A memória em Poemas da recordação e outros movimentos, de Conceição Evaristo

Amanda Crispim Ferreira

A memória constitui um elemento indispensável à reconstrução de uma identidade nacional. É por ela que o homem atualiza impressões ou informações passadas e recompõe a sua história. Numa civilização sem a escrita, marcada pela oralidade como a africana, a acumulação de elementos na memória faz parte do cotidiano, como garantia de sua identidade, através da transmissão de bens culturais.

Jacques Le Goff (1990), em seu ensaio sobre a memória, fala que esta além de ser um elemento essencial na busca de identidade de indivíduos ou sociedades, serve também como instrumento e objeto de poder, desse modo propício à manipulação. Por isso, afirma ser dever dos profissionais da memória social, ou seja, pesquisadores que cujos estudos se debruçam sobre a memória, democratizá-la, a fim de que esta seja instrumento de libertação e não de servidão dos homens.

Paul Ricoeur, um dos mais importantes filósofos contemporâneos, ao falar sobre a relação memória, história e esquecimento, atenta-nos para o fato de que a memória e o esquecimento são elementos importantes para a construção de uma história e são as escolhas do historiador que vão definir esta construção.

As afirmações acima são um alerta sobre os perigos que a memória pode trazer, se usada de forma não democrática. Tal afirmação vem ao encontro da realidade da história brasileira, que foi manipulada, e um só lado foi contado pelos registros dos vencedores, tentou-se apagar a memória dos vencidos.

A literatura afro-brasileira tem como um dos seus objetivos e temática, resgatar essa memória que se tentou esquecer, através da revisão histórica, ou seja, recuperar através da memória a história que os livros não registraram, pelo contrario, fizeram e fazem questão de apagar.

Podemos comparar esta afirmação com as conclusões de Walter Benjamin sobre o conceito de história que ele escreveu em seus ensaios sobre literatura e história, pois para ele escrever a história é também articular passado e presente. E nesta articulação não significa que haverá um conhecimento do passado tal como ele foi, mas a reapropriação de um fragmento desse passado e sua conservação. Concluindo que há neste pensamento a inscrição da retomada da história dos vencidos, de fazer emergir um passado esquecido, não apenas conservá-lo, mas libertá-lo, pois cada presente resgata seu próprio passado e este movimento é por um futuro diferente.

A memória dos vencidos vem resgatada pela tradição oral, por meio dos “homens-memória” que, nas palavras de Le Goff, são uma espécie de guardiões da memória coletiva, responsáveis por transmitir a história numa sociedade sem escrita.

As palavras desses “homens” atualizam-se através da escritura afro-brasileira que busca nesses arquivos vivos da tradição oral resgatar aspectos da cultura e memória afro-brasileiras, a fim de que a história seja transmitida de geração em geração, como forma de resistência e preservação.

Já dizia Conceição Evaristo em sua dissertação de mestrado que “A literatura negra é um lugar de memória”, e por isso pretendo analisar a memória em seu livro Poemas da recordação e outros movimentos. Lançado em 2008, trata-se de uma antologia poética que traz como temáticas “memória, feminilidade e resistência negra” tal como considerou Íris Amâncio, na apresentação deste.

Com o termo escrevivência, cunhado pela autora em conhecida entrevista e retomado por Constância Lima Duarte na contracapa deste livro, Conceição Evaristo assume que toda sua escrita é fruto de suas experiências de vida. Em seu caso, experiências marcadas pelas lembranças dos sofrimentos da escravidão, pela luta cotidiana de uma mulher negra e pela esperança de novos tempos depositada na nova geração. Por meio das experiências individuais expressa as experiências coletivas, as experiências de sua comunidade. Podemos confirmar tal afirmação através da epígrafe de abertura do livro:

O olho do sol batia sobre as roupas do varal e mamãe sorria feliz. Gotículas de água aspergindo a minha vida-menina balançavam ao vento. Pequenas lágrimas dos lençóis. Pedrinhas azuis, pedaços de anil, fiapos de nuvens solitárias caídas do céu eram encontradas ao redor das bacias e tinas das lavagens de roupa. Tudo me causava uma comoção maior. A poesia me visitava e eu nem sabia...

Com as recordações de sua infância, a autora faz uma denúncia social ao descrever o trabalho da mãe “ao redor das bacias e tinas de roupa”. O trabalho de lavadeira caracteriza uma memória social, pois era a condição de trabalho a que estava submetida a maioria das descendentes de escravos.

A escrita de Conceição, bem como de tantos outros escritores afro-brasileiros, é engajada e busca recuperar a identidade negra através da cobrança de uma revisão histórica e denúncia da situação em que vivem atualmente os afro-brasileiros. Para se posicionar contra a situação de opressão em que vivem os afro-descendentes, tem como arma e “artifício” a palavra, como revelou no poema “De mãe”, também presente nesta antologia.

Em “Meia Lágrima”, o eu-lírico fala desta resistência com “os olhos secos”, pois “basta o meio tom do soluço para dizer o pranto inteiro.”

Não,
a água não me escorre
entre os dedos,
tenho as mãos em concha
e no côncavo de minhas palmas
meia gota me basta.

Das lágrimas em meus olhos secos,
basta o meio tom do soluço
para dizer o pranto inteiro.
 

Sei ainda ver com um só olho,
enquanto o outro,
o cisco cerceia
e da visão que me resta
vazo o invisível
e vejo as inesquecíveis sombras
dos que já se foram.
 

Da língua cortada,
digo tudo,
amasso o silêncio
e no farfalhar do meio som
solto o grito do grito do grito
e encontro a fala anterior,
aquela que emudecida,
conservou a voz e os sentidos
nos labirintos da lembrança.
(EVARISTO, 2008, p. 50)

Podemos comparar esses versos com a escrita de Conceição, que se apresenta sem vitimização, mas procurando relembrar o passado para construir um novo futuro.

Os poemas memorialísticos desta antologia seguem um modelo de construção “passado-presente-futuro”, em que as primeiras estrofes relembram o sofrimento da escravidão vivida por seus antepassados, e nas últimas deposita toda sua esperança por novos tempos na geração que surge. Assim, os poemas iniciam com um tom de dor, porém a esperança resiste e permanece em meio a todo sofrimento.

Tal modelo encaixa-se nas teorias de Glissant e Benjamin sobre história oral e história escrita, citadas por Gizêlda Melo do Nascimento (2006), em seu livro Feitio de viver: memórias de descendentes de escravos. Glissant apresenta uma visão profética do passado, ou seja, é preciso redimir o passado para se chegar ao futuro e Benjamin apresenta a memória do futuro, ou seja, ler o “avesso” da História, contar o que a História oficial não contou, porque é esta história, cuja preocupação está em recuperar o tempo esquecido, que melhor definiria nossa real constituição.

A presença da figura feminina como referencial da poesia de Conceição também marca os poemas selecionados, pois o eu-lírico feminino aparece em vários poemas e assim a autora reconta a história através das vivências de avós, mães e filhas, compondo assim uma linhagem feminina. O poema “Vozes mulheres” confirma as afirmações acima, quando retrata estas figuras como responsáveis pela recuperação da memória e pela incumbência de projetá-la na geração futura:
 

A voz da minha bisavó
Ecoou criança
nos porões do navio.
ecoou lamentos
de uma infância perdida.


A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.


A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.
 

A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.


A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.

A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato

O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade.
(EVARISTO, 2008, p. 10-11)

Através destas seis estrofes, Conceição revisita toda a nossa história, pontuando os momentos cruciais do ponto de vista de quem sofreu a violência. A ideia de redimir o passado para chegar ao futuro, está presente no poema e ela procura ler o avesso da História, ouvir as vozes abafadas.

Na primeira estrofe, a bisavó representa o processo diaspórico sofrido pelo povo africano, que foi arrancado de seu país para viver como escravo em terras estrangeiras. Ao ecoar lamentos por uma infância perdida, a bisavó assume o papel da primeira de uma linhagem, que terá por incumbência a transmissão de uma memória.

Na segunda estrofe, a avó representa os quase quatro séculos de escravidão, ao ecoar obediência aos brancos. A voz de obediência não significou apenas passividade, mas uma estratégia de resistência, pois se fez presente ao “ecoar” também essa experiência. Pode-se dizer ainda que a economia de palavras da autora ao escrever esta estrofe, está no fato de que os conceitos de propriedade e obediência tudo resumem.

A voz da mãe, na terceira estrofe, ecoando baixinho “revolta nas cozinhas alheias”, caminhando rumo à favela, dialoga com a epígrafe mencionada anteriormente – “pequenas lágrimas dos lençóis. Pedrinhas azuis, pedaços de anil, fiapos de nuvens solitárias caídas do céu eram encontradas ao redor das bacias e tinas das lavagens de roupa” –, pois revela também uma memória social. Tal estrofe denuncia a situação das mulheres negras no Brasil no período pós-escravidão. A imagem das “cozinhas alheias” representa segundo Gizêlda Nascimento em seu artigo “Grandes mães reais senhoras”, dois rebaixamentos, pois a cozinha é um espaço de fundo e, além de ser um espaço inferior, este espaço ainda não é dela. A estrofe revela também a denúncia social quando o eu-lírico diz que a mãe caminhava rumo à favela, concluindo que a carta de alforria não trouxe grandes mudanças, e que as senzalas onde viveram as gerações anteriores, hoje se transformaram nas favelas.

O tempo do eu-lírico vem representando o presente que ecoando versos perplexos, denuncia que nada mudou, já que sua rima continua sendo de “sangue e fome”.

A voz da filha, representada nas duas últimas estrofes, traduz a esperança num futuro diferente, pois será a filha que recolherá todas as vozes “engasgadas” de seus antepassados e fará ouvir com ressonância, ou seja, com a voz quase ouvirá mais forte, intensa. Será a filha que transformará vozes “mudas” e “engasgadas” em ato redentor, em “vida-liberdade”.

O verbo ecoar, que aparece em todas as estrofes, perpassa por todos os séculos, para que estas memórias não caiam no esquecimento.

É interessante notar que a última estrofe do poema “Meia Lágrima” dialoga com o poema “Vozes-Mulheres”. Retomando a questão da tradição oral “solto o grito do grito do grito”, podemos imaginar que é o grito da bisavó, da avó, e da mãe, mulheres que foram impedidas de se expressar. Esse grito é o “farfalhar do meio som” que “afirma o grito inteiro de liberdade”, como disse Íris Amâncio na apresentação desta obra, ao se referir a escrita de Conceição.

A escrita feminina de Conceição também será o tema do poema “A noite não adormece nos olhos das mulheres”, mostrando que a mulher negra além de sofrer por sua cor de pele, sofre porque é mulher.

A noite não adormece
nos olhos das mulheres
a lua fêmea, semelhante nossa,
em vigília atenta vigia
a nossa memória.

A noite não adormece
nos olhos das mulheres,
há mais olhos que sono
onde lágrimas suspensas
virgulam o lapso
de nossas molhadas lembranças.
 

A noite não adormece
nos olhos das mulheres
vaginas abertas
retêm e expulsam a vida
donde Ainás, Nzingas, Ngambeles
e outras meninas luas
afastam delas e de nós
os nossos cálices de lágrimas.

A noite não adormecerá
jamais nos olhos das fêmeas
pois do nosso sangue-mulher
de nosso líquido lembradiço
em cada gota que jorra
um fio invisível e tônico
pacientemente cose a rede
de nossa milenar resistência.
(EVARISTO, 2008, p. 21)

Ao dizer que “a noite não adormece nos olhos das mulheres”, o eu-poético revela a situação de opressão em que viveu e ainda vivem as mulheres. Há neste poema memória histórica, pois resgata personalidades femininas para afirmar a resistência milenar da mulher, como a Rainha Nzinga presente no décimo sexto verso. Há também uma memória social, quando denuncia os desafios atuais da mulher, como, por exemplo, criar os filhos sozinha, como pode perceber na terceira estrofe “vaginas abertas retêm e expulsam a vida”.

A imagem da noite pode remeter a múltiplos sentidos. É o momento do descanso, de recarregar as forças para o dia seguinte e este é negado às mulheres. Ao mesmo tempo, a noite pode significar a tristeza, a escuridão, solidão, que por muitas vezes elas passam. E essa dor se eterniza porque a noite não adormece, e o dia custa a chegar.

A noite é o lugar da lembrança e para as mulheres, são molhadas lembranças, que as afligem durante toda a noite. Os olhos das mulheres lembram sofrimento, pois choram as memórias passadas e veem as injustiças do presente. Por isso o eu-poético diz que há mais olhos que sono, pois o sono seria tranquilidade. Em vigília, nossas mulheres não dormem preocupadas com as filhas, sangue do seu sangue, que reiniciam o ciclo, porque também são luas, “Ainás, Nzingas, Ngambeles”, guerreiras, princesas, vencedoras. Luas, que não adormecem a noite, mas poderão iluminá-la.

Essas “meninas luas” são esperança de um novo tempo, pois “afastam delas e de nós” a dor, perpetua-se somente, através do sangue de mulher, a lembrança que possibilita a resistência.

Em “Todas as manhãs”, o eu-lirico resiste não através da voz, nem do sangue, mas através do sonho. O sonho e a esperança constituem elementos que, apesar de toda dor, permanecem em todas as estrofes e nos últimos versos, os sentimentos concretizam-se através da semente e da terra:

Todas as manhãs acoito sonhos
e acalento entre a unha e a carne
uma agudíssima dor.

Todas as manhãs tenho os punhos
sangrando e dormentes
tal é a minha lida
cavando, cavando torrões de terra,
até lá, onde os homens enterram
a esperança roubada de outros homens.

Todas as manhãs junto ao nascente dia
ouço a minha voz-banzo,
âncora dos navios de nossa memória.
E acredito, acredito sim
que os nossos sonhos protegidos
pelos lençóis da noite
ao se abrirem um a um
no varal de um novo tempo
escorrem as nossas lágrimas
fertilizando toda a terra
onde negras sementes resistem
reamanhecendo esperanças em nós.
(EVARISTO, 2008, p. 13).

A memória neste poema abriga e protege os sonhos, não permitindo que eles morram. A repetição da frase “todas as manhãs”, reforça a ideia de resistência, pois a cada manhã ele abriga os sonhos que teceu durante a noite, para renovar as esperanças e não desistir. É a luta contra a opressão cotidiana.

O recurso do paralelismo é utilizado neste poema através da frase “todas as manhas”; recurso que também aparece nos poemas anteriores, é frequente nos poemas de Conceição não só para causar efeitos estilísticos, mas também para reforçar a ideia presente nos poemas, que é a cobrança por uma revisão histórica e a resistência do povo negro diante das dores da escravidão.

No poema “Para a menina”, que a poetisa dedica para meninos e meninas de cabelos trançados ou não, o eu-lírico recorda através do corpo da menina, os traumas causados pela escravidão:

Desmancho as tranças da menina
e os meus dedos tremem
medos nos caminhos
repartidos de seus cabelos.

Lavo o corpo da menina
e as minhas mãos tropeçam
dores nas marcas-lembranças
de um chicote traiçoeiro.

Visto a menina
e aos meus olhos
a cor de sua veste
insiste e se confunde
com o sangue que escorre
do corpo-solo de um povo.
 

Sonho os dias da menina
e a vida surge grata
descruzando as tranças
e a veste surge farta
justa e definida
e o sangue se estanca
passeando tranquilo
na veia de novos caminhos,
esperança.
(EVARISTO, 2008, p. 25)

Seguindo o mesmo modelo dos poemas anteriores, a poetisa constrói este utilizando as primeiras estrofes para contar os sofrimentos seus e de seus antepassados através de imagens como “chicote traiçoeiro”, “caminhos repartidos”; e a última para falar de sua esperança de um futuro melhor, através da nova geração. Esse pensamento fica explícito através do título “Para a menina” e da dedicatória “Para todas as meninas e meninos de cabelos trançados ou sem tranças”, pois, com essas palavras, Conceição oferece aos mais jovens o legado de continuar a luta iniciada pelos antepassados, e ao dedicar para os meninos e meninas sem tranças também, num gesto abarcador, afirma que a luta é de todos.

Outra marca de esperança no futuro contida no poema é a palavra “sonho” iniciando a ultima estrofe, pois somente quando o eu-lírico sonha com o futuro, é que a vida surge grata e o sangue volta para as veias, indicando vida, o caminho certo, como certo é o caminho do sangue na veia e não fora dela, pois fora da veia, o sangue é morte.

O poema a seguir, “Do velho ao jovem”, retoma a questão da tradição oral e mostra a relação do jovem com o velho, pois a poetisa mostra a memória histórica a partir das experiências do velho e que mesmo não tendo o poder da escrita, tem o poder palavras. Mostra ainda, que as palavras do velho sobrevivem pela boca do jovem, recontando a história “que os livros escondem”:

Na face do velho
as rugas são letras,
palavras escritas na carne,
abecedário do viver.
 

Na face do jovem
o frescor da pele
e o brilho dos olhos
são dúvidas.
 

Nas mãos entrelaçadas
de ambos,
o velho tempo
funde-se ao novo,
e as falas silenciadas
explodem.
 

O que os livros escondem,
as palavras ditas libertam.
E não há quem ponha
um ponto final na história
Infinitas são as personagens...
Vovó Kalinda, Tia Mambene,
Primo Sendó, Ya Tapuli,
Menina Meká, Menino Kambi,
Neide do Brás, Cíntia da Lapa,
Piter do Estácio, Cris de Acari,
Mabel do Pelô, Sil de Manaíra,
E também de Santana e de Belô
e mais e mais, outras e outros...
 

Nos olhos do jovem
também o brilho de muitas histórias.
e não há quem ponha
um ponto final no rap
 

É preciso eternizar as palavras
da liberdade ainda e agora...
(Ibid., p. 51-2)

Conceição cita várias pessoas, comuns e anônimas (historicamente falando), como as responsáveis por transmitir a tradição e finaliza o poema fazendo referência ao rap, como forma de expressão que atualiza a transmissão dos antepassados. O rap é a voz da juventude oprimida, é a voz da liberdade, em que muitos se identificam como as palavras do velho, que revisa a história. Novamente a poetisa deposita sua esperança na juventude, aqui representada através do rap.

Também podemos interpretar essa afirmação “e não há quem ponha um ponto final no rap” de outra forma, pensando que o rap, por ser música composta e cantada na favela, é acessível a todos diferente de sua poesia que além de enfrentar os desafios da publicação, encontra outra pedra no meio do caminho, que é o problema do analfabetismo em que se encontra boa parte do povo afro-brasileiro. Desse modo, sua poesia nem sempre chega ao seu destino, que são seus irmãos afrodescendentes. Neste poema também podemos fazer uma relação com “Vozes-mulheres”, pois a poetisa também passeia por toda história mostrando as formas de resistência encontradas pelo negro até chegar à atualidade com o rap.

Em “Malungo, brother, irmão” a poetisa cobra através da memória histórica a riqueza construída por mãos africanas e afro-brasileiras no ciclo do ouro, mas que “encheram” outros bolsos. Através do título, Conceição se lembra de toda a escravidão negra e não somente a vivida no Brasil, pois Malungo era o nome com que os negros se tratavam no tumbeiro e, ao utilizar uma palavra em inglês e outra em português, remete aos países onde os africanos foram escravizados, como se fosse uma dedicatória a todos esses irmãos que também viveram essa dor:

No fundo do calumbé
nossas mãos ainda
espalmam cascalhos
nem ouro nem diamante
espalham enfeites
em nossos seios e dedos.
 

Tudo se foi
mas a cobra
deixa o seu rastro
nos caminhos aonde passa
e a lesma lenta
em seu passo-arrasto
larga uma gosma dourada
que brilha no sol.
 

um dia antes
um dia avante
a dívida acumula
e fere o tempo tenso
da paciência gasta
de quem há muito espera.
 

Os homens constroem
no tempo o lastro,
laços de esperanças
que amarram e sustentam

o mastro que passa
da vida em vida.
no fundo do calumbé
nossas mãos sempre e sempre
espalmam nossas outras mãos
moldando fortalezas e esperanças,
heranças nossas divididas com você:
malungo, brother, irmão.
(EVARISTO, 2008, p. 41-2).

Neste poema, Conceição também resgata a memória cultural através da imagem da cobra, que na simbologia africana significa mudança e uma mudança que não é em vão, pois deixa marcas, assim como foi o fim da escravidão. Percebemos também que ela resgata o sentimento de fraternidade, irmandade, muito valorizado nesta cultura, ao dividir com o todo o povo negro nos últimos versos, as únicas heranças que tem, fortalezas e esperanças.

Por meio da leitura destes poemas é possível perceber uma marca na obra de Conceição, que é a esperança. Nos poemas, ela aparece no final representada por crianças ou pelos jovens, que Conceição sempre insere nas últimas estrofes. Inicia os poemas com a lembrança de todo passado de escravidão nas primeiras estrofes, uma denúncia social nas estrofes do meio, finaliza com a esperança de um futuro diferente. Essa marca está presente em “Vozes-mulheres”, “A noite não adormece nos olhos das mulheres”, “Todas as manhãs”, “Para a menina”, “Do velho ao jovem”. Desse modo, conclui-se que a memória não é utilizada para murmurar os sofrimentos passados, mas para além de operar uma revisão histórica e uma denuncia social, cobrar uma mudança, para instigar nas próximas gerações a luta por um futuro melhor.

Esta marca de resistência está presente em todos os poemas e nas epígrafes, como se pode perceber na epígrafe representada a seguir: “Das acontecências do banzo, em determinados casos, nada pode ser feito para se escapar, a não ser viver...”

Diante da lembrança, diante da saudade, da dor pela ausência dos seus, nossa maior resistência é a vida, pois viver é resistência, viver é preciso. Tal epigrafe dialoga com o primeiro poema da obra “Recordar é preciso” em que o eu- lírico diz que a lembrança dos sofrimentos de seus antepassados é o que a inspira vida.

Reviver memórias de nosso povo através da escrita de Conceição Evaristo é realmente a maior herança que a poetisa pode nos deixar. Pois faço parte dessa nova geração em que ela alimenta tantos sonhos e esperanças, e através da sua poesia, encontro forças para lutar por novos tempos.
 

Referências

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sergio Paulo rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.

EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. Belo Horizonte: Nandyala, 2008.

_____. Literatura negra: uma poética de nossa afro-brasilidade. 1996. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) - Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro.

LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Educamp,1990.

NASCIMENTO, Gizêlda Melo do. Feitio de viver: memórias de descendentes de escravos. Londrina: Eduel, 2006.

 

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