Denúncia e reflexão no Quarto de despejo

Elisângela Lopes*

A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como a nossa vida decorreu. A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro.

Carolina Maria de Jesus
Quarto de despejo

A produção escrita de Carolina Maria de Jesus pode ser lida e entendida como instrumento múltiplo. A autora fazia da palavra uma arma contra o preconceito, pois, quando era insultada pelos moradores da favela, respondia: “vou colocar isso no meu livro”. Nesse sentido, sua escrita funcionava ainda como uma tentativa de instaurar a ordem, mesmo que mínima, naquela terra de ninguém. Conforme ressalta Carlos Vogt (1983) os diários da escritora eram “uma espécie de livro de São Miguel, livro do juízo, onde ameaça anotar os comportamentos ‘errados’ de seus vizinhos”. (1986, p. 210). Nestes cadernos, Carolina descrevia o que presenciava pelas ruas de Canindé: as brigas, os assassinatos, a prostituição infantil, a miséria, a fome, o descaso social, enfim, a precariedade da vida. E enquanto registrava seu desabafo, sonhava com a publicação dos seus textos.

Além de veemente denúncia, a escrita de Carolina funcionava também como elemento diferenciador entre ela e os demais habitantes da favela. O fato de autodenominar-se escritora, mesmo antes de ter seu livro publicado, devia provocar na vizinhança um misto de inveja, desprezo e até mesmo de respeito. Vogt sintetiza o estranhamento constante da autora diante da realidade de miséria e descaso na qual estava mergulhada e de onde se distancia depois da publicação do livro:

O repúdio da autora à situação que se encontrava é visceral. Da mesma forma e na mesma medida é por ela estranhada. Tanto que no dia em que ia se mudar da favela, depois do sucesso do livro, foi apedrejada pelos vizinhos. O ponto de estranhamento entre Carolina e os favelados é, sem dúvida, o livro. Escrevê-lo foi a forma que encontrou para tentar romper o fechamento do mundo que vivia. A esperança que deposita nessa experiência é grande”. (1983, p. 211)

O sonho de ver seus escritos publicados aconteceu em 1960, quando veio a público Quarto de despejo, fruto da recolha dos 35 cadernos que a autora mantinha guardados como tesouros, em seu barraco. Apesar do sucesso alcançado pela primeira edição desse livro, a obra de Carolina Maria de Jesus foi alvo de inúmeras críticas. Segundo ressalta Maria Lúcia de Barros Mott, no artigo “Escritoras negras: resgatando a nossa história”, alguns críticos “olham com reservas a obra de Carolina, negando inclusive a autoria de seus livros, atribuindo Quarto de Despejo ao jornalista Audálio Dantas. Esta não é a primeira vez que o livro de uma escritora negra tem a autoria atribuída ao apresentador da obra”. (1989, p. 8) Mott ainda pontua como marca do desinteresse pela obra da autora o fato de Diário de Bitita – livro de memórias – ter sido publicado primeiramente na França, em 1982, e apenas quatro anos depois ter sido editado no Brasil.

Outra marca dessa indiferença, apontada por Alfredo Boneff (disponível em: <http://www.afirma.inf.br/textos/cultura_julho.rtf>) é o fato de a obra da autora ser mais estudada nos países estrangeiros do que no Brasil. Para atestar esse fato, basta verificar a numerosa fonte de pesquisa sobre a escritora disponível na internet e constatar que a maioria dos textos constam em inglês ou espanhol. José Carlos Sebe Bom Meihy assim comenta a indiferença crítica e de público legada à produção dos escritos de Carolina:

O alcance de seu livro mais importante, Quarto de despejo, colocado a público em 1960, projetou-a como sucesso inquestionável, ainda que fátuo marcante. A glória de Carolina era perturbadora, mas, dadas as sequentes ondas de apagamento de sua produção publicada, o sucesso funcionou-lhe como contraponto intermitente no céu nacional prenhe de literatura de mulheres bem nascidas. Neste sentido, o aparecimento de Carolina no mundo reconhecido e público dos brancos era uma licença democrática. O discreto charme da burguesia nascente, contudo, não continha o mau cheiro de lixos alimentadores de misérias escondidas em favelas que inchavam as promessas de megalópoles. Explicitação disto é dada pelo tratamento crítico-literário e historiográfico legado à obra da escritora que, depois de figurar como ‘estrela de um novo tempo’, foi apagada, sendo esquecida porque sua história se desbastou entre nós arredondando diferenças. Enfim, a lógica do tempo mostrou-se senhora da razão: o silêncio colocou todas as coisas (e pessoas) no lugar devido. (Apud JESUS, 1996, p. 9).

Em consequência desse desprezo cultural e social, a produção literária de Carolina Maria de Jesus permanece desconhecida do grande público. Ainda mais desconhecida é a sua produção poética, organizada por Meihy em primorosa antologia que conta ainda com um artigo do organizador, um ensaio de Marisa Lajolo e um comentário de Armando Freitas Filho. Em análise dos poemas da autora, Lajolo comenta que neles:

comparecem [...] não apenas o lirismo dos amores não correspondidos, a queixa do homem e da mulher desamados e o lamento dos braços desencontrados do coração... Neles há também espaço para a decifração do sentido da vida, da aventura do ser humano sobra a terra, aventura esta muitas vezes transcrita em estereótipos e clichês e cifrada no cotidiano amargo dos pobres, onde, contra a plenitude física e metafísica, conspiram a falta de dinheiro, a prisão, a embriaguez, a violência, as relações sociais degradadas e a morte. (Apud JESUS, 1996, p. 9).

Quarto de despejo é um livro marcado pelo retrato sem retoques de uma realidade de miséria e de descaso social. O cotidiano da favela é descrito de uma forma particularizada, tão particularizada que só poderia ter sido feita por alguém que lá vivia. Carolina conjugava o seu ofício e única forma de sustento, catar papel pelas ruas da cidade, com a realização da escrita. Enquanto se debruçava nos seus cadernos de anotações, fugia da realidade de miséria na qual estava inserida e paradoxalmente dava a essa realidade um caráter documental. Para a autora, escrever era um ato epifânico e, ao mesmo tempo, um processo de reflexão sobre a vida dos marginalizados: “[...] eu classifico São Paulo assim: O Palácio é a sala de visita. A prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos”. (JESUS, 1976, p. 30). A rotineira e incansável luta pela sobrevivência; o desejo da morte como única saída; o sonho de ascensão social que, para a autora, resumia-se na aquisição de uma casa de alvenaria (desejo que realizaria com a venda do segundo romance); o futuro dos filhos e a constante presença da fome são “fantasmas” com os quais (sobre)vive a autora e enquanto presenças recorrentes na vida, tornam-se recorrências também no seu Quarto de despejo.

Ao fazer uma reflexão sobre o momento presente, a autora volta-se para o passado histórico, marcado pela escravidão e, de uma forma crítica, confere à abolição uma nova roupagem: os negros que antes se encontravam presos às amarras do sistema escravocrata, hoje se encontram presos aos grilhões da miséria e do descaso social. Ao anotar suas impressões sobre o 70º aniversário da Lei Áurea, conclui: “e assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome!” (JESUS, 1976, p. 29).

A produção ficcional de Carolina Maria de Jesus é merecedora do nosso respeito, reconhecimento crítico e admiração pelo que representa: fotografia das margens de um brasil que o Brasil prefere não ver – representação de “Um Brasil para brasileiros”.

Referências

BONEFF, Alfredo. “A escritora esquecida: livros de Carolina de Jesus não são mais lidos”. Disponível em: <http://www.afirma.inf.br/textos/cultura_julho.rtf>.

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976.

MEIHY, J. C. S. B (Org.). Antologia pessoal: Carolina Maria de Jesus. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996.

MOTT, Maria Lúcia de Barros. Papéis Avulsos 13. Escritoras Negras resgatando a nossa história. Rio de Janeiro: CIEC – Centro Interdisciplinar de Estudos Contemporâneos/UFRJ, 1989.

OLIVEIRA, Eduardo (Org.). Quem é quem na negritude brasileira. São Paulo: Congresso Nacional Afro-Brasileiro; Brasília: Secretaria Nacional de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, 1998. p. 60.

VOGT, Carlos. “Trabalho, pobreza e trabalho intelectual (O quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus)”. In: SCHWARZ, Roberto. Os pobres na literatura brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983. p. 204-213.

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* Elisângela Aparecida Lopes é Doutora em Letras, Literaturas de Língua Portuguesa, pela PUC Minas e professora do Instituto Federal de Educação do Sul de Minas - IFSULDEMINAS. Coautora do Volume 3 da Coleção Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica (2Reimpr., 2021), e também de Literatura afro-brasileira - 100 autores do século XVIII ao XXI (2a ed., 2019) e de Literatura afro-brasileira - abordagens na sala de aula (2a ed., 2019).