Bará na trilha do vento

O ar, ao adentrar abrupto nas fendas estreitas do poço do elevador, fez vibrar objetos metálicos soltos, reverberou qual agogôs, como a despertar sensibilidades adormecidas. Ela abriu a mão, aspirou o odor do sumo da folha, uma vertigem acometeu-lhe, teve a impressão de girar no eixo do próprio corpo, o medo a apossou. Desapareceram os contornos do corpo, um tilintar estridente, qual chamado, inicialmente distante, mais próximo e forte na medida em que a sensação de ser mais leve que o ar a dominava. Flutuava em direção ao tilintar de campainha que soava alto. Os pés tocaram o chão, reconheceu cada canto, cada cheiro, fez menção de levar as mãos em concha aos ouvidos, para abafar o ruído, não concretizou a intenção. Espantada, percebeu que não trajava mais o robe confortável de seda azul, com estampas sutis de estrelas e nuvens brancas, sobre a camisola curta, azul claro, sensual, com sofisticado brilho e suave caimento, atada aos ombros por alças finas, delicadas e enfeitadas com detalhes de strass e pérolas. Embaixo da camisola os seios firmes, livres do sutiã, balançavam discretos e naturais, roçando docemente o tecido fluido escorregadio.

O tilintar de um relógio despertador ecoava intermitente, com pausas breves. Através da névoa que se dissipava lentamente, ela entrevia detalhes do ambiente e caminhou às cegas pelos cômodos da casa. Pisando o assoalho de tábuas de peroba encerado, guiada pelo ruído, encaminhou-se em direção a uma porta robusta, de madeira pintada, fechada. Ao chegar à soleira, reteve um gritinho quando o despertador, dentro do cômodo, tornou a soar. Aproximou, com dificuldade, a mão até a maçaneta, não a alcançando; a estrutura corporal tinha diminuído para a de uma criança de sete anos. Nas pontas dos pés, esforçou-se para girá-­la e a porta, ressoando um clique, destrancou. Empurrou-a lentamente, espiou pela abertura, o coração batendo descompassado; vislumbrou a cama de casal de seus pais, em madeira escura, a cabeceira sustentada por duas colunas em forma de lança. A colcha violácea bordada à mão, flores brancas, e os babados franjados, quase até o chão, tudo intacto, como se, num capricho inexplicável, o tempo tivesse perpetuado o cenário vivenciado na infância. "Mas, como?". Abismou-se, os anos se passaram, ela cresceu, tornou-se mulher, no entanto, encontrava-se na sua antiga casa, criança ainda. Cabelos trançados, enfeitados com grande laço de fita branca, esmerado na goma do tecido e no capricho da amarradura da laçada, vestidinho sempre bem passado, as meias soquete brancas e sapatos pretos engraxados e lustrados, por obra e arte de Dona Trude.

Emoção mista apossou-se dela, a criança temerosa em ser flagrada a bisbilhotar, a adulta, presa no corpo criança, impotente. Confusa, desejou voltar à segurança do confortável apartamento, respirar o ar morno e umedecido após a chuva. Mas, presa ao passado, vivenciava o pretérito do futuro, mergulhada, impulsionada por desejos e curiosidades infantis; apesar da presença da consciência adulta, perdera o comando das ações. Guiada pelo som do despertador, reconheceu de imediato o relógio preto sobre o criado-mudo, se encaminhou até ele e o apanhou. "O despertador preto. Os números e ponteiros verdes brilham no escuro". Balbuciou, assustando­-se com o timbre acriançado da fala. "O despertador preto". Repetiu mais alto, tentando reconhecer, naquele tom infantil, a voz aveludada, com um quê rouco e sedutor, que possuía e do qual se orgulhava. Utilizava­-se deste recurso natural, como os antigos flautistas hindus valiam-se do instrumento para neutralizar o instinto de ataque do ofídio venenoso que, encantado, aquietava-se tornando-se aparentemente inofensivo.

(Bará na trilha do vento, p. 31-33).