, 1985) o texto de Ana Maria Gonçalves se faz metaficção historiográfica (Hutcheon, 1991) para abrigar outros relatos, inclusive aqueles não-reconhecidos como fontes científicas, origem de uma possível verdade dos fatos. Nesse dialogismo, emergem as vozes de uma memória afro-brasileira colocada nos antípodas da história oficial, que tensiona o discurso do romance rumo ao acoplamento e co-habitação de versões díspares.

Um defeito de cor tem início com um prólogo da autora, em que esta situa historicamente a narrativa ao falar do projeto de escrever sobre o levante dos Malês, ocorrido em Salvador em 1835, e do encontro casual de um manuscrito em português arcaico guardado por muitos anos na “Igreja do Sacramento, na vila de Itaparica (...) em um cantinho dos fundos da casa paroquial” (2006: 15). O suposto manuscrito nada mais é do que Um defeito de cor e, ao final do prólogo, Ana Maria Gonçalves se despede, não sem antes desejar “boa leitura” e explicar que “apenas alguns trechos” são ficção e foram escritos para cobrir partes perdidas do original. O prefácio cumpre a função de paratexto metaficcional e com isto passa a integrar o enredo, recobrindo-o com o velho artifício de emoldurar a criação com a aura do discurso testemunhal. A autora/prefaciadora se esconde atrás de sua personagem e ainda provoca o leitor: “torço para que seja verdade, para que seja ela própria a pessoa que viveu e relatou quase tudo o que você vai ler nesse livro” (2006: 17, grifos nossos).

Já de início se evidencia, pois, o caráter metaficcional do romance, em que figuras da memória histórica e cultural afro-brasileira são apropriadas pela narrativa e ganham a forma de seres de papel submetidos à vontade autoral, que devassa seus recônditos mais íntimos para ressaltar uma humanidade às vezes heroica, às vezes miúda e prosaica. O prólogo, ao mesmo tempo em que põe em relevo o perfil propriamente romanesco do material a ser fruído pelo leitor – visível já na própria narrativa do achamento do “manuscrito” e presente nos inúmeros acasos e peripécias vividas ao longo do entrecho –, aponta igualmente para a história dos africanos e seus descendentes no Brasil, em especial, para o processo de resistência à dominação escravista. E mais: destaca, como num lead jornalístico, a referência à Revolta dos Malês, celebrada como um dos momentos maiores de insubordinação contra o sistema que reduzia os negros a peças da engrenagem de produção fundada no trabalho escravo.

Além disso, o artifício do manuscrito cumpre a função não menos importante de destacar que a romancista não detém em seu arquivo a verdade dos fatos que compõem a história de sua heroína. Antes de passar a palavra à personagem, a autora faz questão de inscrever a existência – e a incorporação – de um texto outro, vindo de um outro tempo e de um outro sujeito, como elo entre a sua voz e a da personagem. Desde o início, desincumbe-se, portanto, da função de guardiã de uma possível veracidade do narrado, numa atitude típica da pós-modernidade, presente em diversos escritos contemporâneos. Descarta desta forma o projeto de fazer romance histórico, tal como referendado na tradição literária ocidental, pois, entre Um defeito de cor e a Revolta dos Malês e, mesmo, a biografia da escrava interpõe-se o manuscrito, construto discursivo que expressa um determinado olhar sobre os acontecimentos e funciona como instância mediadora entre presente e passado, entre o que o leitor vai ler e o que de fato pode ter acontecido. Esse descompromisso com a verdade dos fatos própria ao discurso da história é reforçado pela “confissão” de que, ao passar o texto a limpo, a escritora “completa” o relato com trechos de sua autoria.3

A referência maior do universo representado é a lendária figura de Luísa Mahin, sempre invocada como personagem do levante e símbolo da resistência à escravidão. O ponto de partida da ação é, como vimos, o encontro do manuscrito: texto pretensamente autobiográfico, misto de diário, relato histórico e epístola ao filho, e assumido, desde a primeira linha, por Kehinde – avatar ficcional de Mahin. Nomes e vidas de mulheres negras se imbricam em definitivo quando o leitor, ainda no prólogo, descobre que o “destinatário” do texto que ele vai ler em primeira pessoa é ninguém menos do que o poeta Luiz Gama, tido como filho de Mahin, e também feito personagem por Ana Maria Gonçalves. Já de início, monta-se, pois, uma tríplice textura narrativa ou tripé textual, com a ficção se postando interessada às margens das histórias de vida da mãe e do filho. Mais adiante, o romance sacramenta o vínculo ao fazer a personagem, já de volta à África, assumir também o nome lusitano de Luísa. Mahin, Kehinde; Luiz, Luísa. Entre a lenda e a história, a ficção.

Em carta autobiográfica enviada ao amigo Lúcio de Mendonça e publicada no Almanaque literário de São Paulo para o ano de 1881, Luís Gama, então já no fim da vida e reconhecido por sua militância abolicionista, afirma:

Sou filho natural de uma negra, africana livre, da Costa da Mina (Nagô de Nação) de nome Luíza Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã. 
Minha mãe era de baixa estatura, magra, bonita, a cor era de um preto retinto e sem lustro, tinha os dentes alvíssimos como a neve, era muito altiva, geniosa, insofrida e vingativa.
Dava-se ao comércio – era quitandeira, muito laboriosa, e mais de uma vez, na Bahia, foi presa como suspeita de envolver-se em planos de insurreições de escravos, que não tiveram efeito.(apud: Lisboa, 1982, 50).

O poeta fala do desaparecimento da mãe, das tentativas de encontrá-la e, em seguida, do drama de sua escravização em 1840, aos dez anos, pelas mãos do pai, a fim de que este saldasse uma dívida de jogo. A carta é de domínio público, está disponível no portal literafro e em outros sítios da Internet. Sua autenticidade é referendada pelos biógrafos de Gama, em especial, Sud Mennucci (1938) e Elciene Azevedo (1999). E talvez seja documento único a indicar a filiação do poeta à heroína presente no imaginário da comunidade afro-brasileira.4

Ao longo do século XX, o movimento negro, em seus diversos momentos, venera e resguarda a memória de Luísa Mahin. Nome feito lenda, inclusive pela escassez de dados historiográficos a seu respeito, a imagem da revolucionária inscreve-se na literatura afro-brasileira, como nos belos versos de Miriam Alves em “Mahin Amanhã”:

Ouve-se nos cantos a conspiração
vozes baixas sussurram frases precisas
escorre nos becos a lâmina das adagas
multidão tropeça nas pedras

(...)

“é amanhã, é amanhã”
sussurram
Malês
bantus
geges
nagôs
“é aminhã, Luisa Mahin falô”

              (Alves: 1998, 104)

Tal qual celebração ritualística, o poema difunde e faz jus ao estatuto heroico com que o discurso da memória social afrodescendente entroniza a personagem. Para além da historiografia, o nome de Mahin é transformado em símbolo de luta e resistência e tem lugar garantido na memória da diáspora africana no Brasil: mulher que supera o aviltamento inerente à escravidão, participa de uma revolta importante, e ainda lega a seu povo um filho ilustre, que sobrevive ao tumbeiro, à senzala e, o mais importante, à traição do próprio pai, para se tornar, também ele, ícone de libertação. Ouçamos o texto no momento em que a mãe revela detalhes da vida do filho que ela própria não teve a chance de acompanhar e que toma conhecimento através do relato de terceiros:

Na segunda carta, ele dava muitos detalhes de você, contando tudo sobre a sua vida, que você era amanuense e que também advogava em favor dos escravos, conseguindo libertar muitos deles. Que você estava casado, tinha filhos e era maçom, que escrevia poesias e era muito respeitado por publicar artigos belíssimos e cheios de inteligência nos jornais mais importantes da cidade, e dava inclusive a sua morada (Gonçalves: 2006, 946).

O perfil de homem público ostentado pelo filho só se mostra ao leitor nos instantes finais da narrativa, momento em que a mãe, velha e cega, navega pela última vez rumo à terra de seu cativeiro e libertação, para mais um encontro frustrado. Ao longo do texto, Luiz Gama, na condição de receptor mudo do que se lê, é presença obrigatória, mas algo misteriosa para quem desconhece sua biografia que, de resto, guarda passagens dignas de qualquer romance. Mas é uma onipresença esquiva, corporificada no “você” remissivo construído pelas referências da personagem. Quanto a Kehinde/Luísa, afastada do filho ainda criança, o que sabe (e revela) sobre ele, vem do depoimento de terceiros, e mais uma vez o romance endossa a teoria contemporânea a respeito do estatuto discursivo das referências.

Ao conferir ao texto o formato de correspondência materna para o filho ausente, a autora “feminiza” a narrativa e faz da saga de Luísa Mahin um “relato de mãe” com tudo o que isto implica: abre espaço para o trivial cotidiano em meio ao movimento maior dos fatos, mescla história social com história familiar, e dramas individuais com coletivos. Nessa linha, dialoga com Úrsula, de Maria Firmina dos Reis e com os textos de Carolina Maria de Jesus, ente outros escritos de autoria afro-brasileira e feminina, ao demarcar o ponto de vista da mulher sobre a diáspora africana no Brasil. E mais: centra o enredo nas iniciativas da protagonista, o que relega aos homens um papel eminentemente secundário e menor frente às ações da protagonista. E mesmo a figura do líder Alufá Licutã, “o mais culto dos malês”, conforme indicado no prólogo, desaparece diante das peripécias vividas por Kehinde e seus companheiros nos momentos conturbados em que se prepara e se dá curso à insurreição.

Além disso, a forma epistolar constrói um destinatário ficcional para seu escrito – e este é ninguém menos que um dos ícones da campanha abolicionista e da história do negro no Brasil –, transformado agora em leitor implícito do romance que se quer relato biográfico. A operação é engenhosa e eleva o pretenso destinatário à figuração metafórica do leitor ideal elaborado textualmente: o público afrodescendente instruído, quiçá engajado e militante como Luiz Gama, ainda carente de uma saga heroica dos antepassados. Essa inclinação para o delineamento de um horizonte recepcional específico é típica da literatura afro-brasileira feita a partir do século XX e se deixa ver na própria escolha dos títulos.

A expressão Um defeito de cor traz à baila a prática discriminatória vigente no período colonial de vedar aos descendentes de africanos, mesmo livres, o acesso a cargos públicos ou eclesiásticos, a não ser que renegassem sua identidade de origem – o “defeito de cor” – e se declarassem brancos. Por outro lado, o título funciona como precioso índice temático que conforma um determinado horizonte de expectativas, e dialoga, entre outros, com o Negro preto cor da noite, de Lino Guedes (1932), com os Poemas negros, de Solano Trindade (1936), com o Sortilégio – mistério negro, de Abdias do Nascimento (1957), com A cor da pele, de Adão Ventura (1980) e também com os citados Cadernos Negros.

Um defeito de cor promove, pois, a inscrição metaficcional de um duplo relato de vida, com a inversão, todavia, da ênfase e do próprio foco narrativo, que passa à mãe, tornada epicentro da trama. Órfã até do filho, Kehinde volta aos primeiros anos para desfiar ao leitor a experiência da transitoriedade: da infância nômade à escravização; e da conquista da liberdade à longa procura do rebento vendido e de suas raízes, são contínuos os trânsitos. No entanto, a superação do cativeiro em seus diversos aspectos marca o sujeito diaspórico cujos vínculos familiares e afetivos se desfazem nas ondas do Atlântico Negro para serem refeitos a seguir.

Centrado na trajetória da heroína, o romance encena no feminino a saga africana no Brasil. Afasta-se, talvez por isto mesmo, do monologismo próprio à epicidade encomiástica e do maniqueísmo pelo qual todo branco é explorador e todo negro é vítima. As marcas da violência patriarcal e escravista estão também em África, cenário primeiro e último da trama. A infância de Kehinde em Savalu, no Daomé, é marcada pela visão do estupro seguido de assassinato da mãe e do sacrifício do irmão mais velho pelas mãos dos guerreiros do rei Adandozan. Em seu manuscrito, a africana narra a viagem com a irmã e a avó até Uidá, sua permanência nesse entreposto de comércio e tráfico; o aprisionamento pelos negreiros; a longa viagem ao Brasil, marcada pela morte da avó e da irmã; e a chegada ao litoral baiano.

Nesse momento, as trajetórias de Kehinde e Mahin se aproximam. Despojada de todos os laços afetivos no mundo terreno – o Aiê da cosmogonia iorubá –, mas acompanhada pelos ancestrais no mundo invisível do Orum, a personagem, ainda no navio, recusa o batismo e se joga no mar. Gesto extremo de busca e afirmação identitária, a cena remete a vários significados. No limiar de vida e morte, tem-se um outro batismo: a passagem do tempo pretérito de liberdade ao presente de escravização; e o deslocamento do lugar de origem para o do desterro. E, como signo mediador desse trânsito, o oceano – elo entre o lá e o cá, o antes e o agora. O gesto sacrificial não redunda em morte, Kehinde “renasce” ao sair do porão – a tumba do tumbeiro –, ao tomar contato com as águas. Seu mergulho indica a recusa à aculturação e a defesa dos valores que traz dentro de si. Chega, pois, fortalecida ao novo continente, terra em que terá de fazer muitas concessões para sobreviver, comprar a liberdade, ganhar e perder de tudo um pouco, até voltar ao torrão natal.

O romance toma a forma do testemunho para incursionar pela crônica da escravidão a partir de um olhar interno à afro-brasilidade, oposto ao branco, mas que não idealiza a África, nem o negro. Os horrores da viagem no porão e do cativeiro na plantação no interior baiano surgem em registro realista de tal ordem, que chega ao estupro de um escravo pelo senhor. As faces da violência escravista convivem, no entanto, com bons relacionamentos. A narrativa remete à história de homens e mulheres submetidos à escravidão tanto rural quanto urbana e destaca a cidade como locus privilegiado para a conquista paulatina de uma vida mais livre e sem os rigores das fazendas, onde a vontade dos senhores era lei. Na cidade, negros e negras vão para o “ganho” nas ruas, integram irmandades e muitos conquistam a alforria, passando de simples vendedores a comerciantes, vez por outra bem sucedidos, como no exemplo de Kehinde.

Noutra vertente, o texto dialoga com a nova historiografia e incorpora a denúncia de que os ingleses, formalmente contrários ao tráfico e responsáveis por persegui-lo, forneciam as armas e a pólvora com que os reis africanos capturavam mais e mais escravos. Nessa linha, também aponta a presença de brasileiros, mais especificamente, baianos, como agentes do tráfico, a exemplo de Francisco Felix de Souza, o “Chachá”, espécie de Vice-rei de Uidá, líder de um “enclave” brasileiro no Golfo do Benim, e fundador de uma oligarquia que vigora após sua morte mantendo os mesmos métodos:

O Julião [Félix de Souza] foi o Chachá de que mais gostei, e não apenas porque era um dos melhores amigos do João, mas também por ser homem de grandes ideias, muito trabalhador e justo, embora tivesse quase recuperado a fortuna do pai, o primeiro Chachá, fazendo o que ele fazia e eu reprovava, o tráfico de escravos (Gonçalves: 2006, 926).

A passagem evidencia o novo perfil assumido pela personagem que, mesmo mantendo seus princípios, flexibiliza-os a fim de conviver e negociar com as elites locais. Deste modo, a faceta crítica do texto engloba também a protagonista, mostrada nos avessos da intimidade próprios ao testemunho. Kehinde é “heroína”, mas tem seu lado de “empreendedora”: a órfã escravizada que busca o oceano-útero de Iemanjá para não ter nome português, cede lugar à adulta retornada que admite mesclar o catolicismo à sua crença de origem e adota o nome ocidental. Vence o pragmatismo, Kehinde enriquece e passa a ser também a “Dona Luísa” que todos respeitam e até a “Sinhá Luísa”, comerciante astuta e bem sucedida que ascende à burguesia local como construtora de palacetes e introdutora da arquitetura luso-brasileira no Golfo do Benin. O romance se afasta da univocidade e do monologismo que marcam a saga tradicional. Como inúmeros negros e negras livres presentes na memória da escravidão, também ela convive com a compra de seres humanos. Tantas identificações em processo apontam para o trânsito diaspórico a abalar o império da essência e do o uno identitários. Kehinde se desdobra em Luísa para estar em ambas as faces da violência escravista, objeto e sujeito da história.

O texto descarta a existência de uma verdade única, primeira ou eterna e isto se aplica tanto ao perfil da protagonista, marcada pela identidade rizomática5 própria ao trânsito diaspórico, quanto às diversas formações culturais com as quais seu relato dialoga, em especial, no que toca ao discurso religioso, presente em diferentes manifestações. Nesse aspecto, o descentramento marca igualmente o ponto de vista afro-brasileiro que engendra os valores da narrativa, marcados pela recusa do etnocentrismo e por um olhar relativista e plural que não aceita a intolerância:

Ele [o padre] não gostou nem um pouco do meu comentário sugerindo que todas as religiões eram irmãs, ou pelo menos primas, e disse que talvez sim, bem no início, quando as pessoas ainda não conheciam o verdadeiro Deus, mas que na nossa época já estava mais do que certo que a Igreja Católica era a única aprovada e comandada por Deus, o único e o verdadeiro. Fiquei com raiva de mim porque tinha muitas coisas para falar sobre isso, discordando dele, mas não consegui (Gonçalves: 2006, 838).

Na sequência, a voz narrativa acrescenta que “ninguém poderia dizer qual fé era mais forte ou mais verdadeira, pois Deus escutava a todos, desde que fosse do fundo do coração e em nome do bem” (idem, 839). Mais adiante, a personagem volta à questão e fala da vigilância que exercia sobre Salif, um muçurumim encarregado de dar aulas a João e Maria Clara, seus ibêjis nascidos em África. Isto porque o muçulmano não perdia a oportunidade de entronizar Alá como “Deus verdadeiro” e de ler para as crianças trechos do Alcorão em português. A recusa da personagem em endossar uma crença única, que acarrete o rebaixamento das demais, estende-se ao romance como um todo. O ecumenismo da protagonista expressa a axiologia do texto, que recusa os fundamentalismos e manifesta sua distância quanto ao centramento religioso e cultural.

Deste modo, a narrativa expressa uma sensibilidade especificamente contemporânea frente à complexidade inerente às relações étnicas e culturais. E situa no passado de sua protagonista o olhar descentrado com que são encaradas no presente as tensões próprias ao encontro nem sempre amistoso das civilizações. Se, em sua tessitura linguística, mescla termos iorubá ao português do Brasil, e não apenas para dar mais verossimilhança à fala da personagem, Um defeito de cor endossa em sua visão de mundo a perspectiva do sujeito diaspórico que guarda consigo as marcas da cultura e da religiosidade trazidas das várias Áfricas aqui chegadas. Marcas que se assentam em contato com a diferença, num enraizamento rizomático que as transforma sem apagar certos fundamentos, traços sobreviventes ao processo transculturador. Dentre estes, ganha destaque o lugar ocupado na narrativa pelo discurso religioso. Como se sabe, a cristianização forçada dos africanos e descendentes foi uma dos instrumentos fundamentais para a construção de identidades submetidas. Juntamente com a perda do nome e da língua de origem, o sequestro dos deuses, o apagamento da crença. Daí o forte sentido de resistência ao etnocídio exercido pelos cultos afro-brasileiros desde os tempos da colônia.

No romance, eguns e orixás fazem-se presentes na fala de Kehinde como forças vitais que a conduzem, evidenciando a permanência de suas convicções e crenças de origem. A voz narrativa menciona em detalhe entidades, cerimônias e obrigações, e as integra ao enredo, junto com mães e pais de santo encarregados dos cultos. Já os abikus – crianças que, de acordo com a religiosidade afro-brasileira, portam espíritos que não se adaptam ao mundo terreno e buscam retornar logo ao Orum –, povoam a trajetória de Kehinde desde o início: na infância, um irmão; na juventude, um filho; na velhice, um neto. Os dois últimos morrem prematuramente, apesar dos esforços para salvá-los pela via dos rituais e obrigações às entidades protetoras. Em sua casa africana, a antiga escrava constrói um Peji num dos espaços mais recônditos da morada. E é nesse lugar de culto que crê poder salvar o neto do destino trágico, com banhos, orações e objetos mágicos protetores, sem, contudo, lograr êxito, pois não conta com o apoio da filha, cristã educada na Europa.

A crença ancestral povoa o discurso e as ações da personagem tanto quanto seus hábitos capitalistas e ocidentais. Embora caracterize certos grupos nativos de “selvagens”, a voz narrativa e o romance como um todo ressaltam constantemente a humanidade que, na diferença, os caracteriza. Costumes como a poligamia, adotada por seu filho João, incensado no texto como um dos primeiros africanos formados em engenharia na França, são aceitos e justificados como parte do ethos local. Deste modo, o texto celebra a convivência multicultural e o respeito à diferença, ao mesmo tempo em que descarta o etnocentrismo:

(...) fiquei muito espantada com o que ouvi logo depois, que em uma época não muito distante da nossa, os religiosos europeus se perguntavam se os selvagens da África e os indígenas do Brasil poderiam ser considerados gente. Ou seja, eles tinham dúvida se nós éramos humanos e se podíamos ser admitidos como católicos, se conseguiríamos pensar o suficiente para entender o que significava tal privilégio. Eu achava que era só no Brasil que os pretos tinham que pedir licença do defeito de cor para serem padres, mas vi que não, que na África também era assim. Aliás, em África, defeituosos deviam ser os brancos, já que aquela era a nossa terra e éramos em maior número. O que pensei naquela hora, mas não disse, foi que me sentia muito mais gente, muito mais perfeita e vencedora que o padre. Não tenho defeito algum e, talvez para mim, ser preta foi e é uma grande qualidade, pois se fosse branca não teria me esforçado tanto para provar do que sou capaz, a vida não teria exigido tanto esforço e recompensado com tanto êxito (Gonçalves: 2006, 893).

Ao retomar no final um de seus temas centrais, o romance novamente refuta o pensamento ocidental que, ao longo dos séculos, excluiu a África e os africanos da civilização. Enquanto estratégia de aculturação e submetimento, o “defeito de cor” rendeu frutos perversos ao longo do empreendimento colonial já por demais conhecidos e ainda hoje presentes. Dentre eles, o mais grave talvez tenha sido o silenciamento da história e o rebaixamento de tais povos enquanto sujeitos culturais. Ao fazer o resgate de um passado verossímil o bastante para evidenciar a resistência dos escravos e o êxito dos retornados, uma vez livres das correntes e pelourinhos, o romance de Ana Maria Gonçalves se insere na vertente afro da prosa de ficção brasileira. E isto não apenas em função da matéria trabalhada, ou da linguagem sempre voltada a recusar os signos do preconceito. Um defeito de cor ultrapassa a condição de texto única e simplesmente brasileiro também por se dirigir ao leitor afrodescendente dos dias de hoje trazendo a seus olhos e ouvidos uma história de superação vinda dos antepassados, a partir de uma perspectiva identificada com a visão de mundo e com os valores do Atlântico Negro.

 

Notas

* In TORNQUIST, C. S. et al. (Orgs.). Leituras da resistência: corpo, violência e poder. Florianópolis: Editora Mulheres, 2009, p. 325-348.

1 Sobre a poética da dissimulação na obra de Machado de Assis, ver DUARTE (2007b).

2 Ver a propósito DUARTE 2007a.

3 A propósito dessa mediação, afirma Linda Hutcheon: “A metaficção historiográfica (...) ressalta a natureza discursiva de todas as referências – literárias e historiográficas. O referente é sempre já inserido nos discursos de nossa cultura. Isso não é motivo de desespero; é o principal vínculo do texto com o “mundo”, um vínculo que reconhece sua identidade como construto, e não o simulacro de um exterior ‘real’. Mais uma vez, isso não nega que o passado ‘real’ tenha existido; apenas condiciona nossa forma de conhecer esse passado. Só podemos conhecê-lo por meio de seus vestígios, de suas relíquias.” (1991: 158).

4 . Há suspeitas de que Luís Gama tenha criado para si essa mãe heróica a fim de utilizar sua imagem na propagação do ideal abolicionista. A própria Ana Maria Gonçalves levanta a questão ainda no prólogo: “Especula-se que ela [Luisa Mahin] pode ser apenas uma lenda, inventada pela necessidade que os escravos tinham de acreditar em heróis ou, no caso, em heroínas, que apareciam para salvá-los da condição desumana em que viviam. Ou então uma lenda inventada por um filho que tinha lembranças da mãe apenas até os sete anos, idade em que pais e mães são grandes heróis para os filhos.” (2006: 16)

5 Para o conceito de rizoma, ver Deleuze e Guatari (1997); e, ainda a reflexão de Édouard Glissant (2005) sobre as identidades rizomáticas no âmbito da diáspora africana nas Américas.

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Resumo

 

Publicado em 2006 e vencedor do “Prêmio Casa de las Américas”, o romance Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, se destaca na ficção contemporânea por resgatar o cotidiano de horrores da escravidão, tantas vezes recalcado em nossa memória histórica e cultural, a partir de uma perspectiva feminina e afro-descendente. Vinculado ao paradigma pós-moderno da metaficção historiográfica, o texto se apropria da biografia algo lendária da africana Luiza Mahin, e de seu filho – o poeta Luís Gama –, nascido livre e vendido como escravo pelo próprio pai. A protagonista, voz narrativa e epicentro da trama, figura como exemplo de superação do cativeiro e de busca obstinada dos elos que irão (re-)construir sua identidade étnica e cultural enquanto sujeito diaspórico destituído de vínculos familiares e afetivos. O presente trabalho aborda a narrativa a partir de uma reflexão sobre a trajetória do romance afro-brasileiro, que enfoca as relações raciais no país a partir de um ponto de vista interno e identificado às vítimas da discriminação.

 

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**Eduardo de Assis Duarte integra o Programa de Pós-graduação em Letras – Estudos Literários, da FALE-UFMG e o Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade – NEIA, desta Instituição. Autor de Literatura, política, identidades (UFMG, 2005) e de Jorge Amado: romance em tempo de utopia, (2. ed., Record, 1996). Organizou, entre outros, o volume Machado de Assis afrodescendente: escritos de caramujo. (3. ed. rev. ampl., 2020), a coleção Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica (2. Reimpr., 2021, 4 vol.) e os volumes didáticos Literatura afro-brasileira, 100 autores do século XVIII ao XXI (2. ed., 2019) e Literatura afro-brasileira, abordagens na sala de aula (2. ed., 2019). Integra o Grupo Interinstitucional de Pesquisa “literafro - Portal da literatura afro- brasileira: pesquisas em rede” (CNPq) e A comissão Editorial Executiva do Portal literafro, disponível no endereço www.letras.ufmg.br/literafro