“O que a gente não escreve o tempo leva”

Mãe Stella de Oxóssi griotte e escritora

 

Pedro Henrique Silva*

 

Na nova casa de Xangô, Stella de Oxossi, a ialorixá, acende a aurora dos santos, levanta a bandeira dos Orixás. Salve Mãe Stella de Oxossi em seu trono no Axé do Opô Afonjá.

Jorge Amado.

 

 A oralidade é um dado intrínseco às culturas africanas e, por isso, nenhuma tentativa de entender a história desse continente que não considere esse aspecto será bem sucedida. Foi por meio dessa corrente narrativa que os africanos aqui escravizados conseguiram unir as duas extremidades do Atlântico, fazendo com que as culturas dos grandes reinos da outra margem fossem preservadas nas terras de além-mar. Com isso, nasceram táticas de manutenção de uma filosofia negro-africana nas colônias, que tem como um dos seus principais pilares as religiões de matriz africana que, em sua performance ritualística, transitam entre a presentificação da ancestralidade e a ancestralização do tempo presente. E é nessa espiral do tempo da religiosidade afro-brasileira, que se constrói a literatura de Mãe Stella de Oxóssi, imortal da Academia Baiana de Letras e iyalorixá de uma das casas de candomblé mais tradicionais de Salvador, o Ilê Axé Opó Afonjá. Iniciada por Mãe Senhora no dia 12 de setembro de 1939, aos quatorze anos, Mãe Stella recebeu o orukó (nome)1 de Odé Kayodê (o caçador de alegrias). E em 19 de março de 1976, foi escolhida para ser a quinta iyalorixá do Ilê Axé Opô Afonjá.

Sua estréia na literatura se deu em 1988 quando publicou em Salvador o volume E daí aconteceu o encanto, em parceria da autora Cléo Martins. Narrativa de cunho memorialístico, na qual as origens do Axé Opó Afonjá e de suas primeiras iyalorixás se convergem com a biografia da própria escritora. Em 1993, lançou Meu tempo é agora, uma espécie de livro-manual para a formação de seus filhos-de-santo, no qual encontra-se uma série de narrativas do repertório cultural nagô.

Mãe Stella conta ainda com os volumes Òṣósi - O Caçador de Alegrias (2006), Provérbios (2007), Epé Laiyé - terra viva (2009) e Opinião (2012). No impresso Òṣósi - O Caçador de Alegrias está organizada uma seleta dos ìtans (narrativas míticas) de Oxóssi, orixá para qual foi iniciada. Já em Provérbios, há a recolha de provérbios africanos e brasileiros seguidos da interpretação da sacerdotisa, propiciando ao leitor leigo o acesso a um universo de saberes antes restritos aos iniciados nos mistérios do mariô. Em Epé Laiyé - terra viva, a autora se dirige ao público infantil ao narrar a trajetória de uma árvore que ganha pernas e com a ajuda dos orixás luta pela construção de uma sociedade que respeita o meio-ambiente. Por sua vez, Opinião, é a reunião das crônicas que a Iyalorixá publicou no jornal de soteropolitano A Tarde.

Sua prosa narra de maneira muito particular a experiência religiosa e o cotidiano de sua comunidade. Por isso, seus livros trazem na ficção rastros de sua vivência, como é possível constatar no trecho da narrativa “Uma Fruta do ‘Pé Do Santo’".

 

Mãe Aninha chamou a “menina do meio”, Stella, e lhe deu uma fruta "do pé do Santo". (Importante salientar-se que no dia 8 de dezembro eram oferecidas todas "as frutas do tempo" ao Orixá, o mesmo acontecendo no dia de Natal; as frutas seriam repartidas entre os membros da Comunidade').

A garota de doze anos aceitou a maçã sem coragem de devorá-la. Isso porque ao lhe entregar a fruta, Mãe Aninha olhou-a de uma forma profunda, estranha, interessante, como de quem olha longe. (AZEVEDO; MARTINS, 1988, p. 47).

 

Nesse caso, é possível ver na fruta do “pé do santo” um elo entre passado e futuro, unindo Mãe Aninha, iyalorixá fundadora do Opó Afonjá, e a ainda menina Stella. Dessa forma, o título do livro do qual essa narrativa foi extraída – E Dai Aconteceu o Encanto – poderia ser estendido a essa passagem, carregada de memória afetiva traduzida pelo encanto do encontro das duas personagens, em que Mãe Aninha parece vaticinar, com seu gesto, o destino daquela que anos mais tarde viria a ser uma das mais importantes sacerdotisas afro-brasileiras.

Porta-voz de uma cultura ancestral, Mãe Stella vive em sua literatura a tensão entre escrita e oralidade. Sabe-se que no candomblé os ensinamentos são transmitidos pela fala dos mais velhos e que dessa forma o àṣe2 é distribuído e renovado. Sobre isso, afirma a escritora no prefácio do seu livro Òṣósi - O Caçador de Alegrias:

 

Quando os meus filhos me pediram para fazer este livro, eu achei a coisa mais difícil do mundo [...] Algum tempo depois, resolvi falar sobre o meu Orixá [...], pois entendi que a tradição passada de maneira oral é primordial, pois só através dela o àṣe é transmitido, mas que a linguagem escrita é um instrumento colaborador de transmissão de conhecimento[...] Pensando assim, recorri às minhas anotações, lembrei de conversas que tive com os mais velhos e resolvi fazer este livro. (OXÓSSI, 2006, p. 9).

 

Dessa forma, ao pautarem a transmissão do conhecimento na oralidade, os terreiros de Candomblé rememoram a tradição dos mestres griôs africanos que são ao mesmo tempo poetas, historiadores e contadores de estórias. Portadores de uma memória singular, tais mestres são legítimos “arquivistas de fatos passados transmitidos pela tradição, ou de fatos contemporâneos”. (HAMPATÉ BÂ, 2010, p.175).

Como iyalorixá a escritora ocupa a posição de uma griotte responsável por semear os saberes diaspóricos, orientando sua comunidade e formando novos filhos. Portanto, vemos em Mãe Stella a figura do “Arconte” que, conforme Derrida, são os “guardiões” do “arquivo”, concomitante a isso, “cabiam-lhes também o direito e a competência hermenêutica. Tinham o poder de interpretar os arquivos” (DERRIDA, 2001, p.12-13). Assim, como guardiã de uma cultura firmada na ancestralidade, a escritora faz de sua fala uma ferramenta de constante (re)constituição de um “arquivo” negro milenar, transformando e produzindo novas interpretações dos mitos ancestrais legados pelo continente africano. Talvez por isso em sua literatura a griotte e a acadêmica se fundem em uma “prosa nagô”, pautada numa linguagem simples e concisa que busca dizer muito em poucas palavras, envolvendo o leitor que se vê transportado às rodas de conversas com os mais velhos, tão comuns nos terreiros de Candomblé.

Sem hierarquizar oralidade e escrita, a sacerdotisa utiliza-se da escrita como uma importante ferramenta para a preservação da religiosidade negra no Brasil. Seus livros são, pois, um registro da cultura afro-brasileira que possibilitaram à escritora o acesso a espaços antes bem demarcados pela classe hegemônica (branca – masculina – cristã), como a Academia de Letras da Bahia. Acerca disso afirmou a escritora em entrevista: “[...] ninguém nunca pensaria que uma mãe de santo poderia chegar a ocupar este posto. Isso mudou pela nossa luta, mas também por meus livros, porque o que a gente não escreve o tempo leva”. Destarte, Mãe Stella transita entre os papéis de griotte e escritora com rara perícia, ao passo que, em sua literatura a oralidade e a escrita, assim como biografia e a ficção parecem se misturar.

 

Referências

AZEVEDO, Stella; MARTINS, Cléo. E daí aconteceu o encanto. Salvador: Edição das autoras, 1988.

DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Trad. Claudia de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

HAMPATÉ BÂ. A tradição viva. In: KI-ZERBO, Joseph (Ed.). História geral da África. v.1: Metodologia e pré-história da África. Brasília: UNESCO, 2010.

OXÓSSI, Mãe Stella de. Òṣósi: O Caçador de Alegrias. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo, 2006.

SANTANA, Marcos (Org.). Mãe Stella de Oxóssi: estrala nossa, a mais singela! Salvador: Pimenta Malagueta Editora / Egba, 2014.

 

1 No contexto da religiosidade afro-brasileira, o indivíduo recebe, ao ser iniciado, um nome pelo qual será identificado dentro de sua comunidade. Dessa forma esse “novo nome” representa a ligação com o ancestre, principio motriz do Candomblé.

2 Nesse texto entende-se o termo àṣe como um princípio vital, como uma energia sagrada propiciada pelas divindades africanas.

* Pedro Henrique Souza da Silva é graduando da Faculdade de Letras da UFMG; bolsista de iniciação cientifica pelo Probic/FAPEMIG e pesquisador do Neia/UFMG.

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