Um defeito de cor: o entre e o duplo da diáspora

 

 

Cristiane Felipe Ribeiro de Araújo Côrtes*

 

Antes de partir

Encherei os meus olhos, a minha memória

Do verde (verde, verde!) do meu País

Para que quando tomado pela saudade

Verde seja a esperança

Do regresso breve

 

José Carlos – poeta Guineense

 

 

 

A pós-modernidade traz a discussão sobre os sujeitos multifacetados que vivem entre os lugares, se veem a partir de quem são e, ao mesmo tempo, do que esperam que sejam. De acordo com Stuart Hall (2003), vivemos numa época em que a combinação entre o que é semelhante e o que é diferente coloca em voga a cultura afro-descendente (ou a negação dela) disseminada a partir da diáspora africana. O resultado de tais deslocamentos é a evidência dessas várias faces, do sujeito entrecortado pelas culturas e pelas identidades que perpassam por quem ele é, de onde ele vem e como - ou se - ele é visto. O que leva o sujeito a pertencer a lugar nenhum? Como se constroem e desconstroem os espaços e os discursos na medida em que se muda e se estranha e se é “estranhado” por novas línguas, novas culturas? É a partir dessa discussão que se percebe a importância de Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves.

 

O romance, publicado em 2006, é fruto de longa pesquisa acerca da sociedade brasileira escravista do século XIX. A recepção crítica da obra foi muito positiva. No ano seguinte, o livro ganhou o prêmio Casa de las Américas, em Cuba, categoria literatura brasileira. Para Millôr Fernandes, a obra está entre as melhores lidas por ele “em nossa bela língua eslava”. Antônio Risério, em um artigo publicado no Portal Terra, diz que Ana Maria Gonçalves inventou um romance que ele gostaria de ter inventado. Para o poeta e crítico “ninguém escreve o que ela escreveu sem uma dedicação imensa. Sem estudo. E é um livro raro na paisagem lítero-cultural brasileira”. E acrescenta: “ela consegue criar personagens que nos convencem. Que são reais, apesar de todas as idealizações.”

 

Um defeito de cor é narrado por Kehinde, que até os oito anos de idade vivia em Savalu, África. Após a morte da mãe e do irmão, ela, junto da avó e de Taiwo, sua irmã gêmea, viajam sem rumo e chegam a Uidá. Nessa cidade, as três são capturadas e jogadas em um navio negreiro com destino ao Brasil. Ao fim da viagem, resta Kehinde como única sobrevivente da família. A nova escrava vai trabalhar em uma fazenda na ilha de Itaparica. Convém observar aqui a recorrência do mar na vida da personagem que perpassa a narrativa mapeando o trânsito dela. Na fazenda, a protagonista passa boa parte da infância e adolescência, é sexualmente abusada pelo senhor e dessa relação nasce seu primeiro filho, Banjokô.

Depois de morar em Itaparica, Kehide muda-se para Salvador com a sinhá. Começa a trabalhar como escrava de ganho e compra sua liberdade. Casa-se com Alberto, um comerciante português, e tem um filho que mais tarde é vendido como escravo pelo próprio pai. Após descobrir o desaparecimento do filho, Kehinde percorre outros estados para tentar localizá-lo. Frustradas as tentativas, retorna à África na esperança de encontrá-lo. Lá, tenta recomeçar a vida. Reencontra os amigos de infância, conhece um negro de uma colônia inglesa, fica grávida de gêmeos e casa-se com ele. Mesmo com os amigos, filhos e marido a narradora ainda sente falta do Brasil e principalmente do filho perdido.

 

Em Uidá, Kehinde funda uma construtora de casas como as do Brasil e se transforma em uma grande empresária. Depois de ter criado os filhos, sente que precisa voltar ao Brasil. Já com mais de oitenta anos, ela pega de novo o navio e, ao fazer a última viagem de sua vida à procura do filho, resolve escrever a sua história. Na expectativa de que o filho possa encontrar os escritos e na esperança de que sua memória permaneça viva, volta ao Brasil relembrando o seu passado, refletindo sobre sua vida, costurando suas lembranças.

 

Pode-se notar que Kehinde, ao ser retirada de sua terra para ser escravizada, passa a se estranhar, a viver em busca de, a ver na travessia o verdadeiro motivo do viver. Essa situação é comum na literatura universal desde a antiguidade com Homero em Ilíada e Odisséia, ou o Classicismo de Camões, Os Lusíadas, até o modernismo de Clarice Lispector com o constante não pertencimento de Macabéia, em A hora da estrela ou Guimarães Rosa e a busca incansável de Riobaldo, em Grande sertão: Veredas.

 

O fato de pertencer a lugar nenhum é uma característica importante do estrangeiro diaspórico. Uma vez retirado de seu local, ela constrói e reconstrói vários locais não vendo necessidade de se fixar em nenhum deles. Kehinde começa suas viagens aos oito anos e todas proporcionadas por uma necessidade maior: a busca é a mola propulsora dessa travessia feita quase sempre com muita dor e angústia. Na primeira, era a avó que estava em busca de novos rumos, esperanças; depois a curiosidade a levou até um navio negreiro. Mais tarde, a procura por um meio de vida melhor a levou para Salvador e depois que seu filho desaparece, há uma série de viagens para encontrá-lo. No romance, a personagem-narradora explica essa concepção ao enfatizar o desejo de “mudar de fase, mudar de lugar como se isso representasse um novo começo, em que as esperanças se renovam.” E completa: “sempre fui assim (...) poder começar de novo, em outro lugar, com outras pessoas, com novos planos é algo que não recuso nunca.” (GONÇALVES: 2006, 718)

 

A condição de viajante leva a personagem a profundas reflexões sobre quem era e como a viam. A consciência de si passa sempre pelo olhar do outro. A cada novo lugar, uma nova concepção de vida e de personalidade. Du Bois analisa o fenômeno em seu clássico As almas da gente negra, quando aborda sua condição de afro-americano no início do século XIX. O autor aponta a mesma experiência que a protagonista teve a partir do contato com o mundo branco e eurocêntrico. Seus colegas de escola compram cartões de visita para trocar entre si em uma brincadeira e ele diz que

 

a troca foi alegre até que uma menina alta, recém chegada, recusou o meu cartão. Recusou-o peremptoriamente, com um olhar. Então me ocorreu, com uma certa urgência, que eu era diferente dos outros; ou talvez semelhante no coração, na vida, e nos anseios, mas isolado do mundo deles por um imenso véu. (DU BOIS: 1999, 53)

 

Essa relação, denominada dupla-consciência consiste, então, em saber que, ao mesmo tempo em que se vê como igual, é, diante dos olhos de outrem, diferente. Para Du Bois, negro e americano não se fundem porque, embora todos apresentem os requisitos que os enquadram como seres humanos, o fato de ser afro-americano o difere dos demais, sob o ponto de vista dos outros. Eram semelhantes no coração; e de que isso valia se não poderiam se aproximar, pois um véu os separara?

 

O negro africano do século XIX pertencia a um espaço que entra em divergência com os valores europeus disseminados pelo ocidente. Ao sair de seu local, se estranha quando se vê a partir do outro ou quando se descobre um ser duplo: sou o que vivi até agora e sou o que o outro vê em mim. A primeira vez que Kehinde vê a sinhazinha, fica surpresa e encontra nos olhos dela a mesma rejeição que Du Bois descreve:

 

na verdade, eu não só a achei bonita, mas também senti medo ou um certo estranhamento quando percebi os olhos, que me pareciam de vidro ou de água do mar, pois nunca tinha visto gente com olhos daquela cor. (...) A sinhazinha me olhou com um certo interesse, mas não retribuiu meu sorriso, provavelmente tinha me achado menos interessante e muito mais feia que os outros brinquedos, porque foi isso que a Esméria disse que eu seria para ela, um brinquedo. (GONÇALVES: 2006, 78, grifo meu)

 

A palavra estranhamento é o ápice na tradução da condição do não pertencimento, não reconhecimento. A personagem para como se estivesse diante de uma obra de arte que a faz refletir sobre quem é e como é.

 

A protagonista percebe ali duas individualidades que irão refletir em toda a sua vida de estrangeira. Seja no Brasil, seja na África ela sempre terá o olhar do outro à espreita de seu comportamento. Para Du Bois, o sonho do negro é que essa consciência possa se fundir e que alguém possa ser ao mesmo tempo negro e americano “sem ser amaldiçoado e cuspido por seus camaradas, sem ter as portas da oportunidade brutalmente batidas na cara.” (1999:54) Mesmo se transformando em uma mulher rica e voltando para seu país, a protagonista encontra sempre esse outro olhar que não a aceita como afro-brasileira: ora ele tem que ser africana, ora brasileira.

 

No início do livro, no subcapítulo chamado “As descobertas”, a narradora revela uma importante visão de si que é um desdobramento da noção de duplo colocada anteriormente. Aqui, Kehinde se vê pela primeira vez no espelho e a diferença entre o que ela esperava ver e quem ela é confirma a teoria de Du Bois:

 

A Esméria parou na frente dele e me chamou, disse para eu fechar os olhos e imaginar como eu era, com o que me parecia (...) Eu sabia que tinha a pele escura e o cabelo duro e escuro, mas me imaginava parecida com a sinhazinha. (...) Era muito diferente do que imaginava, e durante alguns dias me achei feia, como a sinhá sempre dizia que todos os pretos eram e evitei chegar perto da sinhazinha. (GONÇALVES: 2006, 84)

 

Nesse momento, seus próprios olhos denunciam o duplo que vive dentro de si, ela se assusta com o fato de não se reconhecer e entende que não está seu local – e aqui emprego o termo a partir do conceito de “localidade” de Homi Bhabha (2005). O desejo de voltar à África a persegue por muito, pois acredita que lá estão suas origens. Porém, seus familiares estão mortos e, à medida que o tempo passa, finca raízes aqui também. Com isso, está instaurado o dilema do estrangeiro: o não pertencimento.

 

A situação hifenada (estrangeira-negra) de Kehinde a coloca numa fronteira da diferença, seja no universo masculino, seja no eurocêntrico. No entanto, à medida que a narrativa avança e a personagem vai superando os obstáculos e surpreendendo o leitor por sua habilidade e inteligência, há uma contraposição à ideia de que o outro representa o primitivo e o selvagem, pois a trama eleva e legitima o discurso do “entre-lugar”1.

 

Outro aspecto importante para o estudo do estrangeiro nessa obra é a relação desse sujeito com o espaço que ele ocupa. Marc Augé, no livro Não lugares (2005), define, assim como Bhabha, lugar como um espaço de criação de identidades, relações e construção de uma história, passível de se modificar ou ser modificado; logo, onde isso não ocorre tem-se a sua negação, o não-lugar. É importante que fique clara a distinção do lugar para entre-lugar, pois este fica entre as relações de poder no âmbito da ocupação social e aquele na identificação espaço-cultural. Kehinde passa por vários não-lugares em decorrência da falta do filho. O letimotiv da narrativa é o desaparecimento do filho que vai levá-la a uma condição de “errante”. Sua meta é encontrá-lo, logo, os lugares passam a ser não-lugares quando a expectativa de encontrar a criança se esvai.

 

Esse aspecto denuncia a necessidade do estrangeiro em buscar no espaço uma identificação. Há sempre algo que o motiva a seguir, uma busca constante pela identidade. O desejo de resgate do filho perdido, no romance, é a alegoria dos bons tempos, é a mola que impulsiona e fortalece a esperança de Kehinde; enquanto o deslocamento é o reflexo disso: a cada novo lugar, novas expectativas. Faz-se necessário, então, analisar como o processo de memória se dá na construção da consciência da figura estrangeira. É a reminiscência que está por trás dessa mola propulsora, pois está a serviço da busca, da reivindicação da identidade (RICOEUR, 1995), é a bagagem do viajante, é o que resta a ele a cada deslocamento. A epígrafe do oitavo capítulo do romance remete exatamente a esse exercício da memória por meio de um provérbio africano: “Quando não souberes para onde ir, olhe para trás e saiba pelo menos de onde vens” (GONÇALVES, 2006, 569). Ao deixar para trás amigos e pertences, o estrangeiro leva uma memória impregnada nele que funciona como repertório (conjunto de lembranças) de toda a dor vivida e testemunhada por meio da narrativa. Para Ricoeur, as recordações de se ter vivido em um determinado lugar, ter passado por uma cidade, são fundamentais, isso tece a memória íntima com aquela compartilhada entre os pares. É como se o conjunto das lembranças estivesse vinculado ao entorno, ao local da identidade com todos os aspectos e percalços. Essa memória coletiva nos permite avaliar o livro de Ana Maria Gonçalves a partir das narrativas consideradas afro-brasileiras, pois a recuperação da memória íntima faz emergir uma voz coletiva da vivência comum e típica do povo afro-descendente e, conseqüentemente, do sujeito remanescente da diáspora.

 

Eduardo de Assis Duarte (2005) se apoia em Bastide para justificar a relação entre a literatura afro-brasileira e a memória. Para ele, a memória cultural africana, com todos os seus traumas do aprisionamento e da escravidão, invoca uma literatura que vê as relações sangue/raça, memória/cultura como o alimento da diferença. Para Bastide, algo resiste nesse povo que o faz escapar do etnocídio. É por isso que, apesar de usar a língua dos colonizadores, as crenças e as narrativas do passado ainda persistem. Segundo Duarte, os escritores afro-brasileiros utilizam essa memória coletiva como um forte aspecto identificador de uma narrativa que se reconhece como negra, como afro-brasileira.

 

Vários escritores reconhecidos como afro-brasileiros também se utilizam do repertório memorialístico para abordarem as questões étnicas. Percebe-se nessa literatura um eu que se anuncia como negro e, de acordo com Florentina Souza, esse “enunciador é consciente de sua formação cultural e de sua dupla posição social (...) o escritor afro-brasileiro está ciente, também, de que escreve, cita, ou narra fatos a partir de uma perspectiva de seu grupo étnico” (2005, 61).

 

O elemento definidor dessa literatura não estará necessariamente na cor da pele ou origem étnica e sim “num compromisso de criar um discurso que manifeste as marcas das experiências históricas e cotidianas dos afro-descendentes no país.” (2005, 61). Quando um grupo procura construir sua identidade, ele recorre à memória histórica, à tradição do passado, mas, no caso dos afro-brasileiros, ao fazer esse resgate por meio da historiografia oficial, encontra-se somente o sub-julgamento da cultura, um vazio na criação dessa identidade. Foi a partir daí que se criou a necessidade de reconstruir uma memória cultural identitária capaz de remontar a esse passado sob um ponto de vista afrodescendente e invocar uma memória coletiva para realizar um processo de identificação e valorização cultural e humana a partir da literatura.

 

A construção da narrativa de Um defeito de cor, baseada em uma autobiografia ficcional, também tem esse importante papel de re-significar um passado sobre o ponto de vista não-eurocêntrico. A narrativa remonta à tradição dos griots africanos que consiste no relato permanente do passado e da ancestralidade para que a memória do povo não morra. Ao perceber que poderia não encontrar o filho, a narradora relata o que viveu para que um dia ele (o filho) possa ter conhecimento da história da mãe e, com isso, a de todo um povo, para que haja um herdeiro da cultura e da identidade de uma raça. As recordações de Kehinde são, então, o símbolo da resistência e da persistência, são mais um mecanismo de articulação para se legitimar o discurso do outro, do duplo. É a oralidade e a tradição típica africana que se transformam em testemunho (RICCOEUR: 1995) e que poderão, mais tarde, ainda que caminhando à margem da historiografia oficial, levantar questionamentos a respeito da legitimação desta, descentralizando um discurso que se quer totalizante e hegemônico.

 

A inconstância da vida constrói o sonho do estrangeiro. Kehinde precisa viajar para renovar suas forças, porque a cada viagem, uma nova oportunidade surge, não apenas do re-encontro com o filho vendido pelo pai, mas também consigo mesma. O fato de retornar para a terra natal não tira do estrangeiro essa inconstância; mesmo quando volta, a sensação de não pertencimento o acompanha. No romance isso é evidenciado quando a narradora volta à África, às suas origens, e mesmo assim se sente uma estrangeira. Nesse sentido, a palavra estrangeiro se refere ao sujeito que já não mais se reconhece quando retorna ao seu lugar de origem. E o que, por um momento, a retira dessa condição é a memória, pois resgata elementos de identificação proporcionando um bem-estar, uma idéia de encontro que logo é quebrada à medida que ela vai substituindo as doces lembranças da infância por uma realidade amarga do presente.

 

O processo de dupla consciência passa a se configurar de forma invertida, pois no Brasil a personagem precisava lutar para ser reconhecida como africana e fazer muitas concessões, já que sua identidade estava sempre dividida entre a africanidade e a brasilidade. Ela precisava render-se à cultura local para passar pela aprovação do olhar do outro. Já na África, ela sabe que seus costumes são brasileiros, mas esperam dela um comportamento africano, devido a sua nacionalidade. O “duplo” e o “entre” ainda continuam impregnados em sua identidade. Em Uidá, como em Salvador, ela encontra um “lugar”, de acordo com Marc Augé, ou um local, segundo Bhabha, mesmo estando sem o filho, o que não ocorre em Santos, São Paulo ou Campinas, que se configuram apenas como estadias, não-lugares (AUGÉ, 2005). Nestes, seu único objetivo era queria encontrar o filho e naqueles procurou encontrar a si mesma.

 

O antagonismo Aqui versus Lá sempre vai perseguir o estrangeiro, uma vez que só lhe restam as lembranças, pois, a cada partida, há um abandono daquilo que pertence àquele local. No período em que está no Brasil, o Lá, representado pela África, contém a esperança, a promessa de uma vida melhor. Kehinde imagina que Lá é o seu lugar, pois suas origens seu povo, sua cor fariam parte de uma só identidade, enquanto Aqui (Brasil) é o lugar do distanciamento, da saudade, da identidade repartida, das concessões e cessões. Então, estando no Aqui, o sonho de encontrar a felicidade Lá vai motivá-la a viver. Com isso, a necessidade de voltar é inerente, na obra em questão, e o que desencadeia essa volta é o desaparecimento do filho, que é a representação de uma possível ruptura com os laços e, para que isso não aconteça, a volta se faz urgente. Certamente, não havia mais nada que a prendesse no Brasil, estando na África a possível solução para sua falta.

 

No entanto, quando a personagem sai do Brasil e volta para África, os valores de ambos os lugares mudam consideravelmente. Quando um sujeito volta à sua origem, ele descobre que há muito dele também no local que deixou para trás. A partir desse momento, no caso de Kehinde, a África se transforma no lugar da dor e da ausência, enquanto o Brasil, torna-se o lugar da esperança, a possibilidade do reencontro com os amigos, o que solidificou a sua trajetória. A saudade é, portanto, um elemento que acompanhará o estrangeiro independente de onde estiver.

 

Essa saudade que os “retornados”2 sentiam fez com que criassem dentro da África um universo de identificação com os costumes deixados para trás, transformando aquilo que é estranho em familiar. Nesse sentido, a identidade “pura” africana será “modificada” mesmo para os que nunca saíram. Esse desejo dos retornados promove uma modificação do espaço em que estão inseridos atingindo todos aqueles que o compõem. Isso comprova o duplo pertencimento do estrangeiro, o seu local de origem aguça a sua memória relacionada ao local vivido, ao país estrangeiro, por isso ele está no entre-lugar sempre.

 

O livro nos leva a perceber que o estrangeiro diaspórico tem o papel de articulador cultural, localizado no entre-lugar dos discursos. Novamente ele precisa negociar suas questões identitárias a fim de criar um local para se viver. Isso desencadeará um processo de transformação espacial fundamental para que se entenda uma importante teoria relacionada à diáspora: o hibridismo cultural.

 

O deslocamento espacial Aqui X Lá gera a ausência do que remete o estrangeiro às boas lembranças. Ao retornar, ele já não vê aquilo que motivou o seu retorno, porque o tempo não parou enquanto ele estava fora. Houve, portanto, uma modificação espacial que desencadeou uma frustração no sujeito, levando-o a ser um estranho em um local que era para lhe ser bastante familiar. Por outro lado, ele também sente falta do espaço deixado Lá. Não há uma identificação espacial que represente a sua experiência vivida, sua memória. Essa ausência produz uma lacuna na identidade do estrangeiro que luta, então, para associar o local de sua origem ao local da memória. Ele tenta aproveitar o espaço e o transforma em um local marcado pela fusão da terra deixada com a terra sonhada. O que provoca essa fusão é a necessidade do enraizamento que se choca com a inconstância inerente à condição de estrangeiro. A fim de se restabelecer as raízes, ele recria, então, um espaço que pode aproximá-lo do local sonhado.

 

Sérgio Costa (2006), ao falar do processo de hibridação no pós-colonialismo, recorre ao conceito de terceiro espaço, formulado por Bhabha. Para Costa, o terceiro espaço não é local fixo, e sim o momento de evidência da arbitrariedade das fronteiras culturais. Isso ocorre quando um sujeito é retirado de seu local e não se vê inserido num sistema de representação totalizante. É nesse deslocamento que a hibridização é caracterizada. Em todo processo de ocupação, haverá uma fusão entre a cultura imposta pela dominação e a bagagem carregada pelo colonizado. Nota-se, então, que, ao constatar um traço híbrido da cultura, a possibilidade de homogeneização do discurso é esvaziada, desmontada. Desse modo, a pretensão da homogeneidade é sempre hierarquizadora e está em contraposição ao híbrido que é a expressão da heterogeneidade. Para Costa, o hibridismo “seria uma alusão a uma ecumene mundial acima das barreiras raciais, nacionais, étnicas, etc” (2006, 95). O romance ilustra perfeitamente essa consideração na medida em que aponta para a formação de uma cultura híbrida, marcada não pelo exotismo ou subalternidade, mas pela autonomia e articulação das identidades dentro dos espaços teoricamente já demarcados.

 

Kehinde, de certa forma, é uma semeadora e colhedora de cultura – por onde passa deixa sua impressão e leva impresso na memória o que aprendeu, viveu e sofreu ali. A hibridização ocorrerá, portanto, não apenas nos locais em que há um estabelecimento de fronteiras mais conflituoso, ela fará parte do universo do estrangeiro e, assim, os locais ocupados por ele terão sempre essa marca. O sujeito diaspórico é o contraponto da homogeneidade, é o responsável pelo esvaziamento do discurso arbitrário e totalizante.

 

Nossa protagonista representa um grupo que aprendeu a viver nas fronteiras da diferença. E é essa condição que impulsiona a transformação do tempo e do espaço que ocupa. Quando ela começa a interferir, a se misturar no espaço africano, ela concretiza o desejo de sair da condição de viajante e de criar um local de restabelecimento da identidade. O cenário de Uidá, no fim do século XIX, então, assume uma nova identidade. Africanos e brasileiros convivem ali criando novas fronteiras culturais. Essa identidade irá conferir um aspecto híbrido à cidade. Essa aparência, portanto, pode ser projetada para todos os lugares que tiveram alguma relação com a diáspora. A mistura de espaços e fronteiras forma o processo de hibridização (COSER, 2005) que irá refletir na arquitetura, na religião e na língua.

 

Depois de ter construído metafórica e literalmente a sua história, a mola que impulsiona a movimentação da vida de Kehinde volta a incomodar. Os lugares voltam a ficar estranhos, ela se lembra de que é uma estrangeira. Ao voltar para o Brasil, quase aos oitenta anos, ela resolve contar a sua história. Os relatos de uma trajetória, narrados durante a sua viagem final, permitirão que todos tenham acesso a construção mais sólida da vida de Kehinde: o eterno ir e vir. A morte da protagonista em alto-mar metaforiza a construção da história do viajante, filho da diáspora. O navio representa o movimento da vida; o livro, a memória, e a água, o ciclo, o início e o fim de tudo, a certeza de que um dia regressaremos para nos revigorar e nos preparar para mais uma viagem.

 

A condição do estrangeiro, ao contrário do que se é levado a pensar, não é algo negativo. O processo de transformação a que é submetido também passa pelos locais ocupados por ele. É notório, na pós-modernidade, o resultado das trocas culturais promovidas pelos movimentos de diáspora. A figura do estrangeiro tem um papel decisivo para a modificação do local em que se encontra e Um defeito de cor nos fornece elementos mais que necessários para tal afirmação.

 

 

Referências

 

AUGÉ, Marc. Não lugares. Introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 2005.

SOUZA, Florentina da Silva. Afro-descendência em Cadernos Negros e Jornal do MNU. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

DU BOIS, W. E. B. As almas da gente negra. Tradução: Heloísa Toller. Rio de Janeiro: Nova Aguiar, 1999.

BERND, Zilá. Enraizamento e errância: duas faces da questão identitária. In DUARTE, Eduardo de Assis e SCARPELLI, Marli Fantini (Orgs.) Poéticas da Diversidade. Belo Horizonte: FALE-UFMG / Pós-Lit, 2002.

BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. Trad. Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renata Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 1998.

COSER, Stelamaris. Híbrido, Hibridismo e Hibridização. In FIGUEIREDO, Eurídice (Org.) Conceitos de Literatura e Cultura. Juiz de Fora: Editora UFJF/ EdUFF, 2005.

DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura e Afro-descendência. In Literatura, política, identidades. Belo Horizonte: FALE- UFMG,2005.

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FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 14.ed. São Paulo: Loyola, 2006.

_____. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. 18 ed. Rio de Janeiro: Graal, 2003.

GILROY, Paul. O Atlântico Negro. Modernidade e dupla consciência. Trad. Cid Knipel Moreira. Rio de Janeiro: UCAM: 2001.

GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. Rio de Janeiro: Record, 2006.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro, 8 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

RICCOEUR, Paul. Tiempo y narracion. Mexico, D.F.: Siglo Veintiuno, 1995-1996.

SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. 2 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

SELIGMANN-SILVA, Márcio. História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes. Campinas: Ed. UNICAMP, 2003.

RISÉRIO, Antônio. http:// terramagazine.terra.com.br

 

 

1 A referência ao entre-lugar que será utilizada diz respeito à teoria idealizada por Hommi Bhabha (1998) que representa a própria alteridade, é uma constante tensão entre os espaços pré-estabelecidos (discurso do dominante e do dominado) pela sociedade.

2 Termo utilizado no romance Um defeito de cor para designar os africanos da diáspora que voltam para a África. Esses mesmos são chamados de brasileiros pelos africanos nativos.

* Mestranda do Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários da FALE-UFMG.

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