O cobrador de ônibus e o deus-vaca

"Esse aí tá com o reino do céu garantido", comenta o cobrador do ônibus, assim que o rapaz, cujas mãos acumulam a função de mãos e pés, termina sua cantoria e o pedido de apoio para exercitar sua arte. Olho a situação e penso que talvez se trate de mais uma vítima da poliomielite. O cobra­dor espia o céu, fixa-se em mim que estava a seu lado e co­menta: "Sujeito de sorte, ele, a senhora já pensou o que é arder no fogo do inferno por toda a eternidade?". Atordoa­da, respondo: "Não, não pensei". Na certa ele estava penali­zado com as limitações físicas do rapaz cantor e resolveu premiá-Io com a absolvição do inferno. Coitado, do cobrador.

"A senhora tem religião?", prossegue, antevendo não ser a minha a mesma dele. Afinal, aquele cabelo black power e um arco-íris na roupa. "Tenho", respondo, louca para saber onde a prosa desaguaria. "Acredita em Deus?", ele continua, desafiador. "Acredito!" Não o seu, penso. "Pois é, num vê aque­le povo da Índia? Eles num acredita em Deus e adora vaca. Adorar santo já é uma ofensa ao senhor Jesus e adorar vaca, eu nem sei dizer o que é. Por isso aconteceu aquela desgraceira toda. Aquela chuva que não parava e o mar se voltou contra eles em ondas gigantes. O pastor falou na igreja e deu no Jornal Nacional também".

Compreendi que ele falava sobre os tsunami que surpre­enderam o sudoeste da Ásia no início de 2005, e atribuía a catástrofe ambiental ao fato de os indianos considerarem a vaca um animal sagrado. Santa lobotomia, Batman. Perple­xa, não sabia o que fazer, mas tentei explicar que a vaca é sagrada para a cultura indiana, assim como outros animais o são em diferentes culturas. Argumentei que na Indonésia, país muito afetado pela catástrofe, predomina o islamismo, 80% do país é muçulmano e não há adoração à vaca. Procuro sensibilizá-lo para o tema do respeito a outras religiões e gasto meu latim em vão. De nada adianta ilustrar a conversa nar­rando a existência de um templo em homenagem a Buda, considerado uma das sete maravilhas do mundo. Constituído por cinco quilômetros de rochas vulcânicas, firmemente encaixadas umas nas outras. Demorou setenta e cinco anos para ficar pronto. Falo dele com um símbolo imponente da busca humana por algo maior. Transbordo meu caldeirão de diversidade, mas de nada adianta. O rapaz é irredutivel: "Deus-­vaca na terra de Alá. Onde já se viu?".

Olho para ele com o rabo do olho, calada e impotente. Coloco o fone de ouvido e enquanto procuro uma estação de rádio que me agrade, ouço uma notícia que me devolve o ânimo. A repórter diz que o Tribunal de Justiça do Estado da Bahia condenou a Igreja Universal a pagar significativa inde­nização por usar imagem de mãe de santo para ofender o Candomblé. E o tema das religiões de matriz africana prosse­gue. Fala-se na reportagem também sobre a criação de um grupo de militares praticante dessas religiões dentro da corporação, com o objetivo de educar instituições e pessoas para o respeito às expressões religiosas de matriz africana. Olho para o cobrador e me convenço de que não vale a pena prosseguir na tentativa de demovê-lo do sectarismo. Mudo a estação de rádio, fecho os olhos e finjo dormir.

(Cada Tridente em seu lugar, p. 29-30).