Espelhos Negros

Diante do colapso enfrentado pelo país em decorrência da crise de imagem, o Presidente decidiu anunciar um decreto. Em atitude emergencial, entrou em rede nacional para pronunciar um discurso oficial com a divulgação de uma nova lei: A partir daquela data, o uso de espelhos ou outros aparelhos e objetos com propriedades reflexivas estava permanentemente proibido.

Toda crise traduz um momento de ruptura anunciado. Essa crise atingiu imediatamente a reputação, ponto nevrálgico daquele país emergente com profundas cicatrizes mal curadas de um passado escravocrata e colonial.

Esta nação de terceiro mundo vivia urna crise diante do avassalador sistema capitalista de consumo desenfreado. A obsessão pela "boa" aparência e a extrema vaidade atingiu as raias da loucura na maior parte da população. As empresas informaram prejuízos decorrentes dos constantes atrasos dos funcionários, preocupados com sua apresentação pessoal; dos frequentes atestados médicos destinados à recuperação após a realização de cirurgias plásticas e outros procedimentos estéticos; a polícia estava enfrentando uma crise nunca antes vista, em virtude da dificuldade de identificação dos prisioneiros, a ludibriar o sistema com a exibição de novos rostos, e até mesmo de novos sexos. Todos queriam ser como os artistas, viver como eles, enfim, criar paraísos na terra, ilhas de salvação, encontros perfeitos, enquanto a desigualdade e a fome estavam a crescer em torno das cidades "grandes".

Até mesmo as crianças já não brincavam como antes, preocupadas com a aparência, exigiam procedimentos estéticos dos mais diversos e alguns pais chegavam até a comprar lentes de contato para os bebês, loirinhos, lamentavelmente sem olhos azuis, alegando uma correção genética; as pessoas passavam horas a cuidar da aparência enquanto a violência e o uso de drogas cresciam assustadoramente; ninguém queria investir nas ciências, na assistência social, todos queriam estar impecáveis diante de um mundo mágico criado pela televisão. O realismo fantástico televisivo estava mesmo engolindo o mundo real.

A notícia atingiu a população como um raio. O decreto do Presidente foi recebido com revolta e desespero: as pessoas estavam cometendo o suicídio em massa nas praças, nas escolas. As clínicas de estética estavam sendo fechadas, assim como os salões de cabeleireiros - nas ruas o trânsito estava caótico, sem direção.

As pessoas vagavam em busca de um miradouro, de um ponto turístico onde pudessem enxergar a si mesmas. Infelizmente, as fontes de água estavam escassas, não havia um lago, um córrego, um fiapo de rio onde pudessem mirar­se. As cidades beiravam o caos, com pessoas perdidas, enlouquecidas, à deriva dos afetos.

Moisés era um repórter investigativo incansável na busca pela notícia. Também estava devastado pelo decreto. Em seus 43 anos, tinha o orgulho de ter se reinventado, pois construíra, junto ao seu meio referencial, a crença de que nascera feio.

Não estava muito à vontade com a sua identidade negra, nem com o seu cabelo crespo, que detestava. Acreditava não ter muitos atributos físicos especiais e investira muito tempo e dinheiro para tornar-se um homem melhor, diante da inevitável evolução: branco, ou quase isso, devido ao tom de pele que conseguira com o auxílio da cosmética, magro, alto, lindo, um exemplo a ser seguido, já que apresentava semanalmente um programa televisivo. E agora não poderia contemplar a sua própria imagem?

Resolveu investigar a fundo. Logo descobriu que o sistema não estava de brincadeira. Várias pessoas estavam desaparecendo misteriosamente após terem sido flagradas portando espelhos. Alguns clubes de senhoras foram bombardeados após a denúncia anônima de que esses locais praticavam cultos de imagem fechados a sete chaves.

Pessoas estavam sendo torturadas após a denúncia de práticas de tráfico de espelhos. Nas ruas da cidade, nos becos, você poderia pagar uma fortuna para que alguém lhe permitisse olhar, ainda que de relance, a sua imagem no espelho. Moisés estava desnorteado, sem saber a quem procurar, quando foi apresentado a um jovem engenheiro de vinte e cinco anos, "nerd", artista plástico. Foram apresentados durante um coquetel badalado e Moisés ficou sabendo por fontes seguras que o rapaz era "hacker", e que tinha informações a revelar. Marcaram um encontro para o dia seguinte. Num café, no centro da capital. Moisés não queria rodeios:

− Fiquei sabendo que você sabe mais do que a maioria, tenho interesse, pago pelas informações e prometo sigilo.

O jovem sorriu, um riso largo que escorria pela boca e inundava o corpo inteiro. Um sorriso de satisfação.

− Vocês jornalistas são mesmo insensíveis. Não vai me oferecer um café? Conversar sobre amenidades? Sempre engolidos pelo tempo... Sei que foram moldados durante a faculdade a manifestar-se de forma clara, direta e objetiva, mas uma boa oratória é parte das relações humanas... Nesse momento não tenho o menor interesse em colaborar com você, digamos que nós, os humanos, somos movidos pelas sensações...

Moisés ficou irritado. Era mesmo o que faltava. Um filósofo, existencialista ...

− Como é mesmo o seu nome? Pedro? Desculpe, mas estou muito aflito, há dias não me enxergo diante de um espelho, estou meio abalado, confuso... Mas você parece estar tranqüilo?

Pedro está a fazer palavras cruzadas. Totalmente concentrado.

Meu caro, nem todos têm as mesmas preocupações... Moisés quer voltar ao assunto, está impaciente.

– Preciso de informações sobre um movimento rebelde, ouvi dizer que eles ainda têm espelhos, sei que você conhece o assunto. Eu pago bem.

Pedro interrompe a jogada. Olha Moisés com atenção.

– Você é um cara decifrável em poucas letras. Já vi muitos assim. Guarda as palavras cruzadas. Podemos partir hoje ainda.

– Esse lugar existe mesmo? É seguro?

Pedro ri.

– A viagem é longa.

Os dois tomam um farto café da manhã. Saem juntos.

Para chegar à cidade esperada, sete dias são necessários. Nos dois primeiros, Pedro não disse palavra alguma. No terceiro dia também não. No quarto, percebendo que Moisés estava muito só, resolveu falar:

– O funcionamento dos espelhos sempre me intrigou.

Quando soube da existência desse grupo, logo quis mudar de vida, aderir ao movimento. Estava sentindo falta de pertencer a algum lugar.

Moisés está impaciente:

– Mas como eles conseguem ter espelhos lá?

Mais um dia de viagem sem palavras. Moisés nunca vivera em meio ao seu silêncio. Foi necessário esperar um dia para obter a resposta desejada.

– Não estão preocupados com as tradições. Já ouviu falar em espelhos negros?

Moisés esboça certo nervosismo.

– Não fico muito à vontade com a palavra "negro". Acho uma palavra muito pesada, carregada. Gosto mais das cores claras, trazem mais leveza.

Pedro está pensativo, os dois continuam a caminhar por uma estrada deserta, já é noite, venta muito. No dia seguinte, Pedro comenta, em tom reflexivo:

– Um espelho negro reflete tanto quanto os outros, mas vai além, pois a imagem que ele forma é diferente, a superfície negra cria diferentes perspectivas, valoriza outros aspectos.

Moisés fica indignado:

– Você quer que eu enxergue alguma coisa diante de um espelho negro? Isso é coisa de maluco, de artistas, de viciados, de gente que não tem o que fazer! Espelhos negros! E eu perdendo o meu tempo acreditando que iria fazer a reportagem da minha vida! Isso é uma igreja, ou sei lá o quê!

Pedro continua com o seu sorriso dialético.

– E você? Um negro que não assume a própria identidade, que procura um espelho para reafirmar o branqueamento que comprou com o auxílio da indústria cosmética porque não é capaz de olhar, de enxergar a si mesmo diante da dialética da percepção? Realmente somos artistas, e muitas vezes aproveitamos o nosso tempo para não ter o que fazer, não vivemos em função do que temos, e sim do que somos. Sim, estamos diante dos nossos espelhos negros, olhando para nós mesmos, enxergando as nossas memórias, a nossa ancestralidade, sem medo da nossa escuridão.

É o sétimo dia da viagem. Moisés está exausto, tenta sentar e desaba. Chora intenso, com lágrimas que se propõe a desfazer máscaras, a limpar a alma cansada. Vive o seu mistério profundo. Renasce durante um tempo sem fim. Quando volta a si, percebe que já estão às portas da cidade. Há um portal onde se lê "Seja bem-vindo a Miradouro".

Pedro convida:

– Se você se enxergar diante de um espelho negro, aprenderá a conviver com as suas sombras, com as suas luzes, alterando a sua percepção. Isso influenciará decisivamente a sua existência. Vamos, Moisés, não olhe para trás, senão vai virar uma estátua de sal!

Moisés, trêmulo de medo, levanta, com certa dificuldade, amparado por Pedro. É quase noite. O fim do dia mostra um intenso tom de vermelho, acolhedor. Ao longe é possível ouvir sons de festa na cidade dos vivos. Os dois chegam a Miradouro, um ponto de onde se desfruta um largo panorama, aberto às dialéticas da percepção. Pelo menos por enquanto, estava completa a jornada dos espelhos.

(Espelhos, Miradouros, Dialéticas da percepção, 2011).