Quantos filhos Natalina teve?

 Conceição Evaristo

Natalina alisou carinhosamente a barriga, o filho pulou lá de dentro respondendo ao carinho. Ela sorriu feliz. Era a sua quarta gravidez, e o seu primeiro filho. Só seu. De homem algum, de pessoa alguma. Aquele filho ela queria, os outros não. Os outros eram como se tivessem morrido pelo meio do caminho. Foram dados logo após e antes até do nascimento. As outras barrigas ela odiara. Não aguentava se ver estufando, estufando, pesada, inchada, e aquele troço, aquela coisa mexendo dentro dela. Ficava com o coração cheio de ódio. Enjoava e vomitava muito durante quase toda gravidez. Na terceira, vomitou até na hora do parto. Foi a pior gravidez para Natalina. Pior até do que a primeira, embora fosse ainda quase uma menina quando pariu o primeiro filho. Brincava gostoso quase todas as noites com o seu namoradinho e quando deu fé, o jogo prazeroso brincou de pique-esconde lá dentro de sua barriga. A mãe desesperada perguntou se ela queria o filho e se Bilico queria também. Ela não sabia responder por ele. Sabia, porém, que ela, Natalina, não queria. Que a mãe a perdoasse, não batesse nela, não contasse nada para o pai. Que fizesse segredo até para o Bilico. Ela estava com ódio e vergonha. Bilico nunca mais brincaria com ela. Ele não ia querer uma menina que estivesse esperando um filho. Que a mãe ficasse calada. Ela ia dar um jeito naquilo.

Natalina sabia de certos chás. Várias vezes vira a mãe beber. Sabia também que às vezes os chás resolviam, outras vezes, não. Escutava a mãe comentar com as vizinhas:

– Ei, fulana, o troço desceu! – E soltava uma gargalhada aliviada de quem conhecia o valor da vida e o valor da morte.

Natalina preparou os chás e tomou durante vários dias. Ela ficava em casa cuidando dos irmãos menores. Ia fazer catorze anos. Uma coisa estava lá dentro da barriga dela e ia crescer, crescer até um dia arrebentar no mundo. Não, ela não queria, precisava se ver livre daquilo.

A menina estava começando a ficar desesperada. Tomava os chás e não resolvia. Um dia a mãe perguntou-lhe como estava indo tudo. Ela não respondeu. A mãe entendeu a resposta muda da filha. Agora ela mesma é quem ia preparar os chás. Como haveria de criar mais uma criança? O que fazer quando o filho da menina nascesse? Na casa já havia tanta gente! Ela, o marido e sete crianças. E agora teria o filho da filha? Ia tentar mais um pouco de beberagens, se não desse certo, levaria a menina a Sá Praxedes. A velha parteira cobraria um pouco, mas ficariam livres de tudo. Natalina segurou o temor em silêncio. Sá Praxedes, não! Ela morria de medo da velha. Diziam que ela comia meninos. Mulheres barrigudas entravam no barraco de Sá Praxedes, algumas, quando saíam, traziam nos braços as suas crianças, outras vinham de barriga, de braços e mãos vazias. Onde Sá Praxedes metia as crianças que ficavam lá dentro? Sá Praxedes, não. A mãe de Natalina e as outras mães sabiam que era só dizer para crianças que iam chamar a velha e os filhos ficavam quietos, obedeciam. Sá Praxedes comia criança! Natalina sabia disso. Ela também muitas vezes conseguia a obediência dos irmãos menores trazendo a velha parteira até o medo deles.

A mãe devia estar mesmo com muita mágoa dela. Estava querendo levá-la a Sá Praxedes. A velha ia comer aquilo que estava na barriga dela. Ia conseguir fazer o que os chás não tinham conseguido.

Natalina esperou. No outro dia, quando a mãe saiu cedo para a cozinha da madame, ela saiu logo atrás para lugar algum. Não sabia para onde ia. Ao descer o morro, em um dos becos passou em frente ao barraco de Bilico. Era ali que os dois brincavam prazerosos, sempre. Passou rápido, pisando levemente com medo de ser vista. Tinha de fugir de Sá Praxedes. Ganhou a avenida, ganhou outras ruas. Escondeu-se o mais longe possível de casa. Ganhou outros amigos também. Um dia, junto com outra menina-mulher que também esperava um filho, tomou um trem para mais longe ainda. E respirou aliviada. Sá Praxedes não a pegaria nunca.

Na terceira barriga ela sabia de tudo que ia acontecer. Na primeira e na segunda fora apanhada de surpresa. Bilico, amigo de infância, crescera com ela. Os dois haviam descoberto juntos o corpo. Foi com ele que ela descobriu que, apesar de doer um pouco, o seu buraco abria e ali dentro cabia o prazer, cabia a alegria. Quando a criança nasceu era a cara de Bilico. Igual, igualzinha. Ela conseguira fugir de Sá Praxedes. Não queria o menino, mas também não queria que ele fosse comido pela velha. Uma enfermeira quis o menino. A menina-mãe saiu leve e vazia do hospital! E era como se ela tivesse ganho uma boneca que não desejasse e cedesse o brinquedo para alguém que quisesse.

A segunda gravidez foi também sem querer, mas ela já estava mais esperta. Brincava gostoso com os homens, mas não descuidava. Quando cismava com qualquer coisa, tomava os seus chazinhos, às vezes, o mês inteiro. As regras desciam então copiosas como rios de sangue. Mesmo assim, um dia uma semente teimosa vingou. Natalina passou novamente pelo momento de vergonha. Não ia contar para Tonho, mas o rapaz desconfiou. Havia noite que se assentavam no banco da praça e nem conversaram, ela só cochilava. Uma vez vomitou ao sentir cheiro de pipoca. Depois, um dia, no quarto da obra onde ele morava, quando Natalina se pôs nua, o rapaz perguntou docemente sobre aquela barriguinha que estava crescendo. Ela, envergonhada, contou-lhe que estava esperando um filho. Que ele a perdoasse. Que ela havia tomado uns chás. Que ela conhecia uma tal de Sá Praxedes... Quando acabou a falação e olhou para Tonho, o moço chorava e ria. Abraçou Natalina e repetia feliz que ia ter um filho. Que formariam uma família. Natalina ganhou preocupação nova. Ela não queria ficar com ninguém. Não queria família alguma. Não queria filho. Quando Toinzinho nasceu, ela e Tonho já haviam acertado tudo. Ela gostava dele, mas não queria ficar morando com ele. Tonho chorou muito e voltou para a terra dele, sem nunca entender a recusa de Natalina diante do que ele julgava ser o modo de uma mulher ser feliz. Uma casa, um homem, um filho... Voltou levando consigo o filho que Natalina não quis.

A terceira gravidez, ela também não queria. Quem quis foi o casal para quem Natalina trabalhava. Os dois viviam bem. Viajavam de tempos em tempos e quando regressavam davam sempre festas. Ela gostava de trabalhar ali. Era tudo muito tranquilo, ficava sozinha tomando conta do apartamento. Cozinhava, passava, lavava, mas só pra si. A casa parecia ser só dela. Um dia, enquanto divagava em seus sonhos de pretensa dona, o telefone tocou. Era a patroa que ligava do estrangeiro, em prantos, lhe pedia ajuda. Ela queria e precisava ter um filho. Só Natalina poderia ajudá-la. Ela não entendeu o telefonema nem as palavras da patroa. Ficou aguardando o regresso dos dois. Daí uns dias a patroa voltou. Natalina ouviu e entendeu tudo. A mulher queria um filho e não conseguia. Estava desesperada e envergonhada por isso. Ela e marido já haviam conversado. Era só a empregada fazer um filho para o patrão. Elas se pareciam um pouco. Natalina só tinha um tom de pele mais negro. Um filho do marido com Natalina poderia passar como sendo seu. Natalina lembrou-se de Sá Praxedes comendo crianças. Vai ver que a velha, um dia, comeu o filho desta mulher e ela nem sabia. Lembrou da primeira criança que tivera e que nem tinha visto direito, pois fora direto para as mãos-coração da enfermeira que seria a mãe. Lembrou da segunda que ela deixara com o Tonho, pai feliz. Não entendeu porque aquela mulher se desesperava e se envergonhava tanto por não ter um filho. Tudo certo. Deitaria com o patrão, sem paga alguma, tantas vezes fosse preciso. Deitaria com ele até a outra se engravidar, até a outra encontrar no fundo de um útero, que não o seu, algum bebê perdido no limiar de um tempo que só a velha Praxedes conhecia. A patroa chorava, mas parecia um pouco mais aliviada. Natalina levantou rápido e foi ao banheiro, na boca uma saliva grossa. Eram os primeiros enjoos que já começavam.

A patroa de Natalina passou a viajar sozinha. O patrão ficava no quarto dele, de noite levantava e ia buscar Natalina no quarto de empregada. Não falavam nada, naqueles encontros de prazer comedido. Cada vez que a patroa voltava, trazia em si o desejo de gravidez no olhar. Os três buscaram a gravidez durante meses e meses. Um dia as regras de Natalina não desceram. A patroa aflita pediu a urina, fizeram o exame: positivo. Os três estavam grávidos. O pai sorriu, voltou a viajar sempre. A patroa ficava o tempo todo com ela. Contratou outra empregada. Levava Natalina ao médico, cuidava de sua alimentação e de distraí-la também. Natalina enjoava, enjoava. Vomitava sempre. A barriga crescia devagar, lenta e preguiçosa. A outra tirava as medidas da barriga de Natalina e ficava feliz. Telefonava ao marido informando tudo. Um dia, quando já estava no sétimo mês, viu o homem, pai da criança, que estava ali momentaneamente emprestada dentro dela. A patroa pegou a mão do marido e pousou-a lentamente sobre a barriga de Natalina. A criança mexeu, os dois se abraçaram felizes, enquanto Natalina não conseguiu segurar a náusea e ânsia de vômito. A patroa veio aflita. O esforço para vomitar era tão grande que trazia lágrimas aos olhos de Natalina. Ela aproveitou para, silenciosamente, chorar um pouco.

Tudo passava lento, os nove meses de eternidade, os enjoos. O estorvo que ela carregava na barriga faria feliz o homem e a mulher que teriam um filho que sairia dela. Tinha vergonha de si mesma e deles.

Um dia a criança nasceu fraca e bela. Sobreviveu. Os pais choravam aflitos. Natalina quase morreu. Tinha os seios vazios, nenhum vestígio de leite para amamentar o filho da outra. Para o seu próprio alívio foi esquecida pelos dois.

A quarta gravidez de Natalina não lhe deixava em dívida com pessoa alguma. Não devia o prazer da descoberta ao iniciar-se mulher, como tinha sido nos encontros com Bilico.

Não devia nada, como na segunda barriga, quando ficou devedora diante da inteireza de Tonho, que se depositava pleno sobre ela, esperando que ela fosse viver com ele dias contínuos de um casal que acredita ser feliz.

Não era devedora de nada, como na terceira, ao se condoer de uma mulher que almejava sentir o útero se abrir em movimento de flor-criança. Doou sua fertilidade para que a outra pudesse inventar uma criação, e se tornou depositária de um filho alheio.

Não, dessa vez ela não devia nada a ninguém. Se aquela barriga tinha um preço, ela também tinha tido o seu, e tudo tinha sido feito com uma moeda bem valiosa. Agora teria um filho que seria só seu, sem ameaça de pai, de mãe, de Sá Praxedes, de companheiro algum ou de patrões. E haveria de ensinar para ele que a vida é viver e é morrer. É gerar e é matar.

O filho de Natalina continuava bulindo na barriga da mãe como se estivesse acompanhando também a busca que ela fazia na memória. Queria relembrar o caminho percorrido pelo carro. Um caminho que, por mais que se esforçasse, não conseguiria retomar e reconhecer nunca. Um trajeto que não pôde ver, pois tinha os olhos vendados pelos homens que chegaram de repente no seu barraco e a dominaram com força, perguntando-lhe pelo seu irmão. Ela não sabia o que responder. Não tinha irmão algum. Saíra de casa anos atrás, deixara a mãe, o pai e as seis irmãs. Os homens insistiam. Berravam dizendo que era pior e que não adiantava nada ela não dizer a verdade. De vez em quando, o que estava sentado no banco de trás com ela, fazia-lhe um carinho nas pernas. Ela arrepiava de pavor. As mãos estavam amarradas e doíam. Em um dado momento, o carro parou e o que estava ao seu lado desceu. Despediu-se dela passando novamente a mão em suas pernas. Bateu nas costas do que estava no volante e desejou-lhe bom proveito. O outro continuou calado. O carro seguiu em frente. Ela calculou que deveria ser umas três horas da madrugada, eles haviam chegado em seu barraco por volta da meia-noite. Estava fazendo muito frio. Natalina percebeu então que a marcha do carro diminuía e que estavam saindo da estrada e entrando no mato. Escutava o estalar de ramos secos. O homem desceu do carro puxou-a violentamente jogou-a no chão; depois desamarrou suas mãos e ordenou que lhe fizesse carinho. Natalina, entre o ódio e o pavor, obedecia a tudo. Na hora, quase na hora do gozo, o homem arrancou a venda dos olhos dela. Ela tremia, seu corpo, sua cabeça estavam como se fossem arrebentar de dor. A noite escura não permitia que divisasse o rosto do homem. Ele gozou feito cavalo enfurecido em cima dela. Depois tombou sonolento ao lado. Foi quando, ao consertar o corpo para se afastar dele, ela esbarrou em algo no chão. Pressentiu era a arma dele. O movimento foi rápido. O tiro foi certeiro e tão próximo que Natalina pensou estar se matando também. Fugiu. Guardou tudo só pra ela. A quem dizer? O que fazer? Só que guardou mais do que o ódio, a vergonha, o pavor, a dor de ter sido violentada. Guardou mais do que a coragem da vingança e da defesa. Guardou mais do que a satisfação de ter conseguido retomar a própria vida. Guardou a semente invasora daquele homem. Poucos meses depois, Natalina se descobria grávida.

Estava feliz. O filho estava para arrebentar no mundo a qualquer hora. Estava ansiosa para olhar aquele filho e não ver a marca de ninguém, talvez nem dela. Estava feliz e só consigo mesma. Lembrava de Sá Praxedes e sorria. Aquela criança, Sá Praxedes não ia conseguir comer nunca. Um dia, quando era quase menina ainda, saíra da cidade onde nascera fugindo da velha parteira. Agora, bem recentemente, saíra de outra cidade fugindo do comparsa de um homem que ela havia matado. Sabia que o perigo existia, mas estava feliz. Brevemente iria parir um filho. Um filho que fora concebido nos frágeis limites da vida e da morte.

(In: Olhos d’água, p. 43-50)