Ana Davenga

Conceição Evaristo

As batidas na porta ecoaram como um prenúncio de samba. O coração de Ana Davenga naquela quase meia-noite, tão aflito, apaziguou um pouco. Tudo era paz então, uma relativa paz. Deu um salto da cama e abriu a porta. Todos entraram, menos o seu. Os homens cercaram Ana Davenga. As mulheres ouvindo o movimento vindo do barraco de Ana foram também. De repente, naquele minúsculo espaço coube o mundo. Ana Davenga reconhecera a batida. Ela não havia confundido a senha. O toque prenúncio de samba ou de macumba estava a dizer que tudo estava bem. Tudo paz, na medida do possível. Um toque diferente, de batidas apressadas, dizia de algo mau, ruim, danoso no ar. O toque que ela ouvira antes não prenunciava desgraça alguma. Se era assim, onde andava o seu, já que os das outras estavam ali? Por onde andava o seu homem? Por que Davenga não estava ali?

Davenga não estava ali. Os homens rodearam Ana com cuidado, e as mulheres também. Era preciso cuidado. Davenga era bom. Tinha um coração de Deus, mas, invocado, era o próprio diabo. Todos haviam aprendido a olhar Ana Davenga. Olhavam a mulher buscando não perceber a vida e as delícias que explodiam por todo o seu corpo.

O barraco de Davenga era uma espécie de quartel-general, e ele, o chefe. Ali se decidia tudo. No princípio, os companheiros de Davenga olharam Ana com ciúme, cobiça e desconfiança. O homem morava sozinho. Ali armava e confabulava com os outros todas as proezas. E de repente, sem consultar os companheiros, mete ali dentro uma mulher. Pensaram em escolher outro chefe e outro local para quartel-general, mas não tiveram coragem. Depois de certo tempo, Davenga comunicou a todos que aquela mulher ficaria com ele e nada mudaria. Ela era cega, surda e muda no que se referia a assuntos deles. Ele entretanto, queria dizer mais uma coisa: qualquer um que bulisse com ela haveria de morrer sangrando nas mãos dele feito porco capado. Os amigos entenderam. E quando o desejo aflorava ao vislumbrar os peitos-maçãs salientes da mulher, algo como uma dor profunda doía nas partes de baixo deles. O desejo abaixava então, esvanecendo, diluindo a possibilidade de ereção, do prazer. E Ana passou a ser quase uma irmã que povoava os sonhos incestuosos dos homens comparsas dos delitos e dos crimes de Davenga.

O peito de Ana Davenga doía de temor. Todos estavam ali, menos o dela. Os homens rodeavam Ana. E as mulheres, como se estivessem formando pares para uma dança, rodeavam seus companheiros, parando atrás de seu homem certo. Ana olhou todos e não percebeu tristeza alguma. O que seria aquilo? Estariam guardando uma dor profunda e apenas mascarando o sofrimento para que ela não sofresse? Seria alguma brincadeira de Davenga? Ele estaria escondido por ali? Não! Davenga não era homem de tais modos! Ele até brincava, porém, só com os companheiros. Assim mesmo, de uma brincadeira bruta. Socos, pontapés, safanões, tapas, seus filhos da puta... Mais parecia briga. Onde estava Davenga? Teria se metido em alguma confusão? Sim, seu homem só tinha tamanho. No mais era criança em tudo. Fazia coisas que ela nem gostava de pensar. Às vezes ficava dias e dias, meses até, foragido, e quando ela menos esperava dava com ele dentro de casa. Pois é, Davenga parecia ter mesmo o poder de se tornar invisível. Um pouco que ela saía para buscar roupas no varal ou falar um tantinho com as amigas, quando voltava dava com ele, deitado na cama. Nuinho. Bonito o Davenga vestido com a pele que Deus lhe deu. Uma pele negra, esticada, lisinha, brilhosa. Ela mal fechava a porta e se abria todinha para o seu homem. Davenga, Davenga! E aí acontecia o que ela não entendia. Davenga, que era tão grande, tão forte, mas tão menino, tinha o prazer banhado em lágrimas. Chorava feito criança, soluçava, umedecia ela toda. Seu rosto, seu corpo ficavam úmidos das lágrimas de Davenga. E todas as vezes que ela via aquele homem no gozo-pranto, sentia uma dor intensa. Era como se Davenga estivesse sofrendo mesmo, e fosse ela a culpada. Depois então, ele ainda de corpo nu e ela também, ficavam ali. Ela enxugando as lágrimas dele. Era tudo tão doce, tão gozo, tão dor! Um dia pensou em se negar para não ver Davenga chorando tanto. Mas ele pedia, caçava, buscava. Não restava nada a fazer, a não ser enxugar o gozo-pranto de seu homem.

Todos continuavam parados olhando Ana Davenga. Ela recordou que há uns tempos atrás nenhum deles era amigo. Inimigos quase. Eles detestavam Ana. Ela não os amava nem os odiava. Ela não sabia onde eles estavam na vida de Davenga. E quando percebeu, viu que não poderia ter por eles indiferença. Teria de amá-los ou odiá-los. Optou por amá-los, então. Foi difícil. Eles não a queriam. Não era do agrado de nenhum deles aquela mulher dentro do quartel-general do chefe, sabendo de todos os segredos. Achavam que Davenga iria se dar mal e comprometer todo o grupo. Mas Davenga estava mesmo apaixonado pela mulher.

Quando Davenga conheceu Ana em uma roda de samba, ela estava ali, faceira, dançando macio. Davenga gostou dos movimentos do corpo da mulher. Ela fazia um movimento bonito e ligeiro de bunda. Estava tão distraída na dança que nem percebeu Davenga olhando insistentemente para ela. Naqueles dias ele andava com um temor no peito. Era preciso cuidado. Os homens estavam atrás dele. Tinha havido um assalto a um banco e o caixa descrevera alguém parecido com ele. A polícia já tinha subido o morro e entrado em seu barraco várias vezes. O pior é que ele não estava metido naquela merda. Seria burro de assaltar um banco ali mesmo no bairro, tão perto dele? Fazia os seus serviços mais longe, e além do mais não gostava de assaltos a bancos. Já até participara de alguns, mas achava o servicinho sem graça. Não dava tempo de ver as feições das vítimas. O que ele gostava mesmo era de ver o medo, o temor, o pavor nas feições e nos modos das pessoas. Quanto mais forte o sujeito, melhor. Adorava ver os chefões, os manda chuvas cagando de medo, feito aquele deputado que ele assaltou um dia. Foi a maior comédia. Ficou na ronda perto da casa do homem. Quando ele chegou e saltou do carro, Davenga se aproximou.

– Pois é, doutor, a vida não tá fácil! Ainda bem que tem homem lá em cima como o senhor defendendo a gente, os pobres. – Era mentira. – Doutor, eu votei no senhor. – Era mentira também. – E não me arrependi. Veio visitar a família? Eu também tou indo ver a minha e quero levar uns presentinhos. Quero chegar bem vestido, como o senhor.

O homem não deu trabalho algum. Pressentiu a arma que Davenga nem tinha sacado ainda. E quando isto aconteceu, o próprio deputado já tinha adiantado o serviço entregando tudo. Davenga olhou a rua. Tudo ermo, tudo escuro. Madrugada e frio. Mandou que o homem abrisse o carro e pediu as chaves. O deputado tremia, as chaves tilintavam em suas mãos. Davenga mordeu o lábio, contendo o riso. Olhou o político bem no fundo dos olhos, mandou então que ele tirasse a roupa e foi recolhendo tudo.

– Não, doutor, a cueca, não! Sua cueca não! Sei lá se o senhor tem alguma doença ou se tá com o cu sujo!

Quando arrecadou tudo, empurrou o homem para dentro do carro. Olhou para ele e balançou as chaves e deu um adeus ao deputado, que correspondeu ao gesto. Davenga tinha o peito explodindo em gargalhadas, mas conteve o riso. Apertou o passo, tinha de abreviar. Eram três e quinze da madrugada. Daí a pouco passaria por ali uma patrulhinha. Dias atrás ele havia estudado o ambiente.

Foi por aqueles dias do assalto ao deputado que Davenga conheceu Ana. A venda do relógio lhe havia rendido algum dinheiro, fora o que estava na carteira. E de cabeça leve resolveu ir com os amigos para o samba. Sabia porém que devia ficar atento. Estava atento, sim. Estava atento aos movimentos e à dança da mulher. Ela lhe lembrava uma bailarina nua, tal qual a que ele vira um dia no filme da televisão. A bailarina dançava livre, solta, na festa de uma aldeia africana. Só quando a bateria parou foi que Ana também parou e se encaminhou com as outras para o banheiro. Davenga assistia a tudo. Na volta ela passou por ele, olhou-o e deu-lhe um longo sorriso. Ele criou coragem. Era preciso coragem para chegar a uma mulher. Mais coragem até do que para fazer um serviço. Aproximou-se e convidou-a para uma cerveja. Ela agradeceu. Estava com sede, queria água, e deu-lhe um sorriso mais profundo ainda. Davenga se emocionou. Lembrou da mãe, das irmãs, das tias, das primas e até da avó, a velha Isolina. Daquelas mulheres todas que ele não via há muitos anos, desde que começara a varar o mundo. Seria tão bom se aquela mulher quisesse ficar com ele, morar com ele, ser dele na vida dele. Mas como? Ele queria uma mulher, uma só. Estava cansado de não ter pouso certo. E aquela mulher que lhe lembrava a bailarina nua havia mexido com ele, com alguma coisa lá dentro dele. Ela lhe trouxera saudade de um tempo paz, um tempo criança, um tempo Minas. Ia tentar, ia tentar... Ana, a bailarina de suas lembranças, bebeu água enquanto Davenga enamorado bebia a cerveja, sem sentir o gosto do líquido. Quando terminou, pegou a mão da mulher e saiu. Os amigos de Davenga viram quando ele, descuidado de qualquer perigo, atravessou o terreiro da roda de samba e caminhou feito namorado puxando a mulher pela mão, ganhando o espaço lá fora, quase esquecido do perigo.

Desde aquele dia Ana ficou para sempre no barraco e na vida de Davenga. Não perguntou de que o homem vivia. Ele trazia sempre dinheiro e coisas. Nos tempos em que ficava fora de casa, eram os companheiros dele que, através das mulheres, lhe traziam o sustento. Ela não estranhava nada. Muitas vezes, Davenga mandava que ela fosse entregar dinheiro ou coisas para as mulheres dos amigos dele. Elas recebiam as encomendas e mandavam perguntar quando e se seus homens voltariam. Davenga às vezes falava do regresso ou não. Ana sabia bem qual era a atividade de seu homem. Sabia dos riscos que corria ao lado dele, mas achava também que qualquer vida era um risco e o risco maior era o de não tentar viver. E naquela noite primeira, no barraco de Davenga, depois de tudo, quando calmos e ele já de olhos enxutos, – ele havia chorado copiosamente no gozo-pranto – puderam conversar, Ana resolveu adotar o nome dele. Resolveu então que a partir daquele momento se chamaria Ana Davenga. Ela queria a marca do homem dela no seu corpo e no seu nome.

Davenga gostara de Ana desde o primeiro momento até sempre. Dera seu nome para Ana e se dera também. Fora com ela que descobrira e começara a pensar no porquê de sua vida. Fora com ela que começara a pensar nas outras mulheres que tivera antes. E uma lhe trazia um gosto de remorso. Ele havia mandado matar a Maria Agonia.

Conhecera a mulher ao visitar um companheiro na cadeia. O amigo armara uma e não se dera bem. A prisão devia ser horrível. Só em pensar tinha medo e desespero. Se um dia caísse preso e não conseguisse fugir, se mataria. E foi nessa única visita ao amigo que ficou conhecendo Maria Agonia. Ela vivia dizendo da agonia de uma vida sem o olhar do Senhor. Naquele dia, quando saíram da cadeia, ela veio conversando com Davenga. Era bonita, uma roupa abaixo do joelho, o cabelo amarrado para trás. Uma voz calma acompanhada de gestos tranqüilos. Davenga estava gostando de ouvir as palavras de Maria Agonia. Marcaram um encontro para o outro domingo na praça. Quando ele chegou, o pastor falava, e ela estava com a Bíblia aberta na mão. Levantou os olhos e deu com o olhar de Davenga, que abaixou piedosamente os seus. Ele saiu e se encaminhou para o botequim em frente. Ao acabar a pregação, ela saiu do meio dos outros, passou por ele e fez um sinal. Ele foi atrás. Assim que todos se dispersaram, ela falou do desejo de estar com ele. Queria ir para algum lugar sozinhos. Foram e se amaram muito. Ele chorou como sempre. Esses encontros aconteceram muitas e muitas vezes. Primeiro a praça, a pregação, a crença. Depois tudo no silêncio, na moita, tudo escondidinho. Um dia ele se encheu. Propôs que ela subisse o morro e ficasse com ele. Corresse com ele todos os perigos. Deixasse a Bíblia, deixasse tudo. Maria Agonia reagiu. Vê só, se ela, crente, filha de pastor, instruída, iria deixar tudo e morar com um marginal, com um bandido? Davenga se revoltou. Ah! Então era isso? Só prazer? Só o gostoso? Só aquilo na cama? Saiu dali era novamente a Bíblia? Mandou que a mulher se vestisse. Ela ainda se negou. Estava querendo mais. Estava precisando do prazer que ele, só ele, era capaz de dar. Saíram juntos do motel, a uma certa altura, como sempre, ele desceu do carro e caminhou sozinho. Não havia de ser nada. Tinha alguém que faria o serviço para ele. Dias depois, a seguinte manchete apareceu nos jornais: “Filha de pastor apareceu nua e toda perfurada de balas. Tinha ao lado do corpo uma Bíblia. A moça cultivava o hábito de visitar os presídios para levar a palavra de Deus”.

Por mais que Ana Davenga se esforçasse, não conseguia atinar com o porquê da ausência de seu homem. Todos estavam ali. Isto significava que em qualquer lugar que Davenga estivesse naquele momento, ele estava só. E não era comum, em tempos de guerra como aqueles, eles andarem sozinhos. Davenga devia estar em perigo, em maus lençóis. As histórias e os feitos de Davenga vieram quentes e vivos em sua mente. Dentre eles havia o feito em que havia uma semelhante sua, morta. Nem no dia em que Davenga, de cabeça baixa, lhe contara o crime, ela tivera medo do homem. Buscou as feições de suas semelhantes, ali presentes. Encontrou calma. Seria porque os homens delas estavam ali? Não, não era. A ausência de um significava sempre perigo para todos. Por que estavam tão calmas, tão alheias assim?

Novas batidas ecoaram na porta e já não eram prenúncios de samba. Era samba mesmo. Ana Davenga quis romper o círculo em volta dela e se encaminhar para abrir a porta. Os homens fecharam a roda mais ainda e as mulheres em volta deles começaram a balançar o corpo. Cadê Davenga, cadê o Davenga, meu Deus?! O que seria aquilo? Era uma festa! Distinguiu vozes pequenas e havia as crianças. Ana Davenga alisou a barriga. Lá dentro estava a sua, bem pequena, bem sonho ainda. As crianças, havia umas que de longe, e às vezes de perto, acompanhavam as façanhas dos pais. Algumas seguiriam pelas mesmas trilhas. Outras, quem sabe, traçariam caminhos diferentes? E o filho dela com Davenga, que caminho faria? Ah, isto pertence ao futuro. Só que o futuro ali chegava rápido. O tempo de crescer era breve. O de matar ou morrer chegava breve, também. E o filho dela e de Davenga? Cadê Davenga, meu Deus?

Davenga entra furando o círculo. Alegre, zambeiro, cabeça-sonho, nuvens. Abraça a mulher. No abraço, além do corpo de Davenga, ela sentiu a pressão da arma.

– Davenga, Davenga, que festa é esta? Por que isto tudo?

– Mulher, tá pancada? Parece que bebe? Esqueceu da vida? Esqueceu de você?

Não, Ana Davenga não havia esquecido, mas também não sabia por que lembrar. Era a primeira vez na vida, uma festa de aniversário.

O barraco de Ana Davenga, como o seu coração, guardava gente e felicidades. Alguns se encostaram pelo pouco espaço do terreiro. Outros se amontoaram nos barracos vizinhos, de onde rolavam a cachaça, a cerveja e o mais e mais. Quando a madrugada afirmou, Davenga mandou que todos se retirassem, recomendando aos companheiros que ficassem alerta.

Ana estava feliz. Só Davenga mesmo para fazer aquilo. E ela, tão viciada na dor, fizera dos momentos que antecederam a alegria maior um profundo sofrimento. Davenga estava ali, na cama, vestido com aquela pele negra, brilhante, lisa, que Deus lhe dera. Ela também, nua. Era tão bom ficar se tocando primeiro. Depois haveria o choro de Davenga, tão doloroso, tão profundo, que ela ficava adiando o gozo-pranto. Já estavam para explodir um no outro, quando a porta abriu violentamente e dois policiais entraram de armas em punho. Mandaram que Davenga vestisse rápido e não bancasse o engraçadinho, porque o barraco estava cercado. Outro policial do lado de fora empurrou a janela de madeira. Uma metralhadora apontou para dentro de casa, bem na direção da cama, na mira de Ana Davenga. Ela se encolheu levando a mão na barriga, protegendo o filho, pequena semente, quase sonho ainda.

Davenga vestiu a calça lentamente. Ele sabia estar vencido. E agora, o que valia a vida? O que valia a morte? Ir para a prisão, nunca! A arma estava ali, debaixo da camisa que ele ia pegar agora. Poderia pegar as duas juntas. Sabia que este gesto significaria a morte. Se Ana sobrevivesse à guerra, quem sabe teria outro destino?

De cabeça baixa, sem encarar os dois policiais a sua frente, Davenga pegou a camisa e desse gesto se ouviram muitos tiros.

Os noticiários depois lamentavam a morte de um dos policiais a serviço. Na favela, os companheiros de Davenga choravam a morte do chefe e de Ana, que morrera ali na cama, metralhada, protegendo com as mãos um sonho de vida que ela trazia na barriga.

Em uma garrafa de cerveja cheia de água, um botão de rosa, que Ana Davenga havia recebido de seu homem na festa primeira de seu aniversário, vinte e sete, se abria.

(In: Olhos d’água, p. 21-30).