O político e o literário na escrita de Esmeralda Ribeiro

 

Elisângela Lopes*

 

Se a margarida flor
é branca de fato
qual a cor da Margarida
que varre o asfalto?

 Esmeralda Ribeiro

 

 

O início da carreira literária de Esmeralda Ribeiro data de 1982, com a publicação de quatro poemas no volume 5 da série Cadernos Negros. Nesse momento, a autora apontava para a importância da escrita enquanto instrumento de afirmação e de desabafo dos que se encontravam à margem da sociedade:

Me sinto como um ébano que resiste a todas as pressões deste mundo branco, tentando me burlar das coisas que tenho direito ou faço ter direito. Procuro, juntamente com todos os negros presentes neste livro, a oportunidade de expressar de todas as formas com o uso do jogo das palavras um espaço conquistado com muita labuta, por profissionais liberais ou não, mas tendo o objetivo de mostrar que o negro saiu ou está saindo do fundo do quintal para sentar na sala de estar. (C.N. 5: 20)

Esse desejo de sair da margem em direção ao centro deu à literatura negra, durante as décadas de 80 e 90, um firme tom militante que visava impor o negro enquanto sujeito e parte integrante e ativa da sociedade. Foi o período da (re)aparição e afirmação da literatura negra brasileira, para o qual vai contribuir de forma decisiva a série Cadernos Negros.

Em 1988, a autora publicou Malungos e milongas, uma narrativa que trata da história de uma família negra, constituída de quatro irmãos "muito ligados como se fossem filhos de um mesmo orixá" (RIBEIRO: 1988, 4). A ideia da união dos irmãos de cor é reforçada pela palavra malungos, que, segundo o Dicionário Aurélio é o "título que os escravos africanos davam àqueles que tinham vindo da África no mesmo navio". Porém, esta forte ligação será abalada pelas milongas: mexericos, intrigas. Carlos, Marta, Mauro e Ruth trabalhavam em uma mesma empresa. O "boato" que corria pelos corredores do departamento de que apenas um dos negros seria promovido ao cargo de gerente-executivo instaura a discórdia entre eles. A competição é acirrada pelos mexericos do chefe imediato - Sr. Eduardo - que havia sido preterido por Ruth. Em reflexão sobre os fatos que causavam a separação dos irmãos, a personagem conclui que "o esfacelamento que sempre acompanhou a nossa raça" agora estava se abatendo sobre sua família. (RIBEIRO: 1988, 4). A desestruturação familiar torna-se inevitável e, como representantes da imensa diáspora negra espalhada pelo mundo, cada um dos irmãos segue o seu caminho.

Os contos de Esmeralda Ribeiro são marcados por uma rica diversidade temática. O retrato do lugar marginal ocupado pelo negro está presente em “Sempre suspeito” (C.N. 22), que apresenta o tratamento “diferencial” dado pela polícia às pessoas de cor, além de aludir à falta de escrúpulos dessa instituição social. Na fábrica em que trabalha, André Gomes é surpreendido pelo grito acusatório dos pms: “Parado aí, macaco!”. Essa frase imperativa irá desencadear no jovem uma reflexão a respeito dos possíveis “delitos” que poderia ter cometido naquele dia. Será que o estavam procurando por ter brigado com o cozinheiro porque este o impediu de comer, pela segunda vez, o filé de frango do almoço? A narrativa desenvolve-se com muita habilidade nos instantes de reflexão entre a abordagem agressiva e o esclarecimento do fato. Os policiais concluem que se enganaram, pois deveriam procurar por um negro na favela, e não na fábrica. Depois de ser humilhado, André recebe dos pms a seguinte justificativa: “Desculpa aí, caras. Silva, Pereira, Gomes é sobrenome que dá que nem mato no Brasil!” (C.N.22:43). A denúncia da ineficiência policial e dos inúmeros “enganos” cometidos pelos próprios integrantes dessa corporação é feita por um deles: “E aqueles caras que vocês apagaram por engano? Foi merda também, não foi? Vocês não colocaram cocaína nos bolsos deles para limpar a barra? Todos os dias nós fazemos merda, e daí?” (C.N. 22: 43).

Já o conto “O que faremos sem você?”, é uma narrativa de crime e suspense que envolve contestações políticas e preconceito contra a mulher negra. Jorja Reis é a Relações Públicas de um hotel de luxo que, por seu profissionalismo e dinamismo, coloca em xeque a incompetência do gerente - o Sr. Holf. O gerente, por sua vez, planeja o assassinato de Pedro Mauro, integrante do movimento Indenizações Agora, que pretende cobrar do Estado brasileiro U$$102 mil devidos a cada negro, “pelos prejuízos causados pela escravidão". Além disso, “o Estado deveria ser responsabilizado pela cultura discriminatória e pela situação de desigualdade do povo negro”. (C.N.18: 42). O assassinato é tramado minuciosamente pelo gerente, com o objetivo de incriminar Jorja que, depois de ser humilhada, é ainda demitida do trabalho. Mas o crime é desvendado e a inocência da personagem comprovada. Convocada para se reintegrar ao trabalho, no cargo de gerente, ela recusa, mas não abre mão da indenização que o hotel deveria lhe pagar, por danos morais, e à família de Pedro Malta, o homem assassinado.

A produção poética da autora é marcada pela metalinguagem: “repito 33 vezes para o além / na incerteza, no talvez / será que o poema vem???” (C.N.21: 60); pela exaltação da sexualidade feminina: “é assim que eu vejo / a mão-outra tirando-me / a lingerie / e assim / seguimos a batida do blue.”(C.N. 17: 23); pela celebração da África, como em “5 poemas para a Rainha Quielé”(C.N.15). A condição afrodescendente irá permear todos esses tópicos, seja na relação amorosa entre a mulher e o homem negros, seja no clamor ao orixá para que o poema venha, seja na rememoração. Porém, outra característica importante é a presença de um olhar negro, que se volta para si mesmo e para seus irmãos de cor. Esse primeiro desdobramento pode ser percebido no poema “Olhar negro” (C.N. 17), no qual o eu-lírico vai (re)construindo sua imagem e sua personalidade. Ele reconstrói-se "com o sol nascente" e diante da "vítera lâmina do espelho" vai refazendo em si o que é belo. E assim, conclui: "vou / buscando meu / olhar negro / perdido no azul do tempo". (C.N. 17: 25-7). Ao voltar seus olhos para a raça a qual pertence, o eu-lírico irá mostrar a importância da conscientização sobre o que é ser negro no Brasil: “quem / em sã rebeldia / tira a máscara esculpida na / ilusão de ser outro e / não ser ninguém”. (C.N.15: 44).

A variedade temática, o tom de denúncia e a construção de uma literatura que se atrela à realidade político-social brasileira são marcas que indicam um olhar crítico da autora em relação ao que está em torno de si mesma, ao mundo que a cerca. Em texto de 1987, já apontava para a importância do papel social exercido pelos escritores(as) negros(as), para que alcançassem um objetivo comum: “é necessário que a união de esforços entre mulher e homem negro escritores, (sic) reforce cada vez mais a luta para que os dois intervenham no processo de participação política e formem uma nova consciência nacional” (ESMERALDA: 1987: 65). Essa nova consciência nacional partiria do processo de reconstrução da figura do negro na sociedade e culminaria na sua conscientização. Essa transformação, segundo a autora, deveria ser promovida por uma literatura capaz de fazer com que o negro reconheça-se nela: ‘nós que estamos comprometidos com a literatura – que além de revelar o momento histórico de um povo, tem o ato de resistência – temos de arregaçar as mangas, ir à luta pelo que se tem em mente, através do trabalho artesanal com as palavras que transmitem ao leitor toda mensagem de forma compreensiva”. (1985: 28-9)

Podemos concluir, a partir da leitura dos escritos de Esmeralda Ribeiro, que o seu entendimento do que seja a escrita afro-brasileira e a constatação da sua importância enquanto manifestação cultural capaz de interferir na realidade encontra-se presente na construção discursiva da sua ficção – exemplo de pensamento político-social que se torna elemento literário.

 

Referências

RIBEIRO, Esmeralda. Malungos e Milongas. São Paulo: Edição da Autora, 1988 (conto).

_______. “5 poemas para a rainha Quielé”, “E agora nossa guerreira”, “Jogo de luzes”. Cadernos Negros 15. (org. Quilombhoje). São Paulo: Edição dos Autores, 1992.

_______. Cadernos negros 16. (org. Quilombhoje). São Paulo: Ed. dos Autores, 1993.

_______. “O que faremos sem você?”. Cadernos Negros 18. (org. Quilombhoje). São Paulo: Quilombhoje: Editora Anita, 1995.

_______. “Olhar negro”. Cadernos Negros 17. (org. Quilombhoje). São Paulo: Quilombhoje: Editora Anita, 1994.

_______. Cadernos Negros 21. (Org. Quilombhoje). São Paulo: Quilombhoje, 1998.

_______. Cadernos Negros 22. Org. Quilombhoje). São Paulo: Quilombhoje, 1999.

_______. Cadernos Negros: os melhores contos. (Org. Quilombhoje). São Paulo: Quilombhoje, 1998.

_______. “A Escritora negra e o seu ato de escrever participando”. In: Silva, Luiz (Cuti), Alves, Miriam; e Xavier, Arnaldo (orgs.) Criação crioula, nu elefante branco. São Paulo: Secretaria de Estado e Cultura, 1987 (Trabalho apresentado no I Encontro Nacional de de Poetas e Ficcionistas Negros Brasileiros). p.59-65.

 

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*Doutora em Literaturas de Língua de Portuguesa pela PUC Minas.

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