Ponciá Vicêncio, memórias do eu rasurado1

Assunção de Maria Sousa e Silva2

Ponciá Vicêncio de Conceição Evaristo, publicado em 2003, é uma narrativa circular. A história, o tempo e o espaço narrativos constituem elementos interligados pela memória de Ponciá, de forma que, da situação inicial à final, eles se desalinham e realinham na trama. A memória é o elo condutor da narração. Aqui nos referimos à memória individual e coletiva, pois quando Ponciá, personagem central da trama, revive o passado, pela lembrança, ela evidência fatos, circunstâncias históricas do povo negro brasileiro. Da menina encantada e ao mesmo tempo amedrontada com o arco-íris / cobra / angorá, à mulher, desenraizada de seu tempo e lugar, a narrativa se desenvolve recheada de passagens líricas e acres, leves e fortes, conforme vai se delineando o perfil da personagem. Ponciá, na verdade, simboliza o espaço e o tempo de uma história contundida, de exclusão e subserviência que foi imposto ao povo afro-descendente brasileiro. Ficção e realidade se imbricam nas camadas narrativas, todavia o que vai aflorando é uma escrita tensa e densa de dizeres sofridos, numa lírica contundente.

Vive-se ainda um quadro social em que a maioria da população de baixa renda é preta ou parda e pobre, sem condições dignas de sobrevivência. As estatísticas atuais apresentam um abismo entre a população branca e a população negra / parda e as políticas públicas até então implementadas não são suficientes para dar respostas eficazes a essa conjuntura. As desigualdades raciais existem. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ao divulgar Pesquisa Mensal de Emprego, em novembro de 2006, aponta, segundo o critério de cor ou raça, que há mais brancos do que negros nas universidades públicas brasileiras, há mais negros do que brancos fora das escolas de ensino básico. Por exemplo, enquanto 45,9% dos brancos haviam cursado, pelo menos, o nível médio completo, apenas 28,5% de pretos e pardos o faziam. Em se tratando do rendimento médio da população, os brancos ganham R$ 60,00 a mais que os pretos e pardos. Com o pouco acesso à educação, a pessoa negra continua exercendo profissões ou ofícios poucos remunerados, de menor valor social e simbólico. Neste sentido, a desigualdade social, logo racial, vem se mantendo de geração a geração. Os espaços sociais e de poder ao seguimento negro / pardo, que deveriam ser alargados, poucos são conquistados, em pleno século XXI.

O romance de Conceição Evaristo, pela sua atualidade e inserido na realidade étnico-racial brasileira, instiga-nos a refletir sobre a situação da população afro-brasileira, leva-nos a olhar para a outra face, silenciada e ocultada da história do Brasil, e desmitifica, no âmbito da literatura brasileira, determinadas cristalizações, resultantes de um discurso dominante reiterante do mito da democracia racial. Assim, pela presença de produções poéticas, contos e romances, como de Evaristo, podemos dizer:

1. que há e sempre houve uma literatura afro-brasileira (aqui no sentido de autoria e acepção para o autor de uma escrita comprometida com valores e origem culturais africanas ou afrodescendentes);

2. que há, nas produções de autoria afro-brasileira, qualidade estética inegável, que não se reduzem a uma escrita de lamentações ou panfletária;

3. que essas produções, existentes desde século XVIII, como os manuscritos Sagrada Teologia do Amor de Deus, Luz Brilhante das Almas Peregrinas de Rosa Maria Egipciaca da Vera Cruz (1725), primeira escritora negra da história, como o romance Úrsula (1859) de Maria Firmina dos Reis, maranhense, conforme pesquisa de Luiz Mott e Zahydé Muzart, respectivamente, (e nos limitamos apenas em exemplos de autoria feminina), trazem referências reveladoras da identidade da figura feminina negra brasileira e suas inquietações quanto à inserção de si, da identidade do povo negro e da cultura ancestral negra no contexto sócio cultural brasileiro.

Se há uma lacuna na literatura canônica brasileira quanto à inclusão de autores negros, isso se avoluma quando nos detemos na escrita de autoria feminina negra. O professor da UFMG, Eduardo Duarte, quando trata da literatura afro-brasileira, no sentido de conceituá-la, aponta-nos a necessidade de uma “articulação da etnicidade com o gênero”.

[...] o momento presente propicia (e exige) a articulação da etnicidade com o gênero, a partir mesmo de uma compreensão da diferença cultural que os particulariza frente aos padrões hegemônicos, e dos condicionantes históricos que relegaram ambos os segmentos à submissão, apesar de níveis distintos. Assim, uma vez operada tal articulação, abre-se a possibilidade de um suplemento à configuração teórica e histórica da literatura afro-brasileira. E esta operação suplementar aponta justamente para a inclusão de mulheres...” (DUARTE, 2005).

Desta forma é que pretendemos evidenciar o romance de Conceição Evaristo, tanto pela sua composição pungente e altamente qualificada, reconhecida e valorizada fora do Brasil, quanto pela necessidade de apontar mais um romance de autoria afro-brasileira contemporânea que vem fortalecer e visibilizar a presença da pessoa negra na literatura brasileira.

Aspectos do romance

A vida de Ponciá Vicêncio, na infância, é de fruição e encantamento, quando “gostava de ser ela própria” e se realiza uma moldura da natureza como extensão de si quando:

Gostava da roça, do rio que corria entre pedras, gostava dos pés de pequi, dos pés pequi, dos pés de coco-de-catarro, das canas do milharal. Divertia-se brincando com as bonecas de milho ainda no pé. Elas eram altas e, quando dava o vento, dançavam. Ponciá corria e brincava entre elas. O tempo corria também. Ela nem via. O vento soprava no milharal, as bonecas dobravam até o chão. Ponciá Vicêncio ria. Tudo era tão bom (EVARISTO, p. 09-10).

À medida que cresce Ponciá, passando da fase da adolescência à vida adulta, entra no processo de negação de si, de sua identidade. E isso se dá, juntamente com o desencantamento, o fim da fantasia de menina, marcado pelo pedido da mãe ao pai que cortasse o milharal para que ela não visse mais a mulher de branco, alta, “que chegava até o céu”. A partir daí Ponciá entra um estado de medo, de angústia, de instrospecção, por fim mudez e alheamento total sobre os que estão diante de si. Ainda adolescente perde o pai, vive com a mãe e o irmão. Quando jovem, entende sair do lugarejo e ir para a cidade grande. Assim faz. Ao chegar lá, vive nas ruas, encontra um emprego de empregada domestica, casa-se, tem 7 abortos, nenhum filho, às duras penas, volta ao lugarejo de origem, não encontra os seus, retorna à cidade, entra em estado de alheamento e só depois reencontra a mãe e o irmão para volta à terra natal.

Num percurso de vaivém narrativo até o final, vamos colhendo peças, fragmentos da vida de Ponciá para entender seu eu em incompletude. Com uma narrativa não linear, às vezes cruzadas, de flash de memória, intromissão de personagens, intercaladas nos capítulos densos e curtos é que sabemos do nascimento de Ponciá, bebê que aos sete meses chorou na barriga da mãe; da imposição do nome alheio Vicêncio à própria história da família, porque o avô era escravo da família com esse nome; da sua relação, às vezes cúmplice no canto, às vezes, distante com a mãe, obediência ao pai, fraterna com o irmão e conflituosa com o marido. Vai se revelando ao leitor a história em que o narrar se desencadeia em ecos surdos de necessidades humanos, desembocando em vazios. Pela voz da narradora (difícil dizer narrador, pela carga de sensibilidade feminina expedida no ato de dizer), reiteram-se negados sentidos, negadas vivências, negados amores, perpassados por já referidos medos, desencontros e mistérios que Ponciá não ousa desvendar nas limitações de sua trajetória.

A chave que recebemos para o desvendamento de tais mistérios se dá pelos elementos imagéticos recorrentes. Na narrativa, temos algumas imagens que se impõem reiteradas vezes na memória de Ponciá revelando simbolicamente a rasura do eu a qual pretendemos focalizar:

1. A imagem do arco-íris. Ponciá Vicêncio quando criança tinha medo do arco-íris, porque não queria passar por baixo dele, negava-se virar homem, conforme era concebida tal sina pelo imaginário popular. Na adolescência, ao passar por baixo do arco-íris, tem o seu primeiro e único momento de prazer sexual. Já “mulher feita”, quando rememora a presença do arco-íris, tudo se esvai, a fruição é só lembrança, distoante do que vivencia: uma relação de violência de incomunicabilidade com o marido. Ausência / presença do arco-íris, ausência de sexualidade e vida amorosa, personagem em processo de desequilíbrio.

2. A presença da mulher alta, branca, entre o milharal. Da primeira vez, dentro da espera do encantado, onírico, a alegria de ver a mulher de branco, que desaparece com o corte do milharal. Quando chega à cidade, Ponciá, com frio e só, dormindo entre mendigos, espaço dos desvalidos, ouve o sino da igreja, relembra a infância, “lembrou-se da mulher alta, transparente e vazia que tinha sorrido para ela um dia no meio do milharal”. A mulher alta agora não sorria mais, estava vazia, como vazia começara a viver na cidade grande, cheia de dificuldade, enfim com necessidades materiais. Ausência da mulher alta, perda de espiritualidade, do alimento de um sonho, de esperança.

3. A imagem de barro do avô. Pela imagem do avô feita do barro que Ponciá molda, defrontamo-nos com a semelhança que há entre ambos. Física, a princípio. Logo a voz da narradora, chama-nos atenção sobre a herança que este deixou à Ponciá. O avô escravo, em desespero com a lida do engenho que “enriqueciam e fortaleciam o senhor”, mata a mulher e corta o próprio braço, deixa como herança a chaga do sofrimento escravo para o filho (pai de Ponciá) e, por conseguinte, a ela mesma, neta.

A chaga da escravidão repercute de duas maneiras no enredo: na cena em que o pai de Ponciá, ainda menino – pajem do sinhô-moço - é obrigado a abrir a boca e engolir a urina do sinhô-moço, e quando Ponciá chega à cidade grande e vai viver num barraco da favela, desprovida de tudo.

Da primeira cena referida acima, salta, pela quentura da urina e o gosto salgado, o ódio que o pai de Ponciá alimenta pelo velho Vô Vicêncio.

Se eram livres, por que continuar ali? Por que, então, tantos e tantas negras na senzala? Por que todos não se arribavam à procura de outros lugares e trabalhos? Um dia perguntou isto ao pai, com jeito, muito jeito. Tinha medo dos ataques dele. [...] O homem não encarou o menino (p. 14-15).

Ainda como mecanismo de composição, encontramos recursos de inversão de sentidos ratificantes de uma narrativa concisa, paradoxalmente secura e lírica, personagens fragmentadas, mutiladas, diferentes de poéticas e narrativas da literatura universal que apontam para uma construção do eu em exaltação, heroicidade, fundado numa inteireza humana. Neste sentido, “O homem não encarou o menino” distoa em concepção e percepção da condição humana que aborda o poeta inglês Wordsworth no poema "Eu sinto o coração bater mais forte"3. Diz o poema: “Eu sinto o coração bater mais forte / quando o arco-íris posso ver./ Assim foi quando a vida começou, / Assim é agora quando adulto sou, / E assim será quando eu envelhecer. / Senão, melhor a morte! / O menino é pai do homem / E eu hei de atar meus dias, cada qual, / com elos da piedade natural”. No poema, dirigido pelo crivo da memória, o eu enunciador que envelhece ver a vida positivamente, com grande carga emotiva, resultante de elos que vão se enveredando, da criança que existe ao homem que amadurece; eis a força da existência, mesmo com o sentimento de piedade de si mesmo. A contrapelo, em Ponciá Vicêncio, o homem não encara o menino, pela crueza que a vida lhes oferece. Aqui em duas medidas, o (homem) pai e o (menino) filho e o filho (menino) a si mesmo (homem) para dialogarmos com a poesia de Wordsworth. Ambos se encontram, porém retesados numa conexão espaço-temporal da história, onde o homem nunca reconhece o menino que foi pelas circunstâncias a ele impostas. O filho odeia o pai menos pela figura do pai em si e mais pela representação que este tem no lugar de subjugamento que aquele vivencia, resquícios da escravidão e de uma alforria “enganada”. Pai e avô de Ponciá, mesmo mortos, figuram constantemente na sua memória, numa ambivalência de amor e ódio, tristeza e alegria, conformismo e inconformismo. O avô, especialmente, revive no barro amoldado e testemunha, no final, a volta de Ponciá ao seu tempo e lugar. Ambos pai e filho tiveram uma infância negada e uma paternidade tutelada por outros brancos e poderosos.

Pela via da inversão Evaristo traz para narrativa ecos de mitos, releituras, reelaboração de história para fazer vigorar o deslocamento do eu da personagem no ambiente ou para expressar o desconforto de Ponciá diante de seu tempo presente. Ponciá, como Narciso, também se olha nas águas, como se elas fossem espelho. Enquanto este morreu por encanta-se com sua própria beleza e por amar a si mesmo, Ponciá aproveita o espelho d’água para “chamar por si própria”, e este chamar-se resulta da ausência de algo que ela vai perseguir pelo resto da vida: a falta de si, do amor por si – eu rasurado.

Há outro momento que também identificamos inversão de sentido, numa retomada de outra esfera mítica ocidental. Ponciá Vicêncio com “seu homem” no barraco vivem de e na solidão. Ela pensa no futuro, passado e presente e a lembrança de seus familiares (mãe e irmão) impera:

Eram secos de carinhos explícitos; entretanto, mesmo sem se tocarem nem se abraçarem sequer, se amavam muito. Sabia que ele também saíra varando o mundo. Conseguirá? Será que conseguira ir além? Ou estaria reduzido, pequeno, mesquinho, em um barraco qualquer feito ela? Ponciá havia tecido uma rede de sonhos e agora via um por um dos fios dessa rede destecer-se e tudo se tornar um grande buraco, um grande vazio. (EVARISTO, p. 22-23).

Penélope fia, tecendo e descendo o fio da paciência. “Penelope tece durante o dia e, à noite, desfaz quase que fio por fio, o trabalho começado, recomeçado, interminável. Neste tecer e destecer, Penélope, protege-se de seus pretendentes e fixa seu coração numa única imagem: aquela do único homem que ama.” (LIBOREL, p. 376 / 377). Portanto, na figura mítica grega, o ato de tecer e destecer é a garantia de uma vontade, de uma intenção voluntária de só aceitar aquele a quem ela ama. Para Ponciá, o destecer aqui simboliza perdas de sonhos, esgarçamentos, engano de sentido e desterramento. Mais uma vez, Evaristo usa do simbólico para expor e alargar nossa percepção sobre o eu da personagem central.

Sujeitos entrelaçados

O romance de Conceição Evaristo tem poucas personagens. A personagem homônima Ponciá Vicêncio, a mãe Maria Vicêncio, o pai, Vô Vicêncio, o soldado Nestor, a emblemática Nêngua Kainda, o irmão Luandi José Vicêncio e demais outras com passagens rápidas que vêm para compor determinadas cenas ou temas: como as presentes na igreja, quando Ponciá chega à cidade grande, ou as que se encontram na delegacia ou prostíbulo, como Bilisa, o amor de Luandi.

São personagens que surgem com a perspectiva de compor a rede em que se sustenta a memória de Ponciá, mas são também autônomos, vão tecendo seus destinos, cada um à sua maneira vivenciando tragédias, correndo riscos, mostrando que as agruras individuais são coletivas. A história de um é a história de todos os personagens e porque não dizer dos próprios afro-brasileiros que eles vêm representar.

Na voz da narradora, as personagens mesmo se perdendo, resistem. Buscam sua identidade perdida ou negada. Por meio de deslocamento de um lugar ao outro, “desterritoriza-se” para encontra-se, os que não fazem isso, como Bilisa, prostituta, alimentam o sonho de dias melhores mesmo que muitas vezes a saída seja a morte. Luandi abre mão de ser soldado. Por que querer ser soldado “ter voz de mando, se sozinho? Se a voz de Luandi não fosse o eco encompridado de outras vozes-irmãs sofridas, a fala dele nem no deserto cairia”. (EVARISTO, p. 96). Talvez seja este o personagem em que, com mais propriedade, esteja representada a voz da consciência de seu lugar social, que a autora preconiza. Luandi vira soldado, mas, ao perceber-se “fora-do-lugar” nega sê-lo e reflete.

Assim como antes acreditava que ser soldado era a única e melhor maneira de ser, tinha agora feito uma nova descoberta. Compreendera que sua vida, um grão de areia lá no fundo do rio, só tomaria corpo, só engrandeceria, se se tornasse matéria argamassa de outras vidas. Descobria também que não bastava saber ler e assinar nome. Da leitura era preciso tirar outra sabedoria. Era preciso ajudar a construir a história dos seus. E que era preciso continuar decifrando nos vestígios do tempo os sentidos de tudo que ficara para trás. E perceber que, por baixo da assinatura do próprio punho, outras letras e marcas havia. A vida era um tempo misturado do antes-agora-depois-e-do-depois-ainda. A vida era a mistura de todos e de tudo. Dos que foram, dos que estavam sendo e dos que viriam a ser (EVARISTO, p. 131).

O percurso de vida de Luandi não é diferente do soldado Nestor, nem do negro Climério. O que há em comum entre eles? São homens desvalidos, vítimas do preconceito e da discriminação, numa sociedade que os apartam dos privilegiados socialmente. Deste modo, Conceição Evaristo dá voz ao que não a tem; tende a transformar em sujeitos enunciadores aqueles que notadamente aparecem nas narrativas canônicas sempre no segundo plano.

Linhagem literária e modo de contar

Segundo o Prof. Eduardo Duarte (UFMG), o romance de Evaristo segue uma “linhagem memorialística” da literatura afro brasileira que vem de Maria Firmina dos Reis passando por Carolina Maria de Jesus. E chama-nos atenção da importância que este romance representa para revermos a literatura canônica.

Conceição traz a narrativa dos despojados da liberdade, mas não da consciência. E a repetição insistente dessa presença desvalida nos incomoda e nos diz de uma aurora ainda à espera do sol... A fala diaspórica desses condenados da terra se articula de forma sincrônica e a posteriori, desconhecendo a encarnação do espírito de nacionalidade que marca boa parte da literatura canônica (Duarte, 2006).

Ademais, compreende-se a filiação que tal produção participa quando nos detemos na presença do negro na literatura brasileira. Sem muito esforço, percebemos mesma perspectiva de interesse político-literário, semelhante preocupação temática, guardadas as devidas proporções, com autoras já referidas aqui neste artigo, e com Lima Barreto, sobretudo o seu Isaías Caminha. Duarte destaca o lugar de Ponciá Vicêncio,

Se entendido como texto de autoria afrodescendente, tratando de tema vinculado à presença desse segmento nas relações sociais vividas no país, a partir de uma perspectiva identificada politicamente com as demandas e com o universo cultural afro-brasileiro e destacando ainda o protagonismo negro nas ações, em especial aquelas em que se defronta com o poder e com seus donos, não há dúvida de que Ponciá Vicêncio não só preenche tais requisitos, como ocupa o lugar supostamente vazio do romance afro-brasileiro (DUARTE, 2006).

Conceição Evaristo imprime um modo de contar aliando o lírico ao social. Sua narrativa fortemente contestatória distancia-se de um lirismo intimista e vigora o que é social e humano. Por isso um narrador em terceira pessoa, predominantemente observador, no entanto comprometido com a causa dos personagens, enfatizando deles o que há de individualização, esboça a constante tensão entre o individual e coletivo, através de uma linguagem concisa, de marcada densidade nos episódios narrados. Assim contribuem o uso de sintaxe de períodos coordenados, delineando curtas células narrativas (capítulos), conservando um ritmo cadenciado, sem digressões. Por outro lado, a densidade se fortalece pelas imagens poéticas, dinamizadas num movimento que sai do particular (gesto, atitude) para o geral (reflexão da macro realidade social). As repetições de episódios, ou retomadas de fatos da infância e adolescência de Ponciá, sempre se dão para alargamento de sentidos, reparação da memória, na constante busca de resistência por um eu esfacelado.

Pela apreensão de uma memória contorcida, num constante ir e vir de lembranças, o tempo narrativo se realiza em tensão com a espacialidade ou por entrecortes “passado-presente-e-o-há-de-vir”. O tempo do contar se volta ao tempo do ocorrido que remete a outra esfera do passado distante e histórico e, ao mesmo tempo, revela o tempo de agora, da consciência / inconsciência da personagem que indicia a necessidade de pensar que futuro a narrativa aponta. Essa superposição temporal, sempre posta pela memória de Ponciá isenta o narrador de qualquer malabarismo extemporâneo na narrativa, porque harmoniosamente compactuado com as paisagens físicas e psicológicas onde se realizam as ações das personagens.

Outro ponto importante do romance é a focalização narrativa. Por uma focalização externa, o narrador despita o leitor. À primeira vista, como ele está fora da narrativa, entende-se totalmente distanciado do narrado. Observa e conta. No entanto, quando nos focalizamos a linguagem e procuramos seguir caminhos da tecitura do romance, confrontamo-nos com vozes que desconcertam o que antes prevíamos da posição do narrador. O uso do discurso indireto livre evidencia certa conduta do narrador frente ao exposto. Alinhavam-se vozes das personagens, de outrem, da narradora e própria autora; mosaico de falares justapostos que predizem uma identidade étnico-racial distoante do discurso oficial.

Bom mesmo que os filhos tivessem nascidos mortos, pois assim se livrariam de viver uma mesma vida. De que valeria o padecimento de todos aqueles que ficaram para trás? De que adiantara a coragem de muitos em escolher a fuga, de viverem o ideal quilombola? De que valera o desespero de Vô Vicêncio? Ele, num ato de coragem-covardia, se revelara, matara um dos seus e quisera se matar também. O que adiantara? A vida escrava continuava até os dias de hoje. Sim, ela era escrava também. Escrava de uma condição de vida que se repetia. Escrava do desespero, da falta de esperança, da impossibilidade de travar novas batalhas, de organizar novos quilombos, de inventar outra e nova vida (EVARISTO, p. 83-84).

Finalmente

A via das lembranças em Ponciá Vicêncio se realiza pelas imagens e lugares. Sejam engendradas da figura amoldada em barro de Vô Vicêncio, sejam do retorno a lugares de representação afetiva para Ponciá. Esse reconhecimento por imagens é salientado por Halbwachs que remete a Bergson para dizer: "Reconhecer por imagens, [...], é ligar a imagem (vista ou evocada) de um objeto a outras imagens que formam com elas um conjunto e uma espécie de quadro, é reencontrar as ligações desse objeto com outros que podem ser também pensamentos ou sentimentos" (HALBWACHS, 2006, p. 55).

Mas o reconhecimento não se dá por contiguidade, e sim por causalidade, sem que se leve em conta o exercício da própria memória. O teórico acrescenta que essa "causalidade natural simplesmente designa a representação que fazemos de nós na sociedade que nos circunda [...]. A partir daí compreenderemos melhor que a representação das coisas evocada pela memória individual não é mais do que uma forma de tomarmos consciência da representação coletiva relacionada às mesmas coisas" (Halbwachs, 2006, p. 61).

A narrativa de Ponciá Vicêncio revela de forma singular o exercício desse reconhecimento do passado – memória individual – que repercute tanto na construção da identidade e da resistência dos personagens, e especialmente no eu rasurado de Ponciá, quanto na percepção de mundo que estes sujeitos externalizam, vigorando uma memória coletiva.

Referências

DUARTE, Eduardo de Assis. O Bildungsroman afro-brasileiro de Conceição Evaristo. Revista Estudos Feministas. Vol.14. No.1 Florianópolis. Jan./Apr. 2006. [online] acessado em janeiro de 2007.

EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2003. 132p.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. (Trad.) Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2006. 

SALGUEIRO, Maria Aparecida Andrade. Escritoras negras contemporâneas. Estudos de narrativas – Estados Unidos e Brasil. Rio de Janeiro: Caetés, 2004. 

SOUZA, Florentina da Silva. Afro-descendência em Cadernos Negros e Jornal do MNU. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

WORDSWORTH, William. Poesia Selecionada. (Trad.) De Paulo Vizioli. São Paulo: Edições Mandacaru, 1988.  p. 43.

 


1 Este artigo está publicado em DEALTRY, G.; LEMOS, M.; CHIARELLI, S. (Org.). Alguma prosa ensaios sobre literatura brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007, p. 73-83.

2 Professora assistente UESPI/UFPI. Mestra em Ciência da Literatura subárea Poética pela UFRJ.

3 William Wordsworth. Poesia Selecionada. Trad. De Paulo Vizioli. São Paulo: Edições Mandacaru, 1988, p. 43.

 

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